PORTUGUÊS
Sírio Possenti
Procurar o objeto direto, 1/11
‘Reinaldo Azevedo escreveu artigo curioso na Veja de 12/09/2007. O título é ‘Restaurar é preciso; reformar não é preciso’. Começa criticando a reforma ortográfica e passa deste tema para a questão das aulas de português. A ponte de que se vale é fazer de conta que a reforma ortográfica vem no mesmo embalo de ‘reformas’ pelas quais passou o ensino, desde a mania da comunicação até as aulas em que os alunos seriam chamados a se colocarem e a se expressarem.
Surpreendentemente, talvez, para alguns, concordo com as duas teses dele, embora não concorde com sua ‘colocação’ de ambas no mesmo barco, porque uma não tem nada a ver com a outra, nem são efeitos das mesmas forças ‘sociais’. Quero dizer que concordo com ele tanto no que se refere à bobagem que é a reforma ortográfica (se não por outra razão, porque é capenga e abre chances de haver outra em menos de uma década, basta que apareça um José Aparecido) quanto no que se refere à pobreza e ineficácia das aulas de português que foram baseadas na idéia de comunicação e nas que seriam baseadas na ausência – ou retirada – de ‘conteúdos’, para substituí-los pela ‘reflexão’ sobre as práticas de alunos e professores.
Mas concordar com um ou outro enunciado de Azevedo não significa concordar com seu discurso, porque logo ele oferece a defesa de outra forma também bastante estúpida de ministrar aulas de português, representada pela relevância de atividades como identificar o objeto direto dos primeiros versos do hino nacional e o das primeiras 14 estrofes de Os Lusíadas (até porque não há nada parecido com um objeto direto de 14 estrofes em nenhuma gramática… Mas admitamos que se trate de força de expressão e que ele esteja querendo falar do complemento do verbo espalhar, que aparece, aliás, no verso de número 15 – cantando, espalharei por toda a parte). Em suma, diz ele, a coisa passa pela velha e boa gramática.
Poderia até concordar com ele, fazendo algum esforço, se a boa e velha gramática não estivesse caricaturada, tanto nas aulas antigas e modernas, quanto na defesa ligeira que o articulista faz dela.
Acho bom ler e estudar Os Lusíadas. Mas não sei se para dar lições do tipo que Azevedo sugere. Até talvez teriam sido elas que afastaram potenciais antigos leitores do texto, exatamente porque, visto como um cadáver a ser aberto para achar seus rins, o poema fica sem graça. Seria melhor levar o texto de Camões a sério, e analisar nele um conjunto de questões ou fatos até mais interessantes do que a inversão sujeito-verbo.
A coisa até poderia começar pela identificação do objeto, claro. Lidas as duas estrofes iniciais, uma pergunta como ‘espalharei o quê, mesmo?’ não seria nada estúpida, e obrigaria alunos a voltarem ao texto para descobrir aspectos de seu sentido. Mas que não nos espantemos se eles considerarem estranho o que vierem a compreender e nos perguntarem o que quer dizer mesmo ‘espalhar as armas e os barões assinalados’. Não pareceria mais óbvio que ele os cantasse, e a todos os seus feitos, em vez de os espalhar? Para que o texto faça mesmo sentido, será necessário bem mais do que, como se dizia antigamente, colocá-lo em ordem direta.
Mas há outras coisas mais interessantes. Ou tanto quanto, pelo menos. Pode-se considerar certas passagens que apresentam característica semelhante, no caso, a ‘inversão da ordem’, como, por exemplo, ‘… e as terras viciosas / De África e Ásia andaram devastando’, trecho a ser ‘lido’ como ‘e andaram devastando as terras viciosas de África e de Ásia’, sem contar que o elogio da devastação de tais terras mereceria um bom debate, ou, no mínimo, uma boa interpretação de ‘devastação’. Bem, épicos nunca são politicamente corretos…
Outras coisas: o que quer dizer ‘se celebrado foi de mim vosso rio alegremente’? Em especial, que estrutura é essa, ‘foi celebrado de mi(m)’. E o aluno seria informado de que a passiva, nos tempos de Camões, era comumente construída como ‘de mim’ e não com ‘por mim’ (Camões escreveria hoje ‘se o rio foi por mim celebrado alegremente’, salvo pela questão da ordem, que tem tudo a ver com ritmo etc?). Iria ficando claro que não adianta, ou não basta, invocar a boa e velha gramática…
Mais: que tipo de caipira era esse Luis Vaz, que escreveu ‘frauta ruda’ (quinta estrofe)? ‘Ruda’ vá lá, deve ser uma forma antiga (de ‘rude’). Mas frauta, isso não é coisa para ser evitada? E ‘enveja’ (décimo verso da quarta estrofe)? Ele não sabia ortografia? (e olhe que estou lendo uma edição recente…).
Bem ao contrário, provavelmente, do que supõe Reinaldo Azevedo, Camões forneceria razões muito boas para pôr as boas e velhas gramáticas (qual, mesmo? Eles nunca citam uma!!!) em xeque, já que sua leitura exigiria a consideração, em muitos casos, de leis de mudança e de variação lingüística. Nada melhor do que ler bem um antigo para deixar claro que defender o ‘bom português’ exige mais do que repetir generalidades.
De minha parte, acho que ler Camões é um excelente jeito de aprender a ler Camões e outros tantos textos, e não propriamente de aprender português. Simplesmente porque, como é fácil de mostrar, ninguém seria incentivado a escrever como Camões. Nem Reinaldo Azevedo escreve.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.’
TROPA DE ELITE
Tropa de Elite: enfrentar violência é dever atual, 30/10
‘No último fim-de-semana assisti ao filme Tropa de Elite. Certamente o mérito do mesmo é abordar o tema da violência urbana, que permeia praticamente a vida de qualquer cidadão das cidades médias e grandes brasileiras: não há praticamente ninguém que não tenha enfrentado o problema nos últimos anos, ou seja, tenha sido vítima de furto, roubo ou mesmo seqüestro relâmpago. Pessoalmente tive minha casa furtada há poucos meses sem graves conseqüências e o tratamento dado ao problema pelas autoridades policiais foi de ‘absoluta rotina’. Meu filho teve seu celular roubado quando voltava da faculdade à noite e, antes disso, tive meu escritório furtado. No fim, nos acostumamos a conviver com a insegurança como parte integrante do nosso cotidiano.
O filme é importante por demonstrar inequivocamente que o tráfico de drogas está associado ao consumo das mesmas pela classe média e que as instituições policiais não resistem ao poder da corrupção. Acredito que um dos receios dos altos escalões das forças armadas em se engajar no combate às drogas se deve ao fato de que se tem ciência de que o poder econômico das atividades ilícitas é monstruoso, podendo corromper pessoas das mais diversas instituições, especialmente num país que remunera mal seus servidores públicos. A situação exige uma estratégia ousada e inovadora de abordagem, a envolver muitas instituições públicas nas várias esferas governamentais, inclusive o Poder Judiciário no sentido de se firmar a garantia de que os criminosos sejam efetivamente condenados, a começar pelos de colarinho branco, ou seja, não apenas os ‘bagrinhos’.
Ações de inteligência são fundamentais, revelando que os investimentos não são apenas necessários em termos de hardware, equipamentos como armas, coletes e infra-estrutura como presídios. Lembro-me de uma visita por mim feita ao extinto Carandiru, logo após a invasão ocorrida em 1992, na qual fiquei chocado com as condições lá encontradas, de certo modo refletidas no filme de José Padilha.
A recuperação efetiva de presos e sua reintegração na sociedade não é uma demanda de defensores de direitos humanos, mas uma medida de diminuição na reincidência da prática de delitos. A melhoria efetiva de favelas, em termos de oportunidades de vida para sua população também é crucial na diminuição da violência urbana, sendo uma tarefa intrinsecamente do Estado, o que não significa dispensar a eventual colaboração da sociedade civil organizada.
Torna-se necessário enfatizar que a sociedade brasileira não conseguiu até o momento estabelecer um pacto efetivo contra a violência, sendo que os governos de maneira geral não têm liderado o debate sobre esta temática tão relevante, com exceção de medidas amplamente alardeadas pela mídia após eventos trágicos, mas que são logo esquecidos após a notícia ‘esfriar’.
A classe média despende somas enormes na ‘indústria da segurança’: condomínios com equipamentos sofisticados, segurança 24 horas, que representam percentuais altíssimos nos valores do condomínio. Automóveis blindados e valores de seguro cada vez maiores para cobrir os prejuízos com furtos, enfim, recursos expressivos que podem mitigar os danos de uma sociedade marcada pela insegurança, mas que não atacam as causas do problema, enraizadas numa sociedade desigual, que não oferece oportunidades efetivas para a base da pirâmide social num mundo globalizado marcado pela competição. Se estes recursos, que devem chegar aos bilhões, pudessem ser utilizados no combate às causas da violência, a transformação certamente seria muito mais efetiva.
O pior é que as instituições políticas brasileiras, particularmente os parlamentos, estão marcadas pela falta de credibilidade por ocupar o ‘noticiário policial’ dos jornais, estando muito distanciadas do exercício de seu poder catalisador nestes debates. Como afirmei, é importante ressaltar que é uma tarefa de no mínimo uma geração o enfrentamento da violência urbana no Brasil, de certo modo como foi o restabelecimento da democracia na minha geração. É triste verificar que o filme retrata uma situação de escolha entre o combate ao tráfico e o estado de direito. Explico: policiais militares honestos que recorrem a métodos ilegais e de tortura como opção à ineficiência absoluta do ‘sistema’, como a narrativa em primeira pessoa do personagem principal ‘Capitão Nascimento’ revela em várias oportunidades. Daí o porquê, ao seu ver, é incompatível o outro personagem estudar direito e ser policial ao mesmo tempo.
Uma das grandes contribuições do cinema à sociedade é provocar debates, gerar agenda, como temos visto sistematicamente. Tropa de Elite não foge à regra, obrigando todos nós a refletirmos sobre questões essenciais do nosso cotidiano, exigindo da sociedade brasileira capacidade de encontrar soluções permanentes para tais problemas, até mesmo porque a violência se universalizou, ainda que muitos possam blindar seus automóveis. A Colômbia, por exemplo, conseguiu muitos avanços, o que mostra que não se trata de uma ‘missão impossível’.
Fabio Feldmann é consultor, advogado, administrador de empresas, secretário executivo do Fórum Paulista de Mudanças Climáticas Globais e de Biodiversidade e fundador da Fundação SOS Mata Atlântica. Foi deputado federal, secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. Dirige um escritório de consultoria, que trabalha com questões relacionadas ao desenvolvimento sustentável.’
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