ISABELLA NARDONI
Cobertura do Caso Isabella fere o interesse público
‘‘É o julgamento mais importante da história’, disse, categórico, o repórter de televisão. Talvez um descuido. Certamente, um exagero. No seu quarto dia, o julgamento do pai e da madrasta de Isabella Nardoni superou em importância, na infeliz qualificação feita por mais de um jornalista, decisões de todos os tempos tomadas por tribunais nacionais e internacionais. Suplantou os julgamentos de Nuremberg, dos genocidas nazistas da Segunda Guerra Mundial, responsabilizados pela morte de seis milhões de pessoas; e de Ruanda, dos assassinos de um milhão de integrantes da etnia tutsi e de hutus moderados entre 1994 e 1995. No Brasil, ficou acima do julgamento da morte de 19 trabalhadores sem-terra em Eldorado do Carajás, no Pará, por um pelotão de 85 policiais militares.
Estas rememorações pretendem ilustrar a desproporção atingida pela cobertura midiática da tragédia paulistana. Por reunir ingredientes de crueldade extrema, continha eloqüência suficiente para prescindir da cobertura quase ininterrupta feita pela mídia. O interesse em estender ao máximo as transmissões fica evidente nesta pergunta de uma apresentadora de tevê a um experiente repórter, quando este informou que Alexandre Nardoni havia chorado ao depor: ‘Você acha que o choro do depoente foi sincero?’. Posto em situação incômoda, só lhe restou dizer: ‘É uma resposta difícil. A impressão é que o choro do pai de Isabella sensibilizou os jurados’.
Existe, por suposto, curiosidade e interesse legítimos das pessoas em ser informadas sobre episódios do gênero. Mas a extensão da cobertura, com links diretos de todas as emissoras conectando dia e noite o local do julgamento com a casa de cada telespectador, agigantou a audiência e criou uma oportunidade rara de suplementar o caixa dos meios de comunicação. A reportagem rendeu recorde de audiência, por exemplo, ao programa Boa Tarde, da Bandeirantes, no dia 23. O levantamento do Ibope revelou 3 pontos de média e picos de 4. A audiência típica é de 1 ponto. A matéria continha ‘um cenário especial, reproduzindo o quarto da menina para explicar os fatos’, revelou a Folha Online. O Jornal da Record obteve o segundo lugar isolado na média de audiência, com 10 pontos de média e pico de 12, de acordo com o mesmo veículo. Ana Paula Padrão saiu da bancada para acompanhar in loco o julgamento no Fórum de Santana. Supõe-se que os dados das outras emissoras, não divulgados até o término desta coluna, tenham acompanhado o festival de picos de audiência.
O jornalismo, sabe-se, é atividade de interesse público viabilizada pelo interesse privado, de onde se conclui que obter lucro é não só desejável como indispensável para manter não só as empresas, mas o próprio jornalismo. Quando o interesse privado se hipertrofia, o interesse público, simetricamente, sofre uma atrofia. Apenas a lógica da busca da audiência e do lucro máximos explica a interpelação de um repórter por uma apresentadora de tevê sobre a autenticidade do choro de um depoente. Ou a construção de um cenário reproduzindo o quarto da menina assassinada.
A cobertura do julgamento do assassinato de Isabella Nardoni, do modo como foi feita e na proporção assumida, passa a anos-luz de distância do interesse público. Pode ser classificada, conforme os bons manuais de jornalismo, como de interesse do público, ou seja, de atendimento àquilo que o público supostamente quer, ainda que esse desejo seja movido pelo gosto pela tragédia. Mas atender ao interesse do público, sabe muito bem a mídia, é caminho certeiro para locupletar o interesse privado. Já o interesse público, este busca sempre o bem comum e por esse motivo é vital para a democracia. Em uma sociedade mais equilibrada, a democracia tem o poder de coibir os excessos do interesse privado.
Algumas das barbaridades a que pode levar a derrota do interesse público na mídia, em casos extremos, estão contadas por Gunter Walraff no livro a Fábrica de Mentiras, sobre o jornal sensacionalista alemão Bild, onde trabalhou. Um dos casos mais chocantes é o do repórter que fala por telefone com um suicida em potencial encorajando-o levar adiante o seu intento para gerar uma matéria jornalística exclusiva. A obra teve várias passagens censuradas pela justiça alemã durante longo tempo. Outras barbaridades estão próximas de nós, como o caso do deputado mais votado do Amazonas acusado de encomendar crimes que apresentava no seu programa de televisão.’
LUTO
Thiago de Mello recitou ‘Cotovia’ para Armando Nogueira
‘Terrível ofício, o de despedir-se dos amigos. O poeta Thiago de Mello foi acordado na manhã desta segunda pela morte do jornalista Armando Nogueira, seu ‘amigo principal’ durante seis décadas. ‘Começamos a fazer jornalismo no mesmo dia, em 1952, e nunca mais nos separamos’, conta o escritor amazonense, enquanto chora no aeroporto de Manaus, à espera de um avião para o Rio de Janeiro.
Nas travessias aéreas, Armando e Thiago disputavam uma guerrilha de marchinhas e canções. Quem sabia mais jardineiras, auroras e chiquitas bacanas? Havia ainda os diálogos entrecortados por citações de Machado de Assis. De memória.
– Primeiro, andei de barco. Depois, andei de carro, para pegar o avião e ouvir a fala macia do meu amigo. Estive com ele há dez dias, falei no ouvido dele. Agora, vou pegar o mesmo voo. Só que dessa vez não vou ouvir mais a fala suave do meu amigo. Vou vê-lo dormindo pela última vez.
Armando Nogueira morreu a um dia do aniversário de Thiago de Mello, que completa 84 anos neste 30 de março. Nunca publicou um livro sem submetê-lo, antes, ao cúmplice de poesia. ‘Ele não era o melhor amigo, não. Era o amigo principal, era o amigo completo’, proclama o vago mago, como o definiu Pablo Neruda. ‘Me acordava para ler uma crônica’.
Há onze dias, no hospital Copa D’Or, o poeta de Barreirinha recitou o poema ‘Cotovia’, de Manuel Bandeira, no ouvido de Armando:
‘- Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que saudades me deixaste?’
‘Ele reconheceu minha voz e abriu o olho esquerdo’, descreve Thiago de Mello, perto de desligar o telefone: ‘Adeus, companheiro!’.
E adeus, Armando Nogueira.
***
Por que não terminar de ler o poema de Manuel Bandeira, na despedida do cronista de ‘Na grande área’?
‘Cotovia’
– Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que saudades me deixaste?
– Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe…
Voltei, te trouxe a alegria.
– Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.
– Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia…
– E esqueceste Pernambuco,
Distraída?
– Voei ao Recife, no Cais
Pousei na Rua da Aurora.
– Aurora da minha vida
Que os anos não trazem mais!
– Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
– Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.
(Manuel Bandeira)’
******************
Clique nos links abaixo para acessar os textos do final de semana selecionados para a seção Entre Aspas.