ELEIÇÕES MUNICIPAIS
Você sabia?, 30/10
‘Demorei praticamente duas semanas para descobrir quais eram as nove perguntas que a propaganda de Marta Suplicy dirigiu aos espectadores, relativas ao candidato Gilberto Kassab no começo da campanha do segundo turno. Tudo o que eu sabia – de ler lido diversos tipos de textos: notícias, comentários, alusões – era que havia duas perguntas que Marta não deveria ter feito, por serem sobre a vida privada (ou mais que privada) do outro candidato e, especialmente, porque seriam perguntas relativas à sua opção sexual, vindas logo dela, que sempre foi não só liberal, mas também defensora do não constrangimento de ninguém em função de opções sexuais, além de promotora de legislação avançada sobre questões conexas…
As duas perguntas que eu sabia que a propaganda de Marta fazia ao ‘público’ sobre Kassab eram ‘É casado? Tem filhos?’. Mas eu tinha lido que as perguntas eram nove, e apenas no final de semana passado (19/10/2008) vi em uma revista semanal que duas das outras perguntas eram se ele tem problemas com a justiça e se sua vida melhorou depois que entrou para a política. Inclusive, a revista mostra uma imagem que apareceu na TV: ela mostra Kassab em close, e as duas últimas perguntas estão grafadas de forma bem visível sobre seu rosto.
Digitei ‘é casado’ no Google (ainda sou um péssimo buscador, mas eu chego lá). Não li muitas ‘postagens’, mas, das que li, só uma citava um texto que dizia que, ao lado dessas perguntas capciosas, havia outras, e que essas eram relevantes numa eleição. Apenas um texto, citado por outro! De Dines a Juca Kfouri, todos falaram apenas de duas das nove perguntas (Juca, alusivamente. Escreveu no final de sua coluna esportiva: ‘Sou casado, tenho quatro filhos e seria um péssimo prefeito’).
Minha questão não é eleitoral, nem publicitária. Minha questão é sobre leitura. Creio que há duas maneiras básicas de falar de leitura, de pesquisar sobre leitura. Uma tem a ver com decifração, ou seja, com técnicas, métodos, teorias que permitiriam a um leitor ter acesso aos sentidos dos textos (verdadeiros, profundos, corretos etc. dependendo do que se quer, ou dependendo do campo: jurídico, religioso, filosófico, literário, técnico, comercial, publicitário…).
Outra vertente tem a ver com circulação. A pergunta, no caso, é quais textos circulam onde, quem lê o quê (em que século, nas escolas, nas bancas de jornal, na internet etc.). Uma subdivisão seria: como certos textos circulam: inteiros, aos pedaços, adaptados, em edições originais, traduzidos? E mais: por que, de um texto integral, circulam partes (estrofes, versos, finais, começos, pontos culminantes?). Finalmente – eis a questão – por que, das nove perguntas dessa peça de campanha, duas foram lidas, repetidas, comentadas, interpretadas, tiveram sua autoria discutida etc. e as outras sete nem foram mencionadas?
Vejamos um documento, o início do editorial do Estadão de 25/10/2008: Perguntas que não querem calar são aquelas que, por sua pertinência, clamam por uma resposta. As perguntas que a propaganda da candidata Marta Suplicy levou ao ar contra o seu adversário Gilberto Kassab – ‘É casado? Tem filhos?’ – também não querem calar, mas por motivos que se diriam diametralmente opostos: a indignação que provocaram até mesmo no PT e a duvidosa distinção que acabaram adquirindo…O artigo definido ‘as’ (que grifei) poderia dar a entender que as duas perguntas são todas as perguntas.
Do ponto de vista da decifração, o percurso não é óbvio (interpretações são sempre propostas de interpretação). Mas não importa muito, no caso (talvez isso nunca importe, de fato), a interpretação de um leitor, mesmo se especialista. O que importa é a interpretação que circulou. Ela parte de dois dados prévios: sabe-se que Kassab não é casado e que não tem filhos (e não por que a Veja lhe fez perguntas que partiam desses dois pressupostos, mas porque a família nunca apareceu em público a seu lado etc.).
A maldade atribuída à propaganda, entretanto, não tem nada a ver com a solteirice de Kassab, e sim com suposições que estamos acostumados a fazer, a inferências que a sociedade extrai de certos dados: se não é casado, talvez não seja (ou, mais a seco: não é) heterossexual, ou, diretamente, é homossexual. É por ser este o percurso de interpretação que todos disseram que Marta fez insinuações maldosas, que a propaganda apelou para a baixaria, que se começou a invadir a vida privada quando não era o caso etc.
A questão de fundo, para alguns, seria: ‘se é homossexual, não pode ser um bom prefeito’. Para outros: ‘se esconde sua opção sexual, deve estar escondendo outras características que podem fazer dele um mau prefeito’. ‘Tem filhos?’ poderia parecer uma pergunta redundante. Mas não é. Ela ‘aprofunda’ a anterior, porque ele poderia não ser casado, e mesmo assim ter filhos, se… Essa é a questão.
As perguntas são só perguntas, dirá quem defende a propaganda. Acontece que elas não são feitas no vazio: não só se sabe quais são as respostas (a essas duas perguntas, insisto), como essas respostas estão associadas a sólidos preconceitos em relação aos que, podendo ser casados e ter filhos, não o são e não os têm.
Talvez uma boa explicação para esse fenômeno possa ser encontrada num artigo de Dominique Maingueneau (Citação e destacabilidade), publicado em Cenas da enunciação (S. Paulo, Parábola).
O leitor curioso deve ler esse texto. E esse livro.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.’
PRÊMIO VLADIMIR HERZOG
Magalhães: Prêmio atenta para ‘submundo’ do etanol, 29/10
‘Os jornalistas Mário Magalhães e Joel Silva conquistaram o 30º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos em 2008 na categoria ‘Jornal’. A série de reportagens ‘Os anti-heróis, o submundo da cana’ foi publicada em oito páginas do caderno Mais! (24 de agosto de 2008) da Folha de S. Paulo após dois meses de preparação.
O material traz à luz informações que resgatam o passado histórico do país e que seguem se atualizando. As condições de trabalho e vida dos trabalhadores rurais em canaviais no interior do estado de São Paulo são ‘degradantes’, segundo Magalhães, como eram enquanto a escravidão vigia. Hoje, porém, trabalha-se mais, produz-se mais do que sempre se produziu e remunera-se menos, critica o jornalista.
‘A exigência de trabalho dos cortadores de cana no estado de São Paulo não se assemelha a nada que existia no passado, não se assemelha a nada que existe em outros estados. É por isso que há tantos relatos de morte dos trabalhadores por exaustão’, relata Mário Magalhães.
O conteúdo de ‘Os anti-heróis, o submundo da cana’ responde à fala do presidente Lula sobre os usineiros, que estariam ‘virando heróis nacionais e mundiais, porque todo mundo está de olho no álcool’. O Prêmio Vladimir Herzog, entregue pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, existe há trinta anos. Magalhães diz que é ‘uma honra’ recebê-lo e ressalta:
– A importância do prêmio é sublinhar que não cabe ao jornalismo apenas mostrar as perspectivas notáveis que o negócio do etanol representam para o país, mas também apontar que a riqueza produzida pelo etanol nao é compartilhada com aqueles que, com seu suor, estão na origem deste negócio, que são os cortadores de cana.
Na conversa reproduzida abaixo, o jornalista – que foi ombudsman da Folha de S.Paulo entre abril de 2007 e abril de 2008 e hoje está na sucursal do Rio de Janeiro do veículo – detalha a discussão levantada pelas reportagens. Aprofunda o conhecimento e a crítica sobre um sistema empregatício que o país sustenta há mais de quatro séculos:
– o Brasil já deu conta de erguer as mais modernas usinas de etanol do planeta, com tecnologia avançadíssima, mas a comida do peão na roça continua sendo fria…
Terra Magazine – Qual o significado do Prêmio Vladimir Herzog?
Mário Magalhães – É uma honra ganhar o prêmio que tem o nome do Vladimir Herzogn (Nota da Redação: Jornalista croata, naturalizado brasileiro, morto durante a Ditadura Militar). A importância do prêmio é sublinhar que não cabe ao jornalismo apenas mostrar as perspectivas notáveis que o negócio do etanol representam para o país, mas também apontar que a riqueza produzida pelo etanol nao é compartilhada com aqueles que, com seu suor, estão na origem deste negócio, que são os cortadores de cana. O projeto de desenvolvimento de um país não pode estar assentado na super-exploração de mão-de-obra. Os cortadores de cana vivem em condições de extrema pobreza e num trabalho em vários aspectos degradantes, e que em outros aspectos lembra condições ainda da escravidão.
As condições de vida do cortador de cana fazem parte de uma realidade antiga no país?
Tem uma coisa que é nova. A exigência de trabalho dos cortadores de cana no estado de São Paulo não se assemelha a nada que existia no passado, não se assemelha a nada que existe em outros estados. É por isso que há tantos relatos de morte dos trabalhadores por exaustão. Ou seja, a média diária de toneladas cortadas hoje na base do facão aumenta a cada ano que passa. Se exige mais do trabalhador, embora as estatísticas oficiais do governo do estado de São Paulo e dos usineiros mostrem que a remuneração é menor.
Diminuiu a remuneração?
Diminuiu. Hoje um trabalhador de cana, em valores reais, atualizado pela inflação, ganha menos que há duas décadas. Em 1985, um trabalhador cortava 5 toneladas de cana por dia em São Paulo. Em 2008, em média, está cortando 9,3 toneladas. Só que em 1985, o cara ganhava por dia – estamos falando em dados oficiais, reconhecidos pelos usineiros – R$ 32,70. Hoje ele ganha R$ 28,90 por dia. Em 1980, o cara ganhava por tonelada colhida R$ 6,53. O cara ganha hoje R$ 3,29 por tonealada colhida.
Quais foram as conseqüências da introdução de máquinas no campo?
O trabalhador manual concorre com a colheitadeira. Ele tem que produzir mais porque a máquina está acabando com o trabalho dele. Este ano, pela primeira vez na história, mais da metade da safra de cana em São Paulo está sendo colhida por máquinas. São Paulo responde por 60% da produção de cana do país. Na minha opinião, historicamente é positiva a mecanização da colheita. O ser humano não nasceu para cortar cana. Este é um trabalho degradante. Porém, o lamentável é que a lógica permanece a mesma.
Como assim?
Durante a escravidão, os cortadores de cana se davam mal porque eram escravos. Hoje eles vão deixar de cortar cana, mas vão continuar se dando mal. Por quê? Na média nacional, estes trabalhadores são analfabetos funcionais, não têm qualificação. Eles vão ficar sem trabalho! Em 2015, não terá mais um ser humano cortando cana no estado de São Paulo. Esses 165 mil trabalhadores e suas famílias vão viver de quê?
Há resquícios da escravidão?
A maior parte das pessoas é negra. O cara que cuida da turma que está cortando cana é chamado de ‘feitor’. Mas não é no sentido pejorativo, é o nome oficial do cara, o ‘feitor’. É uma palavra que vem da escravidão. O lugar onde eles vão cortar cana eles chamam de ‘eito’. Se tu botar no Aurélio online, ‘eito’ é uma palavra da escravidão, o lugar de trabalhao na roça.
Este tema provavelmente é tratado nas reportagens.
Tem uma página, ‘Vestígios Arcaicos’, dedicada a comparar o que a gente viu com as relações de produção e também o caldo cultural deste ambiente com a escravidão. É incrível isso! O cara é o feitor e trabalha no eito. Maluquice! O cara é negro e come a bóia-fria – o Brasil já deu conta de erguer as mais modernas usinas de etanol do planeta, com tecnologia avançadíssima, mas a comida do peão na roça continua sendo fria…
E a violência nestas regiões?
A violência é eficiente, provoca quantidade abissal, aberrante, de doenças relacionadas ao trabalho e de mortes. A gente descobriu um cara chamado Valdeci Reis. Este cidadão, dois anos atrás, pesava 56 quilos, ele colheu em um só dia, 52,47 toneladas de cana. Hoje pesa 49 quilos, parece ter menos. Este cara está entrevado em cima de uma cama aos 35 anos. Isso é a vida dessa gente.’
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