VENEZUELA
Polêmica RCTV: imprensa, política e democracia, 18/06/07
‘De Buenos Aires, Argentina – Quantas pessoas de todas as idades e condições sociais saíram às ruas no sábado, 2 de junho, para apoiar o governo do presidente venezuelano Hugo Chávez? O presidente apelou uma vez mais pela mobilização das massas a fim de enfrentar as escaramuças que a oposição iniciou em defesa da liberdade de imprensa.
Mesmo com fotografias aéreas e cálculos sobre a média de pessoas por metro quadrado, é difícil calcular um número rigoroso. Mas um dado indisputável pode ajudar a entrever as magnitudes que estiveram em jogo no franco confronto social que vem transformando a Venezuela de minuto a minuto: até o dia 1° de junho, em quatro finais de semana consecutivos, 3,3 milhões de cidadãos haviam realizado inscrições provisórias para o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), a nova agremiação criada por Chávez. No sábado, dia 2, esse total subiu a 4.735 milhões de inscritos. Ou seja, um milhão e meio de venezuelanos se inscreveram no partido do governo em meio às acaloradas concentrações de massa geradas pelo caso RCTV. Quantos dos inscritos haviam participado anteriormente de manifestações de vontade política como essa?
Não é preciso conjecturar: essa adesão maciça põe fim a uma das incógnitas geradas pelo caso da RCTV, a operadora de televisão cuja concessão para utilizar o canal 2 da banda televisiva venezuelana não foi renovada pelo governo.
De acordo com os líderes dos protestos contra a decisão do governo, entre os quais Marcel Granier, presidente da RCTV, 80% da população rejeita a decisão oficial. Nas duas semanas anteriores a 27 de maio, essa aliança de oposição, que agrupa 26 partidos políticos, respaldada pelos principais canais de televisão, as rádios de maior audiência e a imprensa de alcance nacional, tentou mobilizar a sociedade venezuelana para se opor à vontade de Chávez e obter a renovação da concessão.
A hierarquia da Igreja Católica, igualmente, se pronunciou favoravelmente quanto à mobilização. Essa conjunção de forças encontrou sua maior expressão no sábado, 19 de maio, com uma marcha por Caracas em defesa da RCTV. A rede internacional de notícias CNN informou que 10 mil pessoas participaram do protesto. Este correspondente estima que o total calculado pelo canal seja um pouco exagerado. Mas a diferença é irrelevante. Em 2 de junho, em magnitudes perceptíveis a olho nu e bem superiores a quaisquer margens de erro, se pôde comprovar de que maneira a sociedade venezuelana está posicionada diante desse acontecimento crucial para o processo político que a Venezuela vive nos últimos oito anos.
Mídia e liberdade
Para milhões de pessoas que observam os acontecimentos do exterior, é legítimo perguntar, como garantem Granier e repetem, com poucas exceções, os veículos de mídia de todo o mundo, se a decisão não representa um golpe contra a liberdade de imprensa, que serviria como prelúdio ao cerceamento de toda forma de expressão independente. As opiniões se formam com base em informações. E se estas coincidem, de maneira esmagadora, em reportar um ataque às liberdades, a conclusão se torna óbvia.
Mas será que a Venezuela está de fato enfrentando um ato arbitrário, o início efetivo de uma ditadura, tantas vezes anunciada nos últimos anos? Ou, pelo contrário, a decisão de não renovar uma concessão outorgada 53 anos atrás por um governo ditatorial, para abrir espaço a um canal que experimentará com um conceito diferente de comunicação social, não será um passo transcendental para a democratização da imprensa e da mídia?
Ninguém duvida que certas porções da sociedade rejeitam a decisão oficial. E se bem as pesquisas de opinião pública divulgadas pela oposição exagerem no afã de apresentar argumentos favoráveis às suas causas, é possível aceitar a hipótese de que considerável maioria dos entrevistas expressou opinião favorável à renovação da concessão da RCTV.
A verdadeira posição desses cidadãos que podem ter considerado desnecessária a recusa do governo em renovar a concessão, porque acompanham uma novela exibida pelo canal ou simplesmente o têm como parte de sua vida cotidiana há muitos anos, ainda assim se expressa quando a oposição os convoca a marchar contra Chávez, ao mesmo tempo em que o presidente os convoca a protestar contra as lideranças políticas que em 2002 conduziram um golpe de Estado, o qual não se torna menos brutal em sua condição antidemocrática por ter fracassado.
O mundo pôde ver centenas de milhares, milhões, de pessoas marchando em toda a Venezuela contra os propósitos golpistas indisfarçados daqueles que identificam a não renovação da concessão da RCTV com um gesto ditatorial. Se o apelo do presidente houvesse fracassado, não haveria dúvida de que o povo venezuelano rechaça o significado profundo das medidas com relação à RCTV, e seria necessário agir com base nisso. Mas o que fazer agora, tendo em vista que uma maré social efetivamente se expressou nas ruas, ainda uma vez, para defender a linha proposta por Chávez, que proclama a abolição do capitalismo e a edificação de um socialismo do século 21?
O que dirão os críticos, dentro e fora do país? Garantirão, como o vem fazendo sistematicamente a imprensa venezuelana, que as maiorias são ignorantes e estúpidas? Que são arrastadas por um demagogo populista? Mas o que vem a ser a liberdade de expressão, então? A possibilidade de que uma empresa mantenha por prazo indefinido o usufruto de um ponto no espectro radiotelevisivo, para ganhar fortunas e levar a milhões de telespectadores mensagens ideológicas, políticas e culturais definidas por algumas poucas pessoas, selecionadas por um executivo? Isso é democracia? Ou será que significa que milhões de pessoas sem acesso aos meios de comunicação podem expressar sua opinião quanto ao destino que pretendem seguir? Está aí a verdadeira questão que o caso RCTV propõe ao mundo.
Quem controla a mídia na Venezuela?
Em outra ordem de coisas, é necessário colocar em questão as afirmações quanto a um suposto processo de controle ditatorial da mídia na Venezuela. De acordo com dados que até agora ninguém questionou, e válidos para o final de 2006, 75,8% da banda radiotelefônica venezuelana está sob o controle da iniciativa privada.
A televisão privada na banda UHF detém 56,41% da distribuição nacional total, enquanto as emissoras oficiais só detêm 7,69% das freqüências. No que tange às estações de rádio, um documento da Conatel indica que as FMs operadas por empresas privadas detêm 73,1% das freqüências, ante 1,62% para a mídia pública. Um fenômeno novo, que vem se intensificando desde que surgiu a reação ao golpe fracassado de abril de 2002 e à sabotagem petroleira que começou em dezembro daquele ano e prosseguiu até fevereiro de 2003, foi a aparição de veículos de mídia alternativos: canais de TV e rádio criados e geridos pelas comunidades.
Novas leis e regulamentos, elaborados com o propósito de ‘democratizar a informação e a comunicação’, deram lugar à criação de 193 veículos de mídia alternativos, 167 dos quais emissoras de rádio e 28 estações de TV. Assim, a TV alternativa ocupa 35,89% do espaço de banda disponível, e as rádios comunitárias 27,07%.
Os números falam por si mesmos. Mesmo assim, há algo mais contundente que os números. Quem quer que passe 24 horas observando o funcionamento dos jornais, rádios e canais de televisão venezuelanos chegará a uma conclusão sem atenuantes: em país nenhum do mundo se pode ver, ler ou ouvir ataques às autoridades como os que são praticados pela mídia deste país. É duvidoso que se possa medir a liberdade de expressão por insultos proferidos contra o presidente, pelas falsidades regularmente propagadas sobre os temas mais diversos, pelas campanhas promovendo o desabastecimento e até pela indução a atentados contra a vida de Chávez. Mas se alguém deseja se utilizar desse critério de avaliação, não há dúvida de que na Venezuela existe liberdade de imprensa.
Degradação da comunicação, da mensagem e da mídia
Resta no entanto um ângulo de observação sobre o caso RCTV: o governo do Estado tem direito a tomar decisões diante do comportamento daqueles que detêm o direito de usar um meio de comunicação de massa? E, mais ainda: o governo não teria a obrigação de fazê-lo?
Um caso recente transcorrido na Argentina ilustra o gênero de dificuldade que a programação de TV comercial pode gerar. Um artigo publico no diário argentino ‘La Nación’, em 31 de maio, afirma que ‘a TV argentina devora a si mesma: em meio ao impacto exagerado, seu conteúdo se torna cada vez mais vil e inclinado a uma insolência distorcida, em uma queda de nível devastadora e incontrolável que ninguém parece capaz de deter -produtores, gerentes de programação e anunciantes não reagem, e querem ainda mais; e o público, atônito, não pode nem consegue deixar de assistir’.
E, aludindo ao caso que motiva essa ponderação, o artigo prossegue: ‘O programa ‘ShowMatch’ mostra bustos e decotes femininos de maneira decadente, tosca e grosseira, e fomenta comentários grosseiros, toques e movimentos que parodiam atos sexuais entre homens, mulheres e travestis. O que era e é, em sua origem, uma dança de prostíbulo, reservada a locais que só admitem maiores de idade, agora saltou, pela arte e magia da televisão, ao posto de programa de grande audiência (com cifras que atingem os 35,7%), e o pior: as redes do país honram o espetáculo retransmitindo-o diversas vezes por dia, em todos os horários’.
Afirmações análogas podem ser feitas com relação à RCTV, quatro vezes fechada por governos anteriores a Hugo Chávez devido a casos como esse. A inusitada controvérsia agora provocada pela renovação de sua concessão -que não impede, melhor dizer, que a RCTV continue a operar como a estação a cabo – representa uma boa oportunidade para que intelectuais, dirigentes políticos e cidadãos preocupados com o rumo da civilização contemporânea perguntem e respondam o que é a liberdade de expressão e o que é a democracia.
Luis Bilbao é diretor da revista ‘America XXI’ e colaborador habitual do ‘El Dipló’, a edição latino-americana do ‘Le Monde Diplomatique’’
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