NOVELAS
Os médicos protestam, 7/11
‘Não sei o que os noveleiros têm contra os médicos. Será que algum cirurgião arrancou a unha encravada deles, sem anestésico? Bem que mereciam. Eles só escrevem deformidades sobre o exercício da medicina. Manoel Carlos na novela Páginas da Vida não tratava de outro assunto que não fosse doença. Mas pintava de glamoroso o hospital em que os médicos eram pediatras e ortopedistas ao mesmo tempo; ainda existiam irmãs de caridade com chapéus extravagantes; e todos falavam como se tivessem decorado um livro de terapêutica.
Não há meio termo para o comportamento dos médicos nas novelas. Ou são maravilhosos, perfeitos, cheios de conselhos e bondades, ou são monstros a serviço do bandido. Em Vereda Tropical, o médico aceitava manter a gêmea Paula como prisioneira em sua clínica. O artifício era o mesmo de todas as outras novelas: sedavam a vítima e os enfermeiros atuavam como cães de guarda, não permitindo que ninguém se aproximasse.
Em Belíssima, também existia um médico a serviço de um bandido. A personagem de Glória Pires era mantida prisioneira e sedada. Glória, que contraiu hepatite durante as filmagens, precisou ser afastada da novela, e o recurso que encontraram foi esse. Sobrou mais uma vez para o médico: transformado em bode expiatório, ou melhor, em vilão, ele tem de resolver o problema de saúde da atriz e a ausência da personagem da trama. Dá para agüentar?
Até na açucarada e inqualificável Eterna Magia, enfiaram um médico irlandês, o Dr. Peter: a personificação do mal. Ele falsificou o diagnóstico da pianista Eva, Malu Mader, e ainda por cima a envenenava. Como se fosse pouco inventou que Nina, Maria Flor, estava louca, e mais uma vez internou-a como se isso fosse a coisa mais rotineira do mundo.
Não é de agora que os médicos são maltratados. No teatro italiano de commedia dell’arte existe um personagem, Il dottore, que é a personificação da presunção e da arrogância. Nos autos populares nordestinos, os médicos são representados pelo Doutor Pinico Branco, um palhaço que receita clisteres. E os escritores clássicos não deixam por menos. Flaubert também se mostra impiedoso com um médico no romance Madame Bovary.
Longe das novelas, dos livros e do teatro, no dia-a-dia das emergências e ambulatórios dos serviços públicos os médicos vivem a realidade sem glamour das longas e cansativas jornadas de trabalho. Não lembram os personagens bem vestidos e risonhos de Manoel Carlos. Correm de um lado para outro nos corredores cheios de pacientes em macas, cadeiras de rodas, ou deitados em papelões estirados no chão. Os hospitais públicos parecem praças de guerra e os médicos atuam como se estivessem em campanha. Sofrem porque faltam condições ideais de trabalho para amenizar sofrimentos e evitar mortes como seria esperado. Tornam-se cúmplices involuntários de um sistema de saúde cheio de falhas.
Mas estão longe de ser as caricaturas que os noveleiros pintam. Seria bom que eles passassem pelo menos uma noite deitados no chão de uma emergência de um hospital público. Talvez escrevessem folhetins próximos da realidade. Mas isso é o que menos interessa ao falso mundo das novelas. Os médicos continuarão sendo criados à imagem de Satanás, sem nenhum protesto dos Conselhos de Medicina.
Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca e Livro dos Homens. Assina coluna na revista Continente.’
MANIPULAÇÃO
‘Época’ distorce foto para enfeiar Chávez, 9/11
‘A manipulação digital de fotografias para melhorar as feições de personagens de capa de revistas não é propriamente uma novidade. Raro -e mais difícil de justificar- é uso do Photoshop ou similar para enfeiar uma pessoa. Foi o que fez a revista ‘Época’ nesta semana.
A imagem de Hugo Chávez foi alterada para que o presidente venezuelano parecesse mais ameaçador na capa que destaca a reportagem ‘O Brasil deve ter medo dele?’
O fato foi revelado pelo próprio diretor de Arte da revista, Marcos Marques, no blog ‘Faz Caber’. Terra Magazine procurou o diretor de redação de Época, Hélio Gurovitz, em busca de explicações para o fato, por volta das 16h15min desta sexta-feira. Não houve resposta até o momento.
A distorção da imagem ocorre num momento em que o venezuelano é alvo de críticas da imprensa brasileira por conta de seu projeto que estabelece a possibilidade de reeleição ilimitada. Também mereceu certo destaque o fato de Chávez ter sido eleito o quinto homem mais sexy da Venezuela, segundo uma pesquisa da Fedecámaras – a entidade empresarial que patrocinou a tentativa de golpe contra o presidente em abril de 2002.
Eis o polêmico ‘post’ de Marques, publicado no último dia 27:
Para fazer a capa desta semana foi feita uma pesquisa de imagem muito específica. O presidente da Venezuela Hugo Chávez teria que estar com cara ameaçadora. Foi muito difícil, ele tem uma cara gorda e simpática, não dá medo em ninguém. A imagem que mais chegou próximo do objetivo foi a que ele está de boina vermelha olhando para o lado esquerdo.(Observação da Redação: o conceito de direita e esquerda anda mesmo embaralhado por esses dias, mas ele não estaria olhando para a direita?) Para deixar a imagem ainda mais forte, o nosso ilustrador Nilson Cardoso fez um trabalho de manipulação na imagem original, até chegar a este resultado final.
O que acham? Façam seus comentários.
E foram 80 comentários, a maioria de prováveis simpatizantes de Chávez e críticos da ‘imprensa manipuladora’. ‘Saudade do tempo que se fazia jornalismo nesse país. Fotojornalismo, para ser mais específico. Agora temos panfletos partidários circulando semanalmente. Não interessa a figura da capa ou o contexto, é manipulação com intenção de construir versão. No Rio Grande do Sul, chamamos de chinelagem, esse tipo de prática rasteira’, escreveu o leitor Vicente Rodrigues (para evitar novas suspeitas de manipulação, respeitamos a pontuação do autor).
Ontem, Marcos Marques voltou a se manifestar sobre o assunto no blog. Leia a seguir a íntegra do post:
Senhores,
Antes de mais nada, quero deixar bem claro que o ‘Faz Caber’, nosso estimado blog da editoria de arte, é apenas um caminho para jovens designers e curiosos entenderem o que passa na EDITORIA DE ARTE. Ou seja, é como se fosse uma conversa descontraída, papo de designers em um boteco. Nada além disso. Aqui não é o lugar em que vocês vão encontrar qualquer tipo de grande plano de manipulação de informação que leve à dominação do mundo. Sério, é até um pouco ridículo alguém levantar uma idéia dessa.
Vamos à capa do Chavez, que levantou toda essa polêmica. A matéria em questão era sobre como o aumento do aparato militar da Venezuela poderia colocar em risco a posição do Brasil como país hegemônico na América do Sul. Acontece que o presidente da Venezuela é o Chavez. E ele é o cara que começou esse movimento. Logo, a imagem mais óbvia para a capa era ele mesmo. Tendo deixado isso claro, entramos na segunda parte, que é a escolha específica de foto do homem, que será a base da capa. A idéia é que o país está ameaçado, não é mesmo? Logo, procuramos uma imagem que traduzisse essa idéia. Simplesmente isso. Esse foi o norte da pesquisa de fotos. Faria algum sentido colocar uma foto do Chavez feliz e contente, correndo por um campo verde junto com carneirinhos?
Sobre a dita ‘manipulação’, as interpretações completamente equivocadas foram ainda maiores. O único tipo de retoque feito na imagem foi muito mais para valorizar a imagem do que para, como foi dito em algum comentário, ‘dominar o mundo’. Passamos apenas uma pátina engraçadinha na foto. Ninguém colocou uma arma na mão do cara nem nada do tipo!!! E além de tudo, é ÓBVIO que a foto foi retocada digitalmente. Não fizemos nada subliminar, mas MUDAMOS A FOTO INTEIRA!!!! Como alguém pode achar que estamos manipulando informação por isso???
Como eu já disse, nosso blog é praticamente uma conversa de boteco, completamente informal. A diretoria da revista não pediu especificamente que nós ‘fizessemos o Chavez parecer malvado e comedor de criancinhas’. Ninguém colocou nenhum chifre no cara! Ninguém colocou nenhuma luz vermelha, pra parecer que ele é um comunista que veio do inferno!! E ainda colocamos a foto antes e depois dos retoques no ar! Queremos que o blog seja uma ferramenta para transformar o processo de produção da revista em algo mais transparente. Não temos nada a esconder.
Aliás, quando colocamos uma capa do Renan Calheiros, na semana em que ele foi absolvido, com uma auréola de anjo, ninguém ficou reclamando que manipulamos imagens, não é mesmo?
Abraços’’
JABÁ
O reclame esvazia o jabá, 10/11
‘A relação entre os jornalistas de redação e os jornalistas de comunicação empresarial é um debate recorrente. Entre as inesgotáveis questões, a mais complexa, talvez, procure levar para cima de um balcão os limites éticos das transações entre estes profissionais. Em condições normais de temperatura e pressão, onde se lê ‘transações’, leia-se ‘relações’. Se existisse mesmo o tal balcão (imaginário) entre uns e outros, como uma linha que separasse os interesses do jornalismo clássico (‘aquele que tem o compromisso com o leitor’) daquele feito no contexto das relações públicas empresariais (‘que tem o compromisso com os objetivos de uma empresa’), o que passa por ele, sendo ético, seria informação. E, se é boa, tem qualidade jornalística, pode e deve ser aproveitada e virar notícia.
No entanto, no mundo real, não é de se espantar que, não raro, junto com a informação, nem sempre de boa qualidade, passe o chamado jabá: um presentinho, um convite, uma viagem, um dinheiro, uma informação privilegiada e outros possíveis objetos de sedução.
Desde os anos 1980, os inúmeros manuais de redação, entre eles pioneiramente o da Folha de S. Paulo, procuram explicitamente balizar o comportamento – além do texto de quem escreve nas redações tradicionais. É por isto que veículos sérios informam quando despesas de viagens de seus jornalistas em serviço são pagas por empresas, interessadas em transformar as informações oferecidas durante a visita em notícia. Da mesma forma, para dar transparência aos seus atos, as empresas criaram sistemas de governança corporativa – um conjunto de rituais destinados a dar acesso claro aos dados e operações empresariais para seus públicos interessados.
Veículos de comunicação importantes reforçam suas governanças; afinal, a credibilidade de uma notícia é extensão da empresa jornalística assentada em governança corporativa forte, que assegura a transparência de gestão e impede que uma eventual crise administrativa a transforme em terreno viável para um jornalismo não comprometido com o leitor e com a sociedade.
Além dos manuais e ouvidores, um dos melhores antídotos contra as ações que corrompem o jornalismo é a publicidade. Ela fortalece a independência dos veículos de comunicação. Jornais, revistas, emissoras e sites sem anúncios são presas fáceis para o vale-tudo em nome do sobreviver. Os comunicadores empresariais comprometidos com a democracia devem valorizar a publicidade, que, além do objetivo mercadológico, carreia recursos, legais e legítimos para que empresas de notícias possam difundir, com isenção, independência, competência a boa informação que, bem apurada, virou notícia.
E, no relacionamento entre fontes e jornalistas, onde ocorre a troca de informações, só vale o que é legal, legítimo, transparente, a partir do estabelecimento do respeito recíproco, da empatia e da confiança entre jornalistas, que não têm um balcão a separá-los.
Paulo Nassar é professor da Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (ABERJE). Autor de inúmeros livros, entre eles O que é Comunicação Empresarial, A Comunicação da Pequena Empresa, e Tudo é Comunicação.’
CONTEÚDO CRÍTICO
A cobertura das corporações, 9/11
‘Pesquisa realizada pelo professor Thomaz Wood Jr, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, revela que menos de 5% do conteúdo da mídia brasileira de negócios é crítico. ‘E ainda por cima exagera-se o lado positivo (das corporações)’, afirma.
O levantamento dá base científica à percepção de qualquer transeunte que destine alguma atenção sobre o conjunto das revistas econômicas brasileiras, disposto nas bancas de jornais: via de regra, quando o assunto é empresas e executivos, o negócio é elogiá-los e promovê-los.
O jornalismo de negócios parece acompanhar cegamente uma lógica típica do mercado financeiro: o das profecias auto-realizáveis. De tanto se propagar determinadas informações (não necessariamente subordinadas à pura realidade dos fatos), elas se tornariam verdade.
Trata-se de um segmento cujo motor são ondas que varrem capas e capas de publicações com novos métodos, modas e milionários, que não raro evaporam com a mesma velocidade com que surgem.
Mas o que haveria de problemático nisso? Não seria este um círculo virtuoso, que irradia freqüências positivas aos seus leitores e ao universo? Talvez sim, em parte. A questão é a outra parte, que ora some, ora irrompe o noticiário, geralmente pela parte policial das sessões econômicas.
Daí certo constrangimento (e atraso) na cobertura dos atuais casos de corrupção flagrante do setor privado. O rombo bilionário causado pela Cisco – de acordo com a Polícia Federal – ganha mais ânimo no noticiário quando ligado a algum possível esquema ilícito do governo (mesmo que até então pouco fundamentado).
A farra dos bancos suíços, que remeteram bilhões de reais convertidos em divisa internacional por doleiros desinibidos (sempre segundo a Polícia Federal), mantém espaço tímido no conjunto da cobertura econômica. Já pensou se aparecer um deputado implicado nesta história, o barulho que vai causar?
Com exceção das melhores publicações especializadas, os noticiários econômico, financeiro e de negócios são apresentados de forma embaralhada e confusa ao grande público. Mais grave que isso são as relações conflituosas que permeiam esses mundos.
Diversas emissoras de TV, a Rede Globo entre elas, têm como prática recorrente lançar mão de algum ‘consultor’ ou ‘economista’ como voz que aponta a verdade em diferentes campos.
Matérias sobre a queda do dólar, investimento em renda fixa, privatizações ou bolsa de valores seguem determinada linha a ser confirmada no final por alguém (geralmente um jovem de terno e óculos) identificado apenas por seu nome pouco conhecido e como ‘economista’.
Não raro trata-se de consultores de bancos de investimentos que têm interesses próprios sobre o assunto-alvo. Mas a eles é dado o papel de dizer o que é positivo e negativo para o ‘mercado como um todo’. Em outras palavras, para toda a sociedade. Sem que sejam identificados como parte específica do jogo.
Dou um exemplo prático. No ano passado um órgão de imprensa me incumbiu de produzir matéria sobre a então crise da Varig. No momento em questão a compra da companhia pelo fundo norte-americano Matlin Patterson azedava (posteriormente acabou se confirmando).
Fui orientado a ouvir a opinião de ‘algum consultor econômico especializado em aviação’. Indicaram-me uma fonte que até então era usada freqüentemente, por diversos veículos. Tratava-se de um economista de um banco suíço (por acaso, uma das instituições implicadas no atual escândalo financeiro).
Ao analisar a possibilidade de a Varig ir para o espaço, o consultor foi sincero – talvez até incomumente ingênuo -: ‘como temos participação em uma companhia concorrente, quanto pior a Varig estiver, melhor’.
O exemplo parece prosaico, mas é real e recorrente. O que há de diferente nele é a transparência. Consultorias econômicas com bom aparato de relações públicas são ouvidas freqüentemente pela mídia, sem que esta se pergunte a quais interesses aquela atende.
Casos como o da Enron, Cisco e dos bancos suíços mostram que a sociedade capitalista merece receber informações das corporações que vão além de bajulações e ‘cases’. O mercado financeiro está se popularizando no Brasil, o que aumenta a demanda por credibilidade das informações. Além do fato de o consumidor ter interesse em saber com quem está lidando.
O jornalista Luiz Carlos Azenha, correspondente da Rede Globo nos EUA, publicou em seu blog texto que trata da recuperação do prestígio do New York Times. O jornal teria ampliado a diversidade de opiniões políticas e econômicas publicadas e investido em reportagens e análises aprofundadas.
Segundo Azenha, ‘com o amplo acesso à informação aumenta exponencialmente o número de consumidores com capacidade de criticar, por comparação, o conteúdo que lhes é oferecido’.
Que os ventos do Times soprem logo por aqui.’
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