MÍDIA & VIOLÊNCIA
A violência como atrativo cultural, 9/08/07
‘A menina tinha visões sobre quase tudo. Sabia, por exemplo, onde estava um pote de geléia feito no ano anterior – ‘está na prateleira de cima, junto da maionese, mamãe!’ – disse com o sotaque carregado do sul dos Estados Unidos. A mãe olhou preocupada para a filha. O pai, um tipo bastante acafajestado e preconceituosa-
mente latino, foi logo tirando o cinto e submetendo a filhinha de 12 anos a uma surra impiedosa, ao vivo, para expurgar o diabo que lhe dava os tais poderes de ver as coisas e entrar na mente das pessoas. A mãe se encolhe num canto, olhando distante através da janela. Corta.
A coisa toda se complica e se enrosca no resto do filme. Sexo, violência, visões paranormais e outras tantas cafajestadas vão tecendo a narrativa absurda. No final, a menina acaba matando o pai, para depois descobrir que o vilão era outro. Mas tudo acaba bem, e ela feliz com o seu amiguinho de infância, jurando eterno amor.
Esse coquetel de violência e abusos faz parte do filme ‘Tormentos’ – um nome mais do que adequado -, apresentado por um dos canais HBO, e nos leva a meditar sobre os caminhos da cultura do entretenimento em nossos dias, especialmente o papel da violência como atrativo cultural.
A julgar pelo filme, ficamos convencidos mais uma vez da grave doença social que aflige os norte-americanos, capazes de criar uma rede formidável de universidades – as melhores do planeta – e ao mesmo tempo incapazes de gerar um espírito de educação humanizadora, como bússola civilizatória para o seu próprio coletivo e para o mundo em geral. Ou será, que mesmo formidáveis, as universidades capengariam na formação humanizadora dos seus quadros, em nome da competição e da soberania do mercado? Afinal, quais seriam mesmo os indicadores de excelência humanizadora numa universidade?
Paulo Francis anuncia o problema com todas as letras em 1966, comentando o livro ‘Um sonho americano’ de Norman Mailer. Para ele, o autor ‘apresenta um quadro do homem contemporâneo dos Estados Unidos, ou melhor, de sua desintegração em face da realidade que nega suas ilusões e pretensões de ser o centro de uma sociedade humanista’. Tudo isso a partir de um herói que assume as características da história de quadrinho, aliás, um recurso estilístico que se firmou ao longo das décadas, especialmente nesse cinema enlatado.
Mas, se a sociedade americana está doente a fazer guerras, não se pode escapar do problema, simplesmente estigmatizando-a, pois em muitos e muitos aspectos – bons e maus – tem sido apenas o lugar onde aparece uma tendência, que posteriormente se espalha pelo mundo. A doença americana acaba sendo também doença nossa, e esse quadro mais amplo é que parece ser o verdadeiro problema. Entre outras coisas, compartilhamos o mesmo continente e sistema econômico. E, além de tudo, temos outros males que nos são próprios.
O prazer da violência vai se tornando uma marca contemporânea inquestionável. A espetacularidade da violência atraída como protagonista freqüente da sociedade do espetáculo. Mas por que a violência vem assumindo esse papel central de atrativo?
Ora, a violência sempre foi componente inquestionável da mente humana – na saga religiosa, no pocket-drama da família, na condição existencial de todas as gerações -, mas tudo isso parece que sempre foi emoldurado por visões culturais capazes de direcioná-la para certos objetos, sem permitir que aparecesse com o destaque e a nudez dos nossos dias.
O descontrole dos nossos dias estaria ligado à pressão excruciante colocada sobre cada indivíduo, para que produza algo ‘original’, que seja vendável, e que produza um nome, mercado e alguma fortuna? Tudo isso tomando sabe-se lá que média, que grau de felicidade e gozo como referência. Seria dessa violência básica e estrutural que todas as outras emanariam? O ego contemporâneo já viria formatado para a violência, nela se reconhecendo?
Nas tribos e comunidades de origem não era assim… E antes da invenção do indivíduo burguês em busca de emancipação, também não era assim… Como transitaremos dos mitos de outrora, dados como realidade ancestral para o equilíbrio de todos, para os novos mitos solúveis e descartáveis, porém replicáveis em milhões e milhões de cópias?
Faremos a mesma conexão proposta por Baudrillard entre contemporaneidade e terror? Viveremos sobressaltados entre quatro fórmulas de politização – nacionalização, globalização, anti-globalização em rede, e transgressão pelo crime organizado? O que fazer?
Pra início de conversa, rever o antológico filme ‘Laranja Mecânica’ e sua inexorável exposição do tema.’
INTERNET
Sei o que Web 2.0 não é, mas não sei o que ela é, 13/08/07
‘Buenos Aires, Argentina – Costumo me esconder por trás de uma frase de Santo Agostinho a cada vez que alguém me pergunta o que é Web 2.0. O santo me ajuda com a sua famosa máxima dedicada ao tempo: ‘O que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, já não sei’.
Algo parecido me acontece com a Web 2.0. Se não perguntam o que é, eu sei claramente; mas se me perguntam eu quase não consigo explicar.
Ultimamente, em muitas das reuniões a que tenho comparecido, há alguém que fala de Web 2.0, ou tem um projeto 2.0, ou diz frases que utilizam esses números como adjetivos: ‘Isso é muito 2.0’.
Confesso que eu mesmo me pego às vezes dizendo coisas assim. Uso a categoria 2.0 mentalmente como um adjetivo positivo, que descreve algo bom, aberto, generoso, inteligente, despojado, fácil… 2.0 é melhor, 2.0 é sempre algo inovador, é simples, é divertido. Mas o que é Web 2.0?
Palavras Textuais
Fernando Barbella, da agência de publicidade Ogilvy Interactive Argentina, tem um blog desopilante chamado Palavras Textuais, onde reúne frases ditas em circunstâncias de trabalho – a ele ou a outros colegas -, coisas completamente sem sentido mas muito freqüentes no ambiente de marketing e publicidade. Por exemplo, a frase número 458 de Palavras Textuais afirma: ‘Eu quero em um tom de azul, mas um azul mais outonal’ (coordenador de área de um anunciante, a um diretor de arte). Ou a contraditória solicitação que aparece na frase 447, segundo a qual ‘quero que seja fajuto, cafona, ordinário e feio… Mas bem feito’ (anunciante, pedindo um panfleto a um designer).
Algo parecido acontece com a Web 2.0: são ditas tantas coisas estranhas sobre ela, existem interpretações tão loucas, que provavelmente merecem um blog que as compile. Eu tenho minha própria coleção não escrita de palavras textuais desse tipo. Eu as ouço em empresas, universidades, de estudantes, entusiastas, empreendedores, loucos, comentaristas, blogueiros e até do técnico do computador. Há pouco, em uma empresa, alguém que trabalha na área de recursos humanos me disse que ‘nós temos uma política de recrutamento muito 2.0’. A verdade é que não sei o que ele queria dizer, ainda que tenha respondido, laconicamente: ‘Claro…’
A Web 2.0 segundo a Web 2.0
No prólogo da edição do livro do I Ching, Carl Jung faz algo genial: consulta o livro sobre o próprio livro, e é assim que o I Ching termina, de alguma maneira, se auto-explicando. Entre os inumeráveis exemplos de Web 2.0 que existem, a Wikipédia se destaca por sua vitalidade, profundidade e impacto sobre toda a cultura. Ocorreu-me, então, repetir o modelo de Jung e consultar a Wikipédia sobre a Web 2.0. Diz a Wikipédia:
‘O termo Web 2.0 foi cunhado pela O’Reilly Media, em 2004, para designar uma segunda geração da Web baseada em comunidades de usuários e uma gama especial de serviços, tais como as redes sociais, os blogs, os wikis ou as folksonomias, que fomentam a colaboração e o intercâmbio ágil de informação entre os usuários’.
Bastante claro, mas não muito… Mais adiante, no mesmo artigo, surge uma explicação de como o texto foi cunhado, para uso em uma conferência, e a informação de que em lugar de ter surgido sob uma definição estrita, ele nasceu por oposição de exemplos. Diz a Wikipédia:
‘DoubleClick era Web 1.0; Google AdSense é Web 2.0. Ofoto é Web 1.0; Flickr é Web 2.0’.
Portanto, a Web 2.0 não é algo que se possa definir com exatidão; ela representa uma evolução da Web 1.0. Talvez esteja aí a chave para entender por que tanta gente encontra dificuldades para compreender o que é a Web 2.0, já que é possível definir quase qualquer coisa como 1.0 e 2.0, atribuindo ao que é fechado, antiquado, velho e hierárquico a classificação 1.0 e ao que é aberto, novo, vital e descentralizado o rótulo 2.0.
Somos todos 2.0
Somos todos usuários da Web 2.0, ainda que muita gente não saiba disso. Todo mundo que assiste a um vídeo no YouTube (serviço completamente 2.0) contribui com suas visitas para fazê-lo subir no ranking dos vídeos online, o que representa uma atividade 2.0. Caso essas pessoas tenham uma conta no YouTube e façam upload de vídeos para o site, são ainda mais 2.0. Os usuários do Fotolog são usuários 2.0, se bem que muitos deles jamais tenham ouvido o termo. As pessoas que procuram notas interessantes no Meneame, as que mantêm blogs e as que usam a lastfm estão na mesma categoria.
Se alguém deseja explorar os serviços e aplicativos Web 2.0 (e não existe maneira melhor do que vê-los em funcionamento para entender do que se trata), um dos melhores caminhos é o del.icio.us, um dos sites emblemáticos da Web 2.0. Visitas regulares permitem descobrir coisas maravilhosas, geniais e absurdas.
Caso existisse um Oscar para a Web 2.0 e eu fosse parte do júri, meu voto sem dúvida seria dado ao Geni, um serviço simples, viral, de criação de árvores genealógicas, que oferece resultados espantosos. Quando me perguntam o que é a Web 2.0 e o truque de Santo Agostinho não resolve, aprendi também que a melhor maneira de explicá-la é usando exemplos. Por isso, digo que ‘Web 2.0 são sites como o www.geni.com ‘. Com o tempo, essa pessoa a quem convidei a usar o Geni se converterá também ao novo paradigma.
Explicar o que são redes sociais pode ser um pouco mais difícil, mas na Commoncraft existe um vídeo (muito 2.0!) que, embora em inglês, expõe a situação claramente.
Como uma cultura
A Web 2.0, com sua peculiar estética minimalista, seus grandes botões e suas áreas de assinatura perfeitamente estudadas (e com a amabilidade que se pode descobrir nelas quando são utilizadas), com suas aplicações abertas e seu altruísmo, a inteligência assombrosa e concentrada que se pode aferir em suas interfaces (a da Geni é apenas um exemplo), é uma expressão de uma cultura melhor do que aquela que a precedeu. Sem dúvida. Se o mundo físico fosse um pouco 2.0, tenho certeza de que seria um mundo melhor, mais inteligente, mais generoso e mais barato.’
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