TRIBUNA DA BAHIA
Uma época de ouro
‘Hoje, vou dedicar a coluna à Tribuna da Bahia que está fazendo 40 anos. Faço-o porque seminal para toda uma geração de jornalistas, uma época fundadora. Quando a Tribuna da Bahia começou a circular – as imagens daquele tempo desfilam na memória como um filão encantado – eu trabalhava em A TARDE. Foi uma revolução. Na redação, não se falava de outra coisa que não fosse o novo concorrente. O que fazer?
A Tribuna era aguerrida. Sua redação criativa e muito jovem. Cultivava a magia da palavra, o veneno da palavra, a força do fato, explorava as contradições do fato. A TARDE era o contrário: uma redação de profissionais da antiga que começava, timidamente, a se oxigenar com a chegada dos alguns poucos repórteres recém-formados. Vivia de fama, da reputação modelada nos tempos do Dr. Simões Filho, o liberal conservador que fundou o jornal. Seus olhos, nada ingênuos, fixavam-se em duas instituições basilares: a Igreja e as Forças Armadas. Mas equilibrava-se ao centro e seus movimentos gravitavam no rumo do liberalismo clássico. Seu redator-chefe, o venerando Jorge Calmon era um esteio contra o obscurantismo do regime. Anticomunista, orgulhava-se de proteger os jornalistas de esquerda ou contrários ao regime. Enfim, um jornalista honrado que acreditava genuinamente no modelo liberal de fazer jornal.
A TARDE estava acomodada no tempo-espaço da história passada. Sua diagramação lembrava os jornais dos anos 30: pesada, sem vida, produto de uma cultura burocrática, onde a rotina era encher as páginas, não a arte de torná-las atraente para o leitor. Enquanto a primeira página da Tribuna tratava as noticias como um filme de arte, A TARDE lembrava um filme do cinema mudo, com imagens que nada falavam e textos eternamente privados de voz. Mas A TARDE reagiu. E reagiu com vigor. Passou a buscar criatividade, trabalhar melhor os fatos, pensar mais a cidade, dar mais atenção às reportagens. Onde foi encontrar tanta energia? Na sua história, na sua fundação, nas campanhas em defesa da Bahia e dos baianos que tanto se orgulhava. Corria a lenda que o baiano preferia deixar de comer o pão a deixar de comprar A TARDE. Foi esse mito de fundação, digamos assim, que nutriu o jornal de entusiasmo, de uma apaixonante vontade de fazer.
Entre os que comandaram a ofensiva, três nomes se destacaram, à época – José Curvello, Fernando Rocha e Brito Cunha. Revezavam-se na chefia de reportagem. Experientes, tiveram inestimável valor educativo. Lideravam. E havia também alguns jovens vindos da Faculdade de Jornalismo da UFBA, entre eles Vitor Hugo Soares (colunista de Terra Magazine), Agostinho Muniz e Suzana Serravalle, esta uma das raras mulheres repórteres, inspirava a redação com uma glamorosa combinação de beleza, elegância e inteligência.
A turma da faculdade sabia escrever. Tinha visão quanto ao jornalismo moderno que começava a ser entronizado no dia a dia da cidade. Levou para a redação uma maior profundidade na compreensão da realidade, sobretudo a realidade política. Na ‘guerra’ com a Tribuna – sim, era uma autêntica guerra – A TARDE tinha um trunfo e soube aproveitá-lo. Era matutino. Fechava às 10 da manhã. Como a Tribuna era vespertina, muitas vezes tirava partido do tempo para dar furos. Lembro de um acidente de avião em que morreram vários oficiais da casa militar do Governo. Os corpos chegaram a Salvador depois da meia noite. A Tribuna mobilizou seus melhores repórteres, entre eles Sérgio Mattos, mas A TARDE saiu na frente.
Era assim. Uma vitalidade prática. Uma mistura de criatividade e ação. A concorrência era pedagógica. Aprendi muito na redação de A TARDE – a velha e a nova guarda. Era uma redação unida, solidária. Aprendi principalmente com Vitor Hugo, de gestos calmos, mas de inabalável firmeza de atitudes. Creio, foi graças a ele que comecei a ler e estudar Marx e, também, a pensar o Brasil pela ótica do antigo ceticismo grego, sempre determinado a demolir verdades e buscar a compreensão da totalidade e das contradições dos fatos. Mais tarde, já em O Globo, no Rio de Janeiro fui compreender que o jornalismo é mais ou menos como a dialética marxiana: uma aproximação dos fatos por ondas sucessivas, mas sempre atenta aos dados da realidade. É o que se chama da análise concreta da realidade concreta. Marx desenvolveu seu método a partir de Hegel, mas foi o jornalismo que o ensinou a valorizar os fatos. E o que fez dele um grande jornalista. Quem lê o 18 Brumário de Napoleão Bonaparte se surpreende com o absoluto rigor na tratamento dos fatos. Ou seja, a análise da realidade histórica é feita a partir do real.
Voltando à redação de A TARDE. Eu estava com 18 anos. Ainda não tinha cursado a Faculdade. Ficava encantado com o modo da Tribuna escrever, com a edição do jornal, com a vitalidade da reportagem. E vivia na redação. Chegava as 7 da manhã, saia às vezes às 10 da noite. A redação ficava na Praça Castro Alves. Ainda ouço a algaravia das cansadas máquinas de escrever, ainda vejo a luz fosforescente a iluminar as arcaicas mesas de madeira um tanto carcomida e posso ouvir os gritos de Curvello pedindo pressa porque o jornal precisava adiantar o fechamento para a manhã seguinte. É uma paisagem não fugitiva, a despeito da passagem do tempo.
Participei ativamente da virada de A TARDE. Suava a camisa. Havia duas publicações me fascinavam, à época. A Tribuna e a revista Realidade. Sabia o nome dos repórteres de memória e, também, das reportagens. Lia também o L’Express e o Le Monde Diplomatique, mas com dificuldade pois ainda dava os primeiros passos no aprendizado do francês. Era uma espécie de coringa. Podia estar fazendo uma reportagem sobre a seca em Irecê ou juazeiro, como um desastre de avião ou um buraco de rua.
Foram anos preciosos. Visto à distância, foi uma época singular. Havia uma ditadura no país, mas a Bahia era uma espécie de éden. Servia de abrigo para os militantes sitiados no Rio de Janeiro e São Paulo. O emprego era fácil, a sociedade acolhedora e, na verdade, tornou-se uma espécie de divã de psicanálise nacional. E havia um dado que não pode ser esquecido: a industrialização, que se afirmava lentamente, gerava riqueza e dava base ao ciclo de renovação que faria da Tribuna um ícone e uma metáfora. Ícone, porque se tornou referência de jornalismo dinâmico e moderno. Metáfora porque simbolizava uma época de ouro que, infelizmente, se exauriu.
A palavra síntese daqueles tempos era concorrência. Saudável e ativa. Não a concorrência pela concorrência, mas a concorrência para fazer o melhor, servir ao leitor. Denunciar o regime nas entrelinhas. Um dado que me marcou até hoje foi o vigor ético da nova geração. Falava-se muito desse tema. Não de uma ética utilitária, mas de uma ética ditada pelo caráter das ações. Os recém-chegados da faculdade viam o jornalismo como uma profissão. Não um passaporte para conseguir empregos públicos. Navegavam no sonho de salários dignos e navegava-se no sonho da independência de opinião.
Os repórteres de A TARDE e da Tribuna, como também o Diário de Noticias e do Jornal da Bahia disputavam palmo a palmo o furo, a reportagem bem escrita, as manchetes. O JB mais à esquerda, mais cioso da sua intelectualidade, mais agressivo. O Diário de Noticias mais para o centro, mais governista, mais suave. Mas com uma redação competente. Fazia-se jornalismo. O bom texto, o bom repórter tinha valor. Respirava-se vontade de ir além das expectativas. Havia uma visão crítica da sociedade. Dava prazer trabalhar. A lógica dominante era da paixão pelo fazer acontecer. Se destacar. Visitar a estação do tempo de 40 anos atrás não é saudosismo, mas, sim, um tributo à memória. Como ensina Hannah Arendt é a memória que garante a eternidade da ação fugaz dos homens. Fico por aqui. Dedico este artigo a todos os companheiros daqueles tempos de guerra (contra a ditadura) e utopia (como vontade transformadora). Foi um privilégio ter participado daqueles dias e noites de recriação do jornalismo.’
DEMOCRACIA
As garras do coronelismo eletrônico
‘De tempos em tempos ocorrem episódios simbólicos que revelam o quão incompleta é a democracia brasileira.
O fato da vez ocorreu na última reunião da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, responsável por aprovar a outorga das concessões de rádio e TV. Na ocasião, os deputados membros da comissão negaram um pedido para a realização de uma simples audiência pública para discutir a renovação de uma concessão de televisão, no caso a da Band Minas.
A autora do pedido, a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), justificou a solicitação de forma transparente: organizações da sociedade civil local a procuraram porque queriam discutir com os parlamentares e com a própria emissora algumas questões sobre a prestação do serviço que, julgam, poderiam ser aperfeiçoadas. Se há um lugar para se discutir assuntos dessa natureza é justamente na passagem dos processos pelo Congresso Nacional. Afinal, é a casa do povo…
O pedido para a realização da audiência pública foi suficiente para despertar a ira dos deputados. Discutir a renovação de uma concessão? Sempre foram automáticas, sem critério nenhum para análise, sem a possibilidade de questionamento por parte de quem quer que seja, então por que agora haveria de ser diferente?
Há um ano, a mesma comissão, após intensos debates, aprovou a possibilidade de realização de audiências públicas para que a sociedade pudesse participar minimamente do processo de renovação de concessões. Na teoria funcionou, mas foi só aparecer um pedido concreto para as excelências cerrarem fileiras contra a possibilidade de discussão pública.
A análise do pedido – singelo, repito – tomou uma reunião inteira da comissão. Por três horas, a bancada da radiodifusão argumentou não haver motivos para se discutir o tema. Disseram os deputados que os serviços prestados pelo grupo Bandeirantes possuem notória relevância. Outros chegaram a evocar sua amizade pessoal com a família Saad para justificar o veto ao debate público.
No final das contas, o resultado foi avassalador: 20 deputados votaram contra a audiência. A favor, somente quatro – três do PT e um do PDT – além da própria Luiza Erundina.
O episódio não chega a surpreender, mas joga luz sobre um problema nativo antigo, que é a relação promíscua entre poder político e meios de comunicação. No Brasil, um parece não viver sem o outro, quando um também não é o outro. As famílias Magalhães, Barbalho, Jereissati, Collor e Sarney, para só citar algumas, estão aí para não me deixarem mentir. Tenho certeza que os leitores podem completar a lista com exemplos de suas cidades.
Não à toa, cunhou-se o termo ‘coronelismo eletrônico’ para definir o controle dos meios de comunicação por políticos e oligarcas regionais.
Desde os anos 50 esse tipo de prática se consolida no país. A situação se tornou crônica durante o Governo Sarney (1985-1989), quando o então ministro das Comunicações era Antônio Carlos Magalhães.
No início da atual legislatura, 53 deputados federais e 27 senadores declararam possuir algum tipo de controle sobre veículos de comunicação, o que representa 10% da Câmara dos Deputados e incríveis 33,3% do Senado Federal.
Na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, 16 deputados são concessionários diretos de radiodifusão, sendo que pelo menos dez deles já votaram em seus próprios processos de renovação de concessão.
Mas não precisaria ser assim, já que nossa Constituição (aquela que deveria ser a lei maior do país) afirma em seu artigo 54 que deputados e senadores não poderão ‘firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público’. Está lá escrito para quem quiser ver.
Mas, assim como outras leis, a determinação constitucional é letra morte. Na prática, é como se não existisse.
E, enquanto isso, nossa democracia padece.’
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