Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Terra Magazine

MÚSICA
Daniel Milazzo

‘O problema do Rio é a beleza’, diz Marcelo Camelo, 15/11

‘Naturalista. O músico Marcelo Camelo, em carreira solo, confessa não premeditar sua composições. Às vezes basta um sopro, ou uma coceira, para que uma melodia fermente numa cabeça distraída e reverbere num coração em erupção.

Camelo se diz um analfabeto. Nos anos de escola, não aprendeu a pensar por conta própria, a elaborar e eleger os próprios problemas. O músico procura se libertar da gaiola dos anseios e neuroses alheias. A música, a intuição, a sensibilidade, o prazer… Camelo elenca possíveis caminhos que rumam para a autonomia de pensamento, que desfaçam as amarras do que chama de ‘fundamentalismo pedagógico’.

Semelhante estagnação vive, noutra dimensão, a cidade do Rio de Janeiro, refém de sua própria exuberância. ‘O problema do Rio de Janeiro é a beleza. A beleza é a megera da cidade. Se a cidade fosse feia estava tudo muito melhor’, dispara o artista, inconformado com a imobilidade social que a cidade impõe, que os menos abastados em vão enfrentam, e que a elite preserva.

Filho do Rio de Janeiro, ex-Los Hermanos, Camelo não esconde que a urbe é seu ponto de partida para o mundo. É o solo onde pisa sua essência, seu trabalho, o eclético álbum ‘Sou’, que mescla introspecção com o sabor alegre das marchinhas de carnaval.

‘A cidade, a Mata Atlântica, o trânsito, o cheiro, o jeito do carioca… Tu convive com tudo isso. É esse o chão de onde sai o disco.’

… E por onde passa a entrevista a seguir.

Terra Magazine – Como está sendo viver esta etapa de carreira solo?

Marcelo Camelo – São muitas coisas que mudam. Mas é difícil resumir isso. Eu ainda me divido muito nos outros, gosto de saber da opinião de todo mundo, ao mesmo tempo que eu tenho meu gosto estético próprio, mas compartilho as decisões administrativas. Sou uma pessoa inclusiva, não gosto de me sentir senhor das decisões, gosto de compartilhar. Acho a forma de inteligência coletiva melhor do que a inteligência individual.

O que mudou em relação ao tempo de banda?

Na prática, eu continuo muito cercado de outras pessoas. Ao mesmo tempo eu tenho uma autonomia de marcar datas, de marcar compromissos, o que me deixa tranqüilo, em vários sentidos. Por um lado me dá uma autonomia como indivíduo, sou senhor das minhas escolhas, e por outro, traz reflexos na minha vida pessoal. Posso traçar diretrizes. Com a banda, não apenas pela banda, mas pela máquina, o que se espera da banda, a gravadora, o público, essa relação que se estabelece é um moto perpétuo. Uma hora você solta o corpo e não precisa fazer força nenhuma para estar totalmente ferrado. Basta você não fazer força nenhuma.

Mudou algo no seu modo de compor?

Me sinto mais à vontade de participar de um universo estético mais abrangente. Os Los Hermanos, ou qualquer banda, qualquer instrumentação que você arregimenta para gravar um disco inteiro, por mais abrangente, por mais rico que seja aquele universo estético, tem sempre a limitação de que são aquelas pessoas tocando. Agora eu tenho um espectro mais abrangente, de poder gravar as músicas com Dominguinhos, com a Mallu Magalhães… Isso também amplia as possibilidades estéticas da própria composição, que é um tipo de composição que não servia muito aos Los Hermanos e não funcionava muito ali.

‘Sou’, seu novo álbum, tem momentos bem distintos, que vão desde músicas mais introspectivas, quase sem voz, até marchinhas de carnaval. Você desde o princípio tinha a intenção de fazer um álbum diversificado e eclético dessa forma?

Não, foi totalmente naturalista. Nada do que eu faço atualmente tem planejamento. Faço as coisas de uma forma muito solta, bem intuitiva, sem tentar fazer força. Estou fazendo o contrário de força, estou relaxado, estou à vontade.

É muito mais emoção do que razão?

É, eu diria isso.

O que te inspira a compor hoje?

Não sei muito. São as questões fundamentais, as questões que passam, às vezes um sopro… não sei muito o que me inspira a compor, vivo me perguntando isso. Às vezes é só uma coceira mesmo, que dá vontade de pegar o violão e tocar um negócio. Às vezes estou fazendo algo totalmente distraído e vem uma melodia. Está a tua cabeça toda distraída e teu coração pensando na possibilidade de achar uma melodia bonita. Aí tu encontra, distraído…

Você tem uma música preferida deste novo álbum?

Não, normal.

Como foi compor Copacabana, uma das músicas mais alegres do álbum, que lembra mesmo uma marchinha de carnaval?

Eu morei um tempo em Copacabana. É uma marchinha né, pirei um pouco sobre essa questão de sair de casa, ter que voltar pra casa, que é um movimento intenso de quem vive fora, vive viajando. Há esse movimento de reentrada em casa, é um momento difícil. Pra mim sempre foi. Até você se reacostumar com a tua cidade, a tua casa, já dá o tempo de ter que ir embora de novo.

Se você pudesse sugerir uma comida ou uma bebida para acompanhar este álbum, ‘Sou’, o que você diria?

Cara, não sei bicho, sei lá… Álcool e gordura… É o prazer…

Como você tem lidado com a fama?

Não tenho nenhum diálogo com esse universo. Pra mim isso é uma coisa absolutamente inexistente, abstrato na cabeça de um grupo de pessoas muito pequeno. Não tenho nenhuma relação com essa parada, nenhuma mesmo, zero. Minha sintonia está em outro lugar.

Muita coisa do álbum fala do Rio de Janeiro. Tem alguns bairros do Rio que te inspiram, ou que te são especiais?

A cidade é sempre um ponto de partida importante. Isso me lembra duas coisas, primeiro é uma frase, aquela: ‘por mais que você invente você só está onde pisa’. E a outra é um conceito chamado concepção veneziana, que diz que muda-se o cenário, muda-se o julgamento. E é totalmente isso, o lugar onde você está pisando que é o que te projeta para o mundo. Você pensa a partir desse lugar. A cidade, a Mata Atlântica, o trânsito, o cheiro, o jeito do carioca… Tu convive com tudo isso. É esse o chão de onde sai o disco.

Como você enxerga o Rio de Janeiro hoje?

A cidade tem um apartheid social que é algo indescritível. Quando você compara com a meritocracia de São Paulo, onde o mérito tem mais vez, você vê que a nossa capacidade de fluxo social, das pessoas mudarem de escala, de padrão social, é ínfima. Se o Brasil é um país duro para as pessoas que nascem mais pobres, aqui no Rio então… Socialmente, culturalmente, você tem o seu lugar já muito estabelecido.

Uma herança maldita…

O Rio de Janeiro é uma pontinha de unha da cidade, um lugar muito pequeno, onde as pessoas realmente se sentem privilegiadas. É a fidalguia, são os ‘filhos d’algo’. Essa aqui é a maior cidade escravocrata do mundo, o último lugar do mundo a abolir a escravatura. Vem o império inteiro, o rei de Portugal vem pro Brasil distribuindo título de nobre para todo mundo, transforma o centro da cidade em Paris, vai morar em Petrópolis, e aqui está todo mundo se sentindo o filho do rei. (NR: Em 1808, o rei Dom João VI transfere toda a corte portuguesa para o Brasil e estabelece o Rio de Janeiro como sede do reino de Portugal) Na zona sul todo mundo se acha ainda os detentores do privilégio, ninguém quer abrir mão de ser a eleite cultural… Isso dificulta de todas as formas a capacidade de mobilidade social e toma conta desse pequeno canteiro que é a cidade, como se fosse sua propriedade privada, para parar sua S-10 em fila dupla para jogar no bixo! É pífia a cidade…

Ainda assim, o Rio leva a alcunha de Cidade Maravilhosa, carrega esta imagem de lugar deslumbrante. Cria-se, portanto, uma contradição sobre a percepção da cidade, entre quem vê de fora e quem vive nela?

É algo inacreditável, o tamanho da miséria financeira das classes mais pobres e a miséria intelectual dos abastados. E ainda por cima com esse imaginário, sob esse signo de cidade turística, de cidade bonita. O problema do Rio é a beleza. A beleza é a megera da cidade. Se a cidade fosse feia estava tudo muito melhor. Fica todo mundo olhando para o Corcovado… a cidade é um balneário. Morar aqui está ficando sem sentido porque parece que você mora num balneário de verão. Ao mesmo tempo a cidade é tão bonita, e oferece um tipo de contemplação da vida. Ao mesmo tempo que é manero é uma droga.

Tem planos de deixar a cidade?

Eu estava querendo ir para São Paulo, porque aqui no Rio o estado natural das coisas é o nada. Qualquer coisa que tu faça está contrariando o ‘não fazer nada’. É subliminar, o cara se acha de fato merecedor de ter uma coisa melhor do que o outro. É um mal do ser humano. E no Rio, além dessa diferença social clara há essa imagem de beleza total, todo mundo na praia, de que a praia é super democrática, todo mundo se encontra… nada disso! Claro que não. Porque o que separa as pessoas é o código comportamental, o jeito.

Há espaço democrático no Rio?

Claro que há! Há espaço democrático em todo o mundo, até na casa do Hitler devia ter um espaço democrático, nem que fosse na cabeça dele… Mas o Rio é uma cidade menos democrática do que São Paulo. A impressão que se tem é que São Paulo vive a democracia do mérito. A gente (no Rio) está muito longe de chegar nisso. A única forma de chegar nisso é os filhos de todo mundo terem as mesmas condições de disputar o mesmo emprego. Do cara mais pobre, do mendigo, ter condições de disputar uma vaga, de igual para igual, com o filho do cara mais rico. Essa é a revolução. Aí não importa mais quem tem dinheiro ou não, o negócio é a renovação das possibilidades.

Agora, do jeito que a gente faz, do jeito que a gente usa a língua, o dinheiro, a escola, todos os benefícios que a classe abastada tem são usados em nome de ampliar a diferença social. Aí complica. A própria língua, que é um fator de unidade nacional, é usada para excluir as pessoas. Isso é impossível. A gente precisa ter uma consciência mais inclusiva e realmente dividir a renda, educar as pessoas. Educar as pessoas é o mínimo.

E se ofereca uma educação de qualidade…

Olha, o analfabetismo está em todas as escalas. Eu considero minha educação extremamente falha, porque eu sou, fui durante muito tempo e ainda estou lutando contra isso, um analfabeto da minha própria vontade. Porque na escola a gente desaprende a ter vontade própria. Você passa dez anos da vida sendo obrigado a conviver só com pessoas da tua idade, com um grupo de interesse que não tem nada a ver com o teu. Eu estou com 30 anos, faz 12 anos que saí da escola e estou até hoje…

Querendo se libertar?

É… Porque você aprende que errar não pode, e aí você fica com medo de tentar, porque se você tentar pode errar, e errar prejudica. É um fundamentalismo pedagógico, um fundamentalismo educacional, um fundamentalismo de interesse, como se todo ser humano fosse igual.

Como se fosse uma ditadura da homogeneidade?

As pessoas são totalmente despreparadas para promover a autonomia de pensamento. Isso é o importante. Você saber propor os seus próprios problemas. A única coisa que você pode aprender na escola é isso, para que você não fique vivendo as neuroses dos outros, a vida e os anseios dos outros, resolvendo problemas que você não quer resolver. Se você se dedicar a resolver aquilo que é um problema pra você, vai estar contribuindo para a humanidade de um jeito infinito. A chance de meter um golaço, uma coisa sensacional para todo mundo, é muito maior.

Você acha que a política pode ser um caminho para esta revolução educacional?

Eu não acredito muito neste sistema representativo, tenho muita dúvida. De todos os políticos que eu ouço falar, de longe a proposta com a qual eu mais me identifico é a do Cristóvão Buarque, que é uma coisa que o PDT defendeu durante muito tempo, e aqui no Rio tentou implementar com os CIEPs (Centro Integrado de Educação Pública), um projeto muito bonito do Darcy Ribeiro, Brizola e Niemeyer, que mais uma vez, por causa da política, ninguém dá continuidade. É uma coisa que certamente teria mudado a cara da violência no Rio. Imagine dez, quinze anos depois, com todas as pessoas de baixa renda estudando em horário integral. Imagina o que essa cidade podia ser! Não precisa nem muito tempo, nem muito dinheiro, mas sim vontade política e disposição de fazer acontecer.

Você enxerga o prefeito eleito Eduardo Paes (PMDB) capaz de resolver os problemas da cidade?

Eu não boto muita fé não, mas tomara que eu queime a minha língua. A sensação que se tem de início é de que (Paes) é uma peça a mais nesse jogo antigo e viciado. Por mais disposição, coragem, ou o que quer que seja para promover as mudanças, já está participando de um esquema em que ele é mais uma peça, não tem autonomia de criar as regras, nem de estabelecer novos mecanismos.’

 

 

 

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