MEMÓRIA / JEAN BAUDRILLARD
Jean Baudrillard (1929-2007), 12/03/07
‘Entrevistei o filósofo francês Jean Baudrillard em três ocasiões. Os encontros ocorreram sempre no seu acolhedor e ensolarado apartamento parisiense, na rue Saint Beuve, próximo ao Jardim de Luxemburgo. A cada vez, a impressão deixada fora a mesma: afável, generoso e, sobretudo, um pensador irrequieto, irônico, provocativo, original, paradoxal e polêmico. Teórico da virtualidade, Jean Baudrillard deixou o mundo real, vitimado pelo câncer, na tarde de terça-feira 6 de março. No nosso último encontro, provocado pelo cancelamento de uma viagem sua ao Brasil, onde faria uma conferência, falou sobre a doença. Ainda debilitado por seu estado de saúde, o que o impediu de viajar, demonstrava ao mesmo tempo resignação, resistência e entusiasmo. Contou que, naqueles dias tépidos de outono, caminhava solitário na serenidade do Jardim de Luxemburgo. Ao final da entrevista, ofereceu-me um cálice de vinho, mas como outro compromisso me aguardava, não pude ficar para esticar a conversa. Passado algum tempo, ao atravessar um dia o Jardim de Luxemburgo, percebi sua silhueta: caminhava lentamente, solitário, ora fitando longamente o solo ora olhando para o nada.
Jean Baudrillard era um elétron livre no cenário intelectual contemporâneo, inclassificável. Seu pensamento só é decifrável à luz de novos conceitos, numa leitura de filtros próprios e raciocínio singular. Adulado no exterior – seja nos Estados Unidos, no Japão ou no Brasil -, era praticamente ignorado em seu país. Crítico das análises ideológicas e do que chamava de didatismo pseudopolítico dos intelectuais de seu tempo, ele assumia uma solitária condição de pária entre os representantes da French Theory, sem por isso sentir-se menos comprometido com as coisas do mundo.
Tradutor de Karl Marx, Friederich Hölderlin e Bertold Brecht, influenciado por Friedrich Nietzsche, Roland Barthes, Georges Bataille e Antonin Artaud, o curioso e inquieto pensador passou pela patafísica do dadaísta Alfred Jarry até se aventurar, a partir do final dos anos 1970, nas trilhas que o levariam a um pensamento ‘transpolítico’, fragmentário e atraído pela radicalidade. Ao mesmo tempo crítico e teórico da pós-modernidade, conceito que depois passou a desdenhar, denunciava a persistente e obsoleta idéia de ‘dominação’ em um tempo de supremacia da ‘hegemonia’. A hegemonia, segundo ele, é o estágio máximo da dominação num mundo invadido pela banalidade e o virtual, feito de simulacros e simulação. O mais importante não é a realidade, dizia, mas a irrealidade, o ‘não-acontecimento’.
A recente guerra no Iraque ele definiu como um ‘não-acontecimento’, uma tentativa fracassada de apagar o verdadeiro e simbólico acontecimento: os atentados de 11 de setembro. Na sua análise, o terrorismo é o suicídio do Ocidente, agente e metáfora da desintegração interna de uma superpotência mundial sem inimigos visíveis no front de combate. Estamos, segundo ele, na quarta guerra mundial. Um conflito alimentado por uma nova Guerra Fria, provocada pela obsessão de seguridade imposta pela ameaça terrorista. Os valores universais perderam o trem da História, e os movimentos antiglobalização são primevos e impotentes. Vivemos tempos insolúveis, dizia Baudrillard, mas sem perder a esperança, mesmo que temperada por um otimismo amargo: ‘É desesperante, mas é melhor encarar as coisas de frente do que propor soluções anacrônicas’.
Para se manter como um ativo pensador diante das absurdidades do cotidiano e da irrealidade das coisas, inspirava-se no célebre personagem do clássico Bartleby, o escrivão – uma história de Wall Street, de Herman Melville. ‘Em relação ao mundo político e intelectual, minha solução é um pouco no estilo Bartleby, viver numa espécie de reserva mental, num universo paralelo. Não é uma solução ou uma estratégia da qual se possa fazer uma moral, mas uma tática existencial. Há um mundo selvagem que escapa a essa espécie de intoxicação universal’
Entrevista com Jean Baudrillard – parte 1
Em sua vida intelectual, o senhor presenciou os mais importantes ou midiáticos movimentos surgidos na França no século passado, como a moda existencialista, a chegada dos estruturalistas, Roland Barthes, Michel Foucault e Gilles Deleuze, Maio de 68, chegando aos os ‘Novos Filósofos’. Uma história intelectual do século 20?
Eu era jovem. Mas comecei com Georges Bataille, Antonin Artaud, no fim dos anos 1940. Depois, Sartre, certamente. Teoricamente e conceitualmente, foi sobretudo Sartre. Nos anos 1950, eu era alguém bastante entrincheirado, não era parisiense nem nada, ficava no meu canto. Havia me aproximado dos patafísicos, no fim do liceu, quando estava em Reims. Começou por esse lado, algo patafísico, poético. E depois tudo isso se politizou com Sartre, a guerra da Argélia. Passou-se a um nível bem mais teórico com Barthes, a semiologia. Houve o situacionismo, cheguei à universidade de Nanterre nesse momento, e depois veio 1968. Eu não me despolitizei, mas me ‘transpolitizei’. Minha reflexão política mudou, e no caso da escritura também. Houve os anos 1970, de Marx-Freud-Nietzsche. Mas, apesar de tudo, me encontrava um pouco só. A atualidade sempre me interessou, mas o ângulo já não era mais diretamente político, mas mais metafísico, teórico.
O senhor critica o didatismo pseudopolítico dos intelectuais e diz praticar um tipo de improvável gênero de ‘editorial metafísico’. É essa a melhor definição de sua singularidade?
É verdade que as crônicas que escrevi para o jornal Libération durante quase um ano podiam ser chamadas de ‘crônicas metafísicas’ ou ‘editorial metafísico’. Mas mesmo assim partem, quase sempre, de uma atualidade política, de fait divers ou de acontecimentos com diferentes interpretações possíveis. Mas sempre de uma maneira a passar através da política e, sobretudo, da ideologia. Critico a linguagem ideológica de editoriais de jornais, que de alguma forma vem sempre se instalar nas categorias preexistentes, como ‘esquerda’, ‘direita’ ou então fazem um crítica bastante piedosa. Esses tipos de discriminações já transgredimos há muito tempo, desde os anos 1960. Há um espécie de regressão. É muito difícil de manter esse rumo transpolítico. Mas diria também que é um pouco mais fácil por causa dos acontecimentos, que são eles mesmos transpolíticos, seja o 11 de setembro ou mesmo Maio de 68, que já era um pouco assim. Nenhuma análise política ou sociológica tradicional pode dar conta desses acontecimentos. É preciso uma outra abordagem ¿ não vou dizer radical, pois seria muito pretensioso ¿, mais paradoxal. Na passagem do político ao transpolítico, sempre mantive essa nostalgia de transcrever esses outros níveis simbólicos e paradoxais na atualidade. Sempre me mantive um pouco situacionista em relação a isso. A cada vez que ocorre algo, como o tsunami ou a crise na Europa, sinto uma comichão para escrever, e aí publico um artigo no Libération. Não serve para nada, mas é assim.
O que acontece agora, neste instante, com o pensamento francês, a chamada French Theory que o senhor integra, mesmo que um pouco à parte?
Eu sou um pouco à parte, mesmo sem ter escolhido isso. Não tive muita camaradagem intelectual. Houve embates, mas não muitos. Isso foi nos anos heróicos, 1970-80. Entre os amigos, havia Jean-François Lyotard, há ainda Paul Virilio e alguns outros, mas são raros. De qualquer maneira, não há mais cumplicidade, cada um está isolado, faz suas próprias coisas. Eu estou numa situação que já havia escolhido há bastante tempo, e assumo. Deploramos, hoje, essa perda de solidariedade ou, ao contrário, de confrontação, mas, no fundo, sempre funcionei só. Prefiro, antes de tudo, me opor aos acontecimentos, às instituições, do que a colegas. Não me vejo verdadeiramente como um intelectual. Para ser um intelectual é preciso pertencer a esse meio e se reivindicar como tal. Alguém como eu, que já fez um pouco de patafísica, não ousa mais se dizer um intelectual. Não tenho muito a ver com aqueles que fazem figura de intelectual hoje e que são, na maior parte, ideólogos. De qualquer modo, vejo que a maneira como falo das coisas não é ouvida, há um mal-entendido total em relação a isso. Há ainda uma zona filosófica, mas os filósofos também são uma nomenclatura, mesmo os bons, como Jean-Luc Nancy e alguns outros. Mas também não me incluo nessa tribo, nessa família. Há um tipo de gueto, inclusive na linguagem filosófica. Gostava muito de Jacques Derrida, mas também não partilhamos muitas coisas. Sou não caracterizável porque característico. Mas assumo isso completamente. Por vezes isso não é muito agradável, porque me sinto bastante solitário. A French Theory funciona bastante no Brasil, nos Estados Unidos, no Japão, mas não aqui na França. Sem nenhuma paranóia, aqui estou no índex por uma série de razões. Talvez por causa da política, da esquerda, das mulheres. Contrariei muitas pessoas ao longo do tempo, sem realmente ter buscado isso. Pode ser negativo, mas ao mesmo tempo se absorve um tipo de energia dessa situação.
Hoje, a produção cultural francesa é vista como um estado de decadência. Essa visão é correta?
Houve um apogeu, mas o canto desapareceu, o canto diferencial, enérgico, magnético que vinha dos anos 1960 até os anos 1980. Desde o começo dos anos 1980, senti um vazio, efetivamente, por causa da desaparição física de uma grande número de pensadores, mas sobretudo por uma forma de revisionismo. Houve uma radicalidade muito diferente, da qual eu fazia parte sem, no entanto, pertencer ao mesmo grupo. Houve um núcleo, que talvez já fosse o mesmo em relação aos anos 1930, já epigônico em relação a Nietzsche. Mas havia algo de bastante específico, e essa singularidade se diluiu quando chegaram os Novos Filósofos ¿ André Glucksmann e os outros -, que retomaram uma ideologia moral e humanista. O pensamento francês, ainda hoje, tem pouca influência e impacto no mundo, e é sempre a mesma equipe: Foucault, Deleuze, Lacan, eu. Num dado momento, lembro-me que no Brasil e na Argentina ocorriam coisas bem mais interessantes do que aqui, mas todo mundo lá tinha os olhos mirados para Paris. Falavam da greve de 1995. Eu dizia: ‘Mas, não, isso não é nada, a situação de vocês é muito mais radical!’. Mas os acontecimentos eram mais velozes do que nós. Acreditávamos que a teoria estava relativamente adiante, por antecipação, nos anos 1970, e desde então, na minha opinião, ela está em atraso. Mas em relação a quê?, essa é a questão. Não sabemos o que podemos antecipar. O pensamento ideológico, moral, neopolítico como se trama aqui não é uma antecipação. Não se trata de um julgamento de valor absoluto. Tenho mais cumplicidade, hoje, com pessoas como Peter Sloterdjik, Giorgio Agamben. Não creio que a situação atual do pensamento francês tem a ver com o destino político da França. O quadro, é verdade, é muito pobre, mas sabemos que o pensamento se desenvolve de outra forma. Às vezes é exatamente o oposto: um pensamento radical pode se desenvolver numa situação banal.
Onde está, então, o problema?
O problema é muito mais vasto. É que estamos numa situação de uma banalidade mundial. Em certo momento, a França foi emblemática nisso, mas é a situação mundial que se banalizou, exceto por alguns ultra-acontecimentos, que foram bem mais velozes do que nós. Não creio que seja o ‘intelectual europeu ocidental francês’ destinado a interpretá-la. Aliás, será que há uma interpretação possível no sentido clássico, uma análise, uma reflexão, uma consciência moral de tudo isso? Não creio. Essa é a radicalidade da própria situação. O que chamamos de intelectual ou intelligentsia, enfim, o pensamento no sentido reflexivo, paradoxal, e mesmo a ironia, tudo isso encolheu e está seriamente ameaçado. Nesse domínio, há uma implosão em favor do desenvolvimento de novas tecnologias, e nasce, suavemente, uma nova tecnologia mental que toma o lugar das idéias, do que chamávamos de idéias. Acho que vemos, talvez, uma espécie em via de extinção. Uma época intelectual pode ter o mesmo destino que uma espécie.
Vivemos ainda uma ‘não-realidade’ dos fatos? Existe hoje na França uma nova geração capaz de dar conta, intelectualmente, dessa situação?
O discurso geral ainda é aquele dos valores universais. Felizmente ou infelizmente, não sei, no mundial, no global a transcendência do universal desaparece. Não podemos esperar estar à altura dessa situação com um revisionismo reabilitando velhos valores, a ética e tudo isso. E hoje a imensa maioria do discurso é essa: o arrependimento e a tentativa de fazer reconciliações piedosas. Mesmo politicamente diria que a Europa é uma tentativa de reconciliação em nome dos grandes valores universais, a democracia e os direitos humanos. Acho que tudo isso não é a verdadeira atualidade, e se desenvolve por meio da informação, da mídia, e as pessoas vivem disso, fazem seus medos com isso. A verdadeira atualidade é rasteira, está em outro lugar, por vezes ela explode, e estamos sempre em atraso em relação a ela. O tsunami é uma metáfora disso. É uma catástrofe natural, mas, hoje, os verdadeiros acontecimentos assumem essa aparência também. Quando eles chegam, ninguém pôde prevê-los, e se diz que os serviços secretos não estavam preparados. Mas não se trata de uma questão de serviços secretos. Haverá, agora, sempre uma atualidade explosiva e imprevisível. E não se pode mais afrontar esses verdadeiros acontecimentos em nome de uma causa sagrada, moral. O que fazer? Não sei. Será preciso um pensamento que se desenvolva sem levar em conta verdadeiramente essa soi-disant realidade, porque ela é completamente fake; um pensamento que se processe num mundo paralelo, no máximo, no nível dessa realidade, mas que proceda por acontecimento também, para tentar provocar brechas, algo que resista a essa troca generalizada e de banalização total.
De que forma isso pode ser feito?
Isso pode ser feito por meio da linguagem, da literatura, não sei. Não acredito muito nisso, mas pode haver exceções. Ou então por meio de singularidades, aparentemente insignificantes. Creio que há uma possibilidade de cristalizações singulares em certo número de coisas assim, e o pensamento poderá, talvez, também proceder desse modo. Mas vejo com dificuldade ele passar a esse procedimento com toda a tecnologia digital e informática. Mas não ouso me aprofundar nisso, pois sou um estrangeiro na manipulação. Tento compreender, e acho que seremos, de todo modo, varridos por isso. Mesmo na área da fotografia, vejo que passaremos ao digital, e eu não poderei seguir isso. Um dia isso acabará para mim. Estive no encontro internacional de fotografia de Arles, e vejo que cada vez mais há menos imagens. Há essa espécie de cálculo integral do mundo, o que chamamos de realidade integral. E o pensamento só terá um sentido sobre você se criar um movimento de resistência a isso. É o que estou habituado a fazer. Politicamente não vejo o que poderia fazer. Nunca assinei petições – exceto uma por Edgar Morin, um amigo -, pois acho completamente inútil. As pessoas têm necessidade de uma boa consciência. Para mim, uma má consciência é suficiente. E não é fácil.
O senhor traça uma linha que vai do crash financeiro de Wall Street de 1929 ao desmoronamento das Torres Gêmeas, em setembro de 2001, e vê entre esses dois acontecimentos um atalho de uma globalização em marcha, numa queda fatal segundo uma lógica inexorável, além dos progressos das sociedades e dos esforços humanos para controlar seu curso.
É uma queda. E uma queda é quase sempre fatal. A crise de 1929 foi uma espécie de implosão de um sistema. O 11 de setembro é mais profundo e mais vasto, mas também é um crash. A crise de 1929 propulsou o sistema numa órbita muito mais eficaz. Mesmo no caso das guerras. Houve um tipo de centrifugação das coisas. E esse sistema superdimensionado levou um sério golpe com o 11 de setembro, com conseqüências inacreditáveis, e que pressagia tudo o que se segue. É um processo. Não é o fim, mas o começo de algo. E que, como todos os começos, é uma queda fatal. Não sou fatalista, mas ainda prefiro o fatal ao banal. E essa evolução fatal é rica e complexa, não é pessimista, mas é uma situação original, radicalizada, diante da qual somos impotentes. Há uma forma de energia diferencial mesmo no crash. Ainda estamos muito próximos do 11 de setembro para saber no que isso vai dar. Não é a continuação do terrorismo pontual ¿ Madri, Londres -, mas no fundo é o lado espetacular, quase uma espécie de banalização.
Que relação o senhor vê entre os atentados do 11 de setembro e a guerra contra o Iraque?
Há, evidentemente, uma lógica na estratégia, no acontecimento político e militar. Há um tipo de encadeamento, mas também uma antinomia. Para mim, isso é o mais importante. O único e verdadeiro acontecimento foi o 11 de setembro, e a guerra é o não-acontecimento, algo que foi feito para eliminar o primeiro. A relação entre os dois não é lógica, mas é uma contratransferência. A guerra é uma reação, um meio de vencer um desafio. É uma guerra à imagem do conflito do Golfo, são quase guerras clonadas. Elas não têm sentido, são injustificáveis, mas isso já é outra coisa. A questão não é ‘a favor ou contra’, mas saber o que significa essa guerra.
E qual é o significado?
Ela existe por outra coisa, não tem sentido nela mesma, e nem mesmo tem um objetivo direto. Saddam Hussein não era mais do que a sombra de um fantasma, ao contrário de Bin Laden, que tem uma outra dimensão. Há, inclusive, essa história sobre a estátua de Saddam derrubada na praça no centro de Bagdá: se disse que era a estátua de um sósia de Saddam. Gosto muito dessa história, pois é a imagem de todo o resto, tudo é sósia, tudo é artefato. Foi um acontecimento trucado. O 11 de setembro foi algo simbólico no sentido mais forte. Já a guerra é algo no qual tudo foi encenado, programado e mesmo vencido de antemão. Foi um acontecimento sem surpresa. Mesmo assim, houve um pequeno momento em que se pensou que o Iraque iria resistir, e o não-acontecimento estava quase se tornando um acontecimento.
O que sobrou desse ‘não-acontecimento’?
O fato de os Estados Unidos serem uma superpotência mundial não elimina o desafio mortal que eles receberam no 11 de setembro. O desafio pela morte, essa é a idéia do Power Inferno, de uma estratégia mundial de ‘zero morte’, da eliminação de toda adversidade, de uma prevenção total respondendo à instalação da morte colocada pela terrorismo. Não vejo o terrorismo em nome de uma religião ou de um fatwa. O ato em si não tem sentido, mas é fortemente simbólico. A guerra ao lado disso parece derrisória, mas nos fizeram consumi-la até o fim. É como os reality shows. Claro que haverá conseqüências políticas, geoestratégicas, mas, simbolicamente, a guerra não poderá apagar o verdadeiro acontecimento. Para que isso ocorresse seria preciso um outro acontecimento, o que não foi o caso.
Entrevista com Jean Baudrillard – parte 2
Num debate com o filósofo Jacques Derrida, sua tese foi questionada: ‘Como dizer que uma guerra é virtual quando há milhares de mortos reais?’.
Ele dizia que os mortos iraquianos, o petróleo, tudo isso não é virtual, é real. Acho um erro. Se começamos a debater baseados no argumento das vítimas, não há discussão, não há mais nada a dizer. Mas o que eu quero é compreender – é ainda um direito do homem, não? (risos). Não quero ser enganado. E nesse caso há um mistificação. Sou contra também essa superpotência mundial, mas não nessa forma antiglobalização. Sou radicalmente contra, mas quero saber de que ponto de vista podemos realmente combatê-la. Se deploramos as vítimas ¿das Torres Gêmeas, do Iraque ¿ e nos detemos nessa moralização, acabou. O problema, infelizmente, se tornou muito mais simples, mais violento e mais radical. E minha teoria é a de que a análise seja também mais violenta e mais radical. E nesse momento, evidentemente, ela se torna tão inaceitável quanto o acontecimento. Mas, num sentido, ela faz parte do acontecimento, como as imagens. Ela participa um pouco do mal. Hoje, os movimentos antiglobalização, no fundo, querem ser mais moralistas do que o sistema, mais humanos. Tudo muito respeitável, mas creio que estrategicamente, politicamente não serve. Hoje, não há nada mais a fazer senão colocar o problema a partir do terrorismo, é o único contraponto. E o terrorismo não é forçosamente violento. Certamente que há formas violentas. Mas há um terrorismo soft, mesmo no nível dos indivíduos e dos grupos. Ainda precisa ser feita uma genealogia da violência. Há a violência nos subúrbios, os carros incendiados e tudo mais. Pode-se dizer que se eles tivessem o que comer, tudo seria tranqüilo. Não é verdade. Há os que têm o que comer, o conforto absoluto, mas, num dado momento, há um tipo de recusa, de negação de uma situação que se tornou insuportável. Os graffiti também são um ato terrorista, por exemplo. Tudo isso é of limit em relação ao sistema. Essa inversão do Bem em Mal, como se diz em inglês, o despair of having everything, o desespero de possuir tudo. Há essa história sobre a obesidade nos Estados Unidos. Descobriu-se um cacto da África do Sul, graças ao qual os bantos sobreviviam à fome, já que não tinham nada para comer. E agora esses cactos são usados como dieta para os obesos americanos, para curar aqueles que têm comida em demasia. Há uma ironia feroz nessa história. Se vamos longe demais no bem, no conforto, na superabundância de tudo, num dado momento ocorre algo de perverso.
Como o senhor acompanhou essa guerra ‘não-acontecimento’ no Iraque?
Somos tomados pelas imagens e forçados a saber o que acontece. É algo espetacular, mas bastante abjeto, obsceno, aterrorizante pelo lado da superpotência americana, e pelo outro lado, no qual não há inimigo, não há confrontos. A guerra foi um objeto perdido, não se sabe o que fazer dela. No imaginário, estamos sempre ao lado das vítimas, mas, objetivamente, estamos do lado da superpotência que ataca, e é uma situação insolúvel. Para os americanos, não há inimigo, mas sim um terrorismo fantasma a ser eliminado, dentro da estratégia da prevenção. É o caso do filme Minority Report, que trata da prevenção do crime antes que ele ocorra e, portanto, não se saberá nunca se ele existirá. A guerra é algo programado à repetição, ela não começa verdadeiramente, mas também não terminará. É interminável. Já o acontecimento é totalmente imprevisível e, quando ocorre, termina, e ele é, de uma certa maneira, indestrutível. Nesse confronto, há um antagonismo no qual o terrorismo é, ao mesmo tempo, agente e metáfora. E não é somente o terrorismo islâmico, mas tudo que de alguma forma resiste, toda singularidade, toda recusa a essa espécie de império unilateral. A verdadeira guerra é essa, e não o confronto no Iraque. Essa é a quarta guerra mundial. Nunca houve um verdadeiro front de guerra islâmico. Bin Laden e todo o resto não são um front, é um confronto impraticável. Não há uma verdadeira solução para essa guerra. Os americanos não querem ter inimigos, mas eles não têm verdadeiros inimigos, pois não há um face a face, não há combates. Ao mesmo tempo, eles são perdedores, pois o inimigo desapareceu, e isso é o pior que poderia ter acontecido. Isso é que faz, de uma certa forma, o inferno do poder.
O senhor coloca a verdadeira vitória do terrorismo na imposição ao Ocidente de uma obsessão pela segurança e fala de uma nova Guerra Fria.
O terrorismo de seguridade é uma guerra fria estendida a todos os países, a todas as populações. Veja-se o que ocorreu no teatro de Moscou, quando o poder se voltou contra sua própria população para exterminar os terroristas e os reféns ao mesmo tempo. Essa é a verdade da situação em que vivemos. O terrorismo que está aí é, ao mesmo tempo, o produto e o contraproduto da situação atual. Ele não é o anarquismo do passado, nem também o terrorismo palestino. Não é o terrorismo suicida perdedor. Ele coloca a contestação, também pela morte, mas não tem os meios, pela globalização, de combater a superpotência segundo sua própria lógica. Aliás, ele é criticado por ser tão globalizado quanto os outros. Infelizmente, é a grande objeção dizer que o terrorismo, finalmente, é exatamente o espelho do global. Há essa teoria do duplo obsceno, de que eles funcionam juntos e são cúmplices. Eu já não concordo com isso. Há realmente uma fratura, um antagonismo radical.
O choque de civilizações é uma teoria que já teria nascido ultrapassada?
Não são as civilizações que estão em questão, nem as culturas ou as religiões. Há um choque, mas é um ‘choque e pavor’, como dizia o outro. Nesse choque há um só conjunto, que é a globalização. Não se trata de um choque entre duas coisas. Mas é a superpotência em si que se desfaz e se desintegra. O terrorismo é o agente, o operador dessa desintegração interna da superpotência. Isso é o importante, e sem isso não compreendemos nada. Não há duas superpotências adversas em guerra. Hoje não é mais assim. Já há muito tempo os americanos estudam estratégias da guerra assimétrica, na qual os dois inimigos não estão no mesmo plano. A chave da situação é que toda superpotência globalizada não pode mais lutar, na falta de inimigos, de adversidades, de alteridade. Dizer que o terrorismo tem uma causa – seja da violência histórica, do islamismo – é ainda menos grave do que dizer que, no fundo, o terrorismo é a autodestruição da superpotência mundial. Quando disse isso em Nova York, não gostaram.
O senhor diz que o terror está no ar e que o terrorismo não faz mais do que cristalizar partículas em suspensão.
A situação do império deflagra por tudo, não só no Islã, uma reação. Mesmo no espírito das pessoas, é normal. Daí essa espécie de jubilação, fascinação em relação ao 11 de setembro, é inegável. Podemos nos sentir espantados, transtornados, mas isso não impede essa coexistência no nosso imaginário do transtorno e da jubilação, mesmo naqueles que depois fizeram todo tipo de considerações morais. Não é racional, mas é algo profundo da ambivalência das coisas, nem se precisa ir muito longe na psicanálise. E nesse caso há uma espécie de extrapolação política, e há um aspecto psicológico também. As imagens do 11 de setembro são midiáticas. Elas fazem parte do acontecimento. É um momento, como o ato em si, instantâneo, e terá quase uma repercussão viral. E agora vemos o vírus asiático, as catástrofes, os acidentes – tudo isso, objetivamente, é terrorismo. Mesmo uma catástrofe natural é terrorismo. A natureza é destruída, domesticada, explorada e, de vez em quando, ela se vinga. Racionalmente, isso não tem sentido, mas, simbolicamente, sim. O terrorismo apanha tudo, é epicentral. E, depois, tudo que se produz, e que desestabiliza um poder qualquer, se torna terrorismo. O próprio poder faz essa dedução, pois tudo que o ataca é designado como terrorismo. Em vez de se dizer que é uma contestação política ou algo parecido, é mais simples definir como terrorismo. Mesmo como um vírus. A questão do terrorismo objetivo amplia ainda mais o problema e possibilita sair da condenação moral e política em termos de civilização. Fala-se em eixo do mal, quando as coisas são bem mais complicadas. Não há um eixo, mas um paraeixo, o eixo que passa mesmo no centro da superpotência. Não é mais um eixo, mas uma nebulosa do mal. É preciso exterminar tudo, se se quer resolver o problema.
Os valores universais, segundo o senhor, tiveram sua chance histórica, mas a perderam.
Os valores universais, na esfera da modernidade, foram dizimados, aniquilados. Não há mais valores de transcendência, estamos num funcionamento total, operacional, estratégico. Valores como a democracia ou direitos humanos são instrumentalizados a serviço da própria superpotência, que age em contraponto ou mesmo em contradição com seus próprios valores. O problema é que todas as soluções apresentadas ao terrorismo e à violência recorrem a esses valores universais. Prega-se a volta à política no sentido tradicional, aos valores morais. Não tenho ilusões em relação a isso. Há um clash nesse sentido. Nessa guerra, por exemplo, vimos Jacques Chirac e a ONU, uma instituição internacional, proferirem seus discursos morais, que foram logo varridos de cena sem problemas. Chirac fez seu pequeno golpe de publicidade e, no final, não se pode dizer que se ridicularizou, mas se colocou numa situação um tanto delicada. Vemos, de facto, que essa universalidade não atua mais. A superpotência age sozinha. Mas ela tem diante de si algo que também não conhece o universal, que é o terrorismo. E por causa disso ele é o adversário em igualdade à própria superpotência, pois nenhum dos dois não atua mais no universal e na negociação.
Qual o papel da globalização nesse contexto?
Discuti com intelectuais que dizem que a globalização é o prolongamento do universal. Para mim, há uma ruptura entre os dois. A globalização é a realização integral, mas a realização universal está ligada à transcendência, ao domínio simbólico das utopias, de valores ideais. Quando eles são pragmaticamente operacionalizados, são também executados, no duplo sentido do termo. Eles são efetivados – a circulação total, o livre comércio, o livre arbítrio, fazem parte de valores universais -, mas, ao mesmo tempo, há uma precipitação e um tipo de anulação desses valores, pela sua realização. Isso faz com que entre o universal e o global não haja uma continuidade histórica. Mesmo na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria estávamos numa relação em que havia um tipo de equilíbrio. Mas, hoje, não. E se nos obstinarmos a querer retomar os velhos valores, não funcionará. À primeira vista, é algo desesperante, mas acho que não é nunca desesperante ver as coisas de frente. É melhor encará-las de frente do que propor soluções sem sentido, anacrônicas.
Qual é a confusão de valores hoje?
O que está em questão é a modernidade. A modernidade como progresso contínuo, como História. Com o pós-moderno já temos um questionamento da modernidade, já é uma passagem além do ‘tudo é aceitável’, do ‘não há mais valores absolutos’, os grandes ideais acabaram. Já é uma decomposição da modernidade. Hoje, o global talvez seja também um acontecimento, uma ruptura. Não é o contrário, mas uma outra coisa. É algo instável e que joga com a instabilidade. Não há mais meios de encontrar uma ética qualquer. Tenta-se encontrá-la no nível genético e outros, mas não se consegue. Não se consegue saber onde está o limite do humano. Não conseguimos mais definir nem mesmo os direitos humanos. Qual o direito de ingerência? Há direitos para todo mundo hoje. Há o direito da vítima e o do carrasco, o direito do bebê de não nascer. Chegamos a uma espécie de confusão, não há mais demarcações. Não sabemos onde estamos na questão do verdadeiro e do falso, do Bem e do Mal. Hoje há, novamente, uma tentativa desesperada de fazer com que exista o Bem e o Mal. Uma tentativa também dos que estão no poder nos Estados Unidos, os falcões americanos. É uma tentativa de recriar valor, reencontrar o real depois de toda essa realidade virtual, Matrix e tudo mais. Refazer o real e dizer: ‘Isso é real’. Como é quase o pânico, todos querem reencontrar bases. Estamos todos divididos. Temos vontade de que não ocorra nada, que se tenha segurança, racionalidade, realidade. E, ao mesmo tempo, temos vontade que ocorra algo, que se passe um acontecimento que mexa com as coisas. Temos vontade dos dois: de banalidade e de fatalidade.
O senhor aponta a hegemonia de hoje como uma forma de dominação total, alerta para a ilusão democrática, o fim do sistema de representatividade, e denuncia aqueles que ainda proclamam a imaginação no poder, como os nostálgicos de Maio de 68. Para onde estamos indo?
O que vemos emergir é uma espécie de energia irredutível. Mais o sistema se globaliza, mais cria discriminações. Essa globalização é também uma fratura total, cada vez mais haverá dois universos paralelos que não terão mais nada em comum. Há nisso um tensão potencial muito forte. E há uma resistência por todo lado e em todos os níveis contra essa homogeneização total. Se chegarmos ao fim dessa globalização, será a fase terminal, a solução final, a abolição de toda singularidade. Em cada sociedade e em cada indivíduo há algo que resiste a isso, que diz ‘não’. O ‘não’ do referendo francês contra a Constituição Européia eu analisei simbolicamente, além do aspecto político – que não me interessa -, como uma denegação, uma recusa, como se as pessoas tentassem dizer ‘parem de se preocupar conosco, parem de trabalhar para o nosso bem’. Recusa-se essa hegemonia, que é o Império do Bem, pois tudo isso é em nome do Bem, da felicidade, da democracia, do progresso, da técnica, e se entra em uma maquinação infernal. E isso as pessoas sentem. Não é preciso ser politicamente à esquerda ou à direita para sentir isso. Na minha opinião, uma parte disso se exprimiu no ‘não’ do referendo, mas, sem nenhuma dúvida, também está em algum lugar por trás do terrorismo. É a face emergente violenta dessa denegação, dessa desaprovação silenciosa. Lia há pouco tempo O Canto do Carrasco, de Norman Mailer. No livro, o condenado à morte quer ser executado. E, em nome da democracia e dos direitos humanos, não se quer mais executá-lo. Ele diz: ‘Não, vocês escolheram me matar, então me matem, assumam suas responsabilidades’. É uma crítica fantástica da sociedade em suas contradições totais. Eles o condenaram à morte e querem forçá-lo a viver, e ele quer ser executado. É esse desafio, essa denegação da ordem estabelecida, que numa hora condena à vida, outra hora condena à morte. Pode-se também pegar o exemplo de Bartleby, que também diz ‘não’, sem razões particulares. Não se pode dar razões particulares a essa denegação, a essa recusa, senão que nos sentimos completamente despossuídos, completamente reféns, e isso ninguém quer. As coisas andam e a máquina funciona, mas acumula-se também, potencialmente, uma espécie de estoque de energia reversível, inversa.
Qual será o destino dessa energia acumulada?
Em que isso vai dar? Não sei. Mas é certo que há uma carga cada vez maior, e o sistema registra essa resistência e a remete na comunicação e também na guerra. Os Estados Unidos fazem o trabalho, mas não são os únicos, não se pode torná-los particularmente responsáveis. Mas todo o trabalho se faz no sentido de compensar essa espécie de defecção, de pessoas que não querem mais jogar o jogo. E o ‘não’ à Europa foi isso. ‘Essa Europa, essa espécie de jogo com trucagens, que vem de cima, que trama, não compreendemos nada, não queremos, não sabemos bem por que, mas preferimos o ¿não¿’. O problema é que, efetivamente, não há nada hoje, nem grupo, indivíduo que possa dispor de um outro jogo e de uma outra regra do jogo. Criticamos todas essas formas lingüísticas, étnicas, religiosas, que chamamos de revisionismo, fundamentalismo, tudo isso é bastante negativo. E é verdade, de um certo modo, pode parecer como uma regressão, mas é um sintoma desesperado de pessoas que procuram uma regra do jogo, porque já não há mais. A desregularização é virtualmente total.
Nesse contexto, o senhor acredita que a União Européia é um tipo perverso de simulacro?
Para ser perverso é preciso antes uma verdadeira moral, uma ordem de valores. Essa ordem não existe mais tanto. Mas, em todo caso, que a União Européia seja uma espécie de artefato, sim. Há muito tempo que as nomenclaturas políticas européias são cúmplices. Para implantar a Constituição precisava-se do povo como um álibi. Até então, tudo funcionava mais ou menos bem, como o euro, mas eles meteram os pés pelas mãos com a história do referendo, em vez de fazer passar isso no Parlamento. Eles pensaram que haviam enrolado bem o povo. Mas deviam ter notado que o momento da decisão sobre o Tratado de Maastricht foi também algo bastante frágil, pelo menos na França. Mas achavam que a sociedade havia feito progressos, estava mais integrada, civilizada, e que o ‘sim’ ganharia. Pelo lado dos dominantes, incluídos os intelectuais e a mídia, houve um contra-senso total, porque eles se cegaram com suas ideologias do Iluminismo, do progresso, da razão. É um imenso contra-senso de uma modernidade que pretende possuir os valores e impô-los aos outros. Toda essa configuração do progresso, da técnica, da razão, da democracia e dos direitos humanos, à força de se repetir, sem mesmo acreditar acaba-se acreditando. É uma auto-intoxicação. Essa Europa é um tipo de auto-intoxicação, que tenta se projetar numa realidade. Mas a realidade não existe mais, e é aí que eles se enganam. Não há mais um terreno sólido no qual concretizar as coisas. São problemas que ultrapassam de longe a Europa, mas nesse caso particular é um bom exemplo. A Europa é apenas um subproduto dessa ordem mundial virtual.
Há uma tendência na Europa de pensar a si mesma como um modelo alternativo ao dos Estados Unidos.
Eu não acredito nem um instante nessa idéia da Europa como um modelo de civilização alternativa, do universal contra o mundial, mas é o discurso que se mantém. Acho que em termos de inteligência política, nosso novo papa, Ratzinger, foi bem mais forte quando dizia que mais a Igreja se confunde com o mundo, mais ela se torna supérflua. É um pouco a mesma coisa. Há um modelo, e mais o modelo quer se confundir com a realidade que não existe mais, mais ele se torna supérfluo. O papa diz: ‘Eu quero salvar a Igreja, não quero tentar seguir o curso dos costumes; se a Igreja quiser existir, deve manter sua distância e se fazer como modelo’. Isso é perfeito, acho que ele é de uma grande inteligência política. Eu pouco me importo em salvar a Igreja, mas de seu ponto de vista está correto. E os europeus de Bruxelas não foram inteligentes o bastante para ver isso. E isso vale também para a arte. O que podemos criticar é ela ter desejado se confundir com a realidade, assumir a realidade e reproduzi-la na sua banalidade, e mais isso ocorre, mais se torna supérflua. É a mesma coisa para a mulher. Mais ela busca se confundir com o homem, o feminino com o masculino, assumir o mesmo poder, mais se torna supérflua. Ao dizer isso, claro que não me fiz muitas amizades. Em relação à Europa, no começo eles tinham a arrogância feliz do ‘sim’ triunfante e agora têm uma arrogância infeliz. Mas nada mudou, eles ainda se pensam como a consciência moral e detentores dos valores universais. Há uma espécie de cegueira nessa boa consciência triunfalista e imperialista.
Parte de seu trabalho procura identificar na cultura e sociedade norte-americanas os elementos que compõe a chamada pós-modernidade. Qual o papel ocupado pelos EUA nas ‘guerras culturais’ em processo hoje?
O conceito de pós-modernidade me é um tanto indiferente. Mas é verdade que todos os elementos estão lá, mais sensíveis, mais banais, e de uma certa maneira mais visíveis. Os EUA são um laboratório experimental incrível. Hoje já não vou lá tanto como antes, pois me cansa. Mas ainda assim permanece como o epicentro. Mas também não se pode fazer dos EUA o estrategista que se aproveita de tudo. Sendo o espaço-tempo originário da globalização, eles são tão vítimas como os outros. Assim como o Islã não é a encarnação do mal e de uma resistência ao Ocidente e à modernidade. Isso está por todo lado. Do mesmo modo, não se pode estigmatizar os EUA. Tudo isso é simplificação, e caímos no que é ideologia. Mais avançamos, mais as coisas se coagulam de forma idolátrica, ideológica. O grande problema – que é um afrontamento, e não um choque de civilizações -, é o grande antagonismo mundial, mentalmente presente no interior de cada sociedade, relacionado à hegemonia. Na dominação era diferente, havia uma estrutura oposicionista, dominantes e dominados, conflitos, revoltas. Na hegemonia, não: é uma estrutura global na qual todo mundo é cúmplice. Infelizmente é assim. A síndrome de Estocolmo de tornou universal também. Todo mundo é refém dessa hegemonia, inclusive os seqüestradores. Essa globalização, dada como uma hegemonização, unificação, interação global, de fato não é verdade, pois cria cada vez mais uma verdadeira discriminação e uma fratura muito mais decisiva. Não é a fratura dos países pobres contra os países ricos. Claro que tudo isso está misturado. Mas há outra coisa. Não se deu conta da passagem do estado de dominação ao estado da hegemonia, e todos os dados mudaram com isso. Na queda do comunismo havia um afrontamento. Mas a hegemonia é outra coisa. Não é mais uma questão de relação de forças. É a própria estrutura que se desloca. Estamos num outro ciclo.
Um ciclo que, segundo o senhor, é pouco percebido. Por quê?
Enquanto não fizermos a distinção entre hegemonia e dominação não conseguiremos olhar com clareza. Isso implica revisar todas as análises do capital e do capitalismo. Não é fácil. Pois ainda há uma distribuição desigual, há coisas que estão sob a ordem da dominação, exploradores e explorados, senhores e escravos. Mas há outra coisa que se desenvolveu muito mais e que não é mais dessa ordem e lógica. Por exemplo, quando se imputa o terrorismo à miséria dos povos oprimidos. Pode me parecer correto, mas não é o fundo do problema. Nessa hegemonia mundial, em cada indivíduo, mesmo nos privilegiados, há uma parte que recusa isso. Está aí a totalização do mundo, a realização incondicional do mundo. A crise de 1929 pode ser simbólica da problemática de todo o século 20, mas, hoje, não é mais isso. Não há mais verdadeiramente uma lógica histórica de análise. Enquanto havia história, de uma certa maneira podia-se antecipar ou prever certos conflitos, as contradições. Havia ainda uma dialética, uma racionalidade de previsibilidade possível. Hoje não estamos no fim da história – no sentido de Francis Fukuyama -, mas no fim do movimento dialético, da modernidade em geral. É mais difícil refletir as coisas quando não há mais o espelho da história. Todos os espelhos se quebraram, o espelho da história, da representação. Pode-se retomar o exemplo da fábula O estudante de Praga (filme do alemão Henrik Galeen, 1926), em que o personagem vende sua imagem ao diabo, e no espelho ele não tem mais imagem. Na cena final, o diabo lhe oferece devolver a imagem em troca de sua alma. Ele atira no espelho e morre. Mas nos fragmentos do espelho, reencontra sua imagem. Nós estamos num universo fragmentado, fractal, todos os espelhos estão quebrados, e talvez que nos cacos possamos encontrar a singularidade, uma imagem outra.
Como o senhor vê um país como o Brasil e sua cultura no processo de hegemonia e de ‘canibalização’ do qual fala?
O Brasil permanece como um forma utópica, talvez, mas simbólica, com uma energia simbólica. Mais do que a Amazônia como reserva ecológica, vejo o Brasil como reserva simbólica. Ainda acredito nisso. A política no Brasil vive um momento difícil, mas não é isso que conta mais. Vejo nessa forma de Carnaval-canibal uma espécie de potencial canibalesco, que é uma força adversa, uma estratégia de absorção antagonista em relação a essa potência mundial. Acredito ainda nessa carnavalização do mundo como um simulacro universal, mas a canibalização como uma reação, uma reversão, uma retomada potencialmente violenta, mas não necessariamente. O Brasil, não tanto Lula, permanece como um ponto de esperança.
Mesmo assim, ouvindo o senhor falar, é difícil vislumbrar uma saída para esse impasse deste início de século.
Não vejo como poderia se constituir uma resistência no sentido de reencontrar uma continuidade alternativa. No momento, efetivamente estamos numa situação insolúvel. É uma boa coisa que essa grande superpotência mundial seja radicalmente questionada por algo que a atinja realmente, que a deslegitimize, que seja provado que ela não é invencível. É a única chance de se poder tentar pensar em outra coisa. Em relação aos atentados do 11 de setembro, aos terroristas, certamente que suas razões e motivações são más e não são aceitáveis, mas falo do acontecimento em si mesmo. Evidentemente que não se pode fazer disso uma regra de conduta, não é possível nem politicamente nem moralmente. Mas, de alguma maneira, é a única nova cena diante de uma tal coalizão de poder. Quando meu amigo Paul Virilio (pensador francês) fala de uma guerra civil planetária, ele não está errado. Há uma desintegração interna. O poder elimina seu próprio objeto. O objeto sobre o qual ele vai exercer um poder, ele também o extermina.’
TELEVISÃO
Difícil ser ator, 12/03/07
‘Entrei em casa, liguei a TV e lá estava Fábio Assunção, em meio a um mar revolto. Mar revolto? Parecia. Já vi efeitos especiais piores e melhores. Enfim, tendo concluído que era mesmo um mar revolto e que ele estava em sérios apuros, fiquei feliz, certo de que ele se salvaria.
A outra opção, ele vir a se afogar, seria maravilhosa. Sonhei sempre com um atrevimento desses. Bruce Willys ou Mel Gibson ou similares do gênero, na primeira seqüência do filme, no corre, corre, atira, atira, levam um balaço no peito e morrem. E o filme segue com os secundários.
Fiz o mesmo exercício com Fábio Assunção, pois na verdade, gosto bem pouco desse ator. Quando ele diz ‘bom dia’ eu sempre faço questão de checar se de fato é dia. Tenho enorme dificuldade em acreditar nele, enquanto ator, diga-se.
Mais uma vez meu sonho não se realizou e ele foi salvo pela valente Alessandra Negrini, que decidiu encarar aquele mar enfurecido em um pequeno barco. É verdade que no local onde o barco estava a tempestade parecia estar bem mais amena.
Espetacular a frase dita por Fábio assim que entra no barquinho: foi algo parecido com ‘pensei que eu ia morrer’.
Mais uma vez meus sonhos foram destruídos. Imagino dezenas de outras frases mais interessantes que poderiam ter sido ditas naquele momento. ‘Oi. Você vem sempre aqui?’ ou ‘Ainda bem que você apareceu. Eu esqueci um feijão no fogo, lá em casa.’ Quem sabe: ‘Será que eu vou me apaixonar por você e juntos enfrentaremos mares muito mais revoltos do que esse, mas no final acabaremos juntos e felizes?’
Quando um galã está na parada, seja em um filme, novela, seriado, dificilmente algo inesperado acontece com ele.
E se você procura se surpreender com as desventuras de um candidato a ator, recomendo fortemente a série EXTRAS. Ela foi criada e é interpretada pelo inglês Ricky Gervais, que também criou o impagável The Office.
Extras é de uma maldade sem precedentes. A série mostra a vida de Andy, que aos 40 anos decide ser ator. Obviamente só consegue ser um ‘extra’.
As negociações são enormes, complicadas e quase sempre sem resultados positivos quando ele tenta convencer alguém: diretor, roteirista, assistente, camareira, amigo do primo da tia do cunhado da sogra do produtor a lhe dar uma fala. Uma frase que seja. Nos capítulos atuais ele conseguiu, finalmente, estrelar um seriado cômico que está sendo considerado por toda a crítica uma das piores coisas já produzidas na história da TV. Vai ao ar pela HBO. Como os horários são muito variados, sugiro pesquisar no site. Mas não deixe de ver.’
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