Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Ubiratan Brasil

‘No verão de 1940, o pintor espanhol Salvador Dalí e a mulher, Gala, reencontram o escritor austríaco Stefan Zweig, em um restaurante. Estavam em Londres e Zweig, respeitado autor judeu que estava decidido a se mudar para o Brasil fugindo do nazismo, tenta convencer o pintor a acompanhá-lo. Dalí resiste, alegando horror aos trópicos. À beira das lágrimas, Zweig demora-se, então, ao descrever as dimensões das borboletas brasileiras, acreditando que somente no Brasil o pintor e Gala seriam perfeitamente felizes. Dalí, porém, não dá o braço a torcer: responde que há borboletas grandes em qualquer parte do mundo. ‘Ele parecia acreditar que nossa ida ao Brasil era uma questão de vida ou morte’, escreveu o pintor em seu diário.

O flagrante, significativo para descrever a obsessão que Zweig sentia pela perseguição aos judeus na Alemanha, é apenas uma das diversas novidades reveladas pela nova versão de Morte no Paraíso (Rocco, 600 págs., R$ 68,50), livro publicado em 1981 e, depois de reescrito pelo autor, Alberto Dines, sai agora em edição mais completa e encorpada. ‘Desde a primeira edição, foram divulgados os diários de Zweig e eu recebi inúmeras contribuições, o que justificava a reescrita’, conta Dines, que lança o livro amanhã, às 18h30, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2.073).

Europeu culto, elegante, rico, sensível e, principalmente, pacifista, Stefan Zweig mudou-se com a mulher Lotte para Petrópolis, onde acreditava ter realmente encontrado o país do futuro, título de um dos livros que escreveu (Brasil, País do Futuro), expressão cunhada por ele. Um ano e meio depois daquele encontro com Gala e Dalí, porém, no carnaval de 1942, ele se suicidou ao lado da mulher, tomando uma dose dupla de veneno – o avanço das tropas de Hitler, que capturaram Paris e apontavam para a Inglaterra, elevou sua angústia a um nível intolerável.

‘Mas Zweig não é apenas o homem célebre que se suicidou no país onde buscou asilo’, sustenta Dines. ‘Ele catalisa os tormentos de uma época, os personagens que focalizou para biografar, o mundo em permanente mutação, o tempo em que viveu.’

Como prova, ele se lembra da autobiografia que Zweig terminou poucas semanas antes de se matar – o título original era O Mundo de Ontem (em português, O Mundo Que Eu Vivi). ‘Ou seja, o mundo que caía em 1942 ficou atualíssimo 64 anos depois: Zweig continua um best-seller na Europa porque sua tragédia revive temas eternos, além de problemas e angústias não resolvidas.’

Dines iniciou o trabalho de reescrita do livro dias depois de publicada a primeira edição, em 1981, quando começou a receber contribuições de pessoas que conheceram ou tinham algo para acrescentar sobre a passagem de Zweig pelo Brasil. Inicialmente, eram informações que renderiam novos rodapés mas, entre uma edição e outra, a quantidade de novidades atingiu um tamanho que justificava o novo trabalho.

A publicação dos diários de Zweig em 1984 e, mais tarde, o lançamento de algumas obras inéditas, convenceram Dines da necessidade de modificar o texto quase a ponto de torná-lo outro. O acontecimento definitivo ocorreu em 1992, quando o escritor morava em Lisboa e participou de um congresso na Áustria. Lá, ele apresentou dados que contavam sobre uma passagem de Zweig pela capital portuguesa para descansar.

‘Resolvi pesquisar melhor e descobri, em Lisboa, um verdadeiro tesouro’, conta. ‘Zweig engajou-se em uma organização judaica sediada em Londres para salvar refugiados do nazismo e abrigá-los em países suficientemente espaçosos para receber multidões.’ Assim, viajando incógnito, ele foi a Lisboa convencer Salazar a abrir o planalto central de Angola para os perseguidos de Hitler. Não chegou a ser recebido pelo ditador português, mas o fato convenceu Dines de que a questão dos refugiados era extremamente próxima com o controverso Brasil, País do Futuro.’

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‘‘Zweig via no Brasil o antídoto ao ódio do mundo’’, copyright O Estado de S. Paulo, 29/8/04

‘Alberto Dines considerou oportuno o lançamento da nova versão de Morte no Paraíso na mesma época em que são lembrados os 50 anos da morte de Getúlio Vargas – embora Stefan Zweig adorasse o País, o Brasil teve muita influência em sua morte. ‘Ele não foi vítima da violência, mas sim das artimanhas do Estado Novo’, conta Dines.

O livro Brasil, País do Futuro é exemplo de como agia o governo por meio do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), chefiado por Lourival Fontes.

Segundo Dines, conhecendo o entusiasmo de Zweig pelo Brasil (que começou em 1936), o governo lhe ofereceu um visto de residência em troca de escrever uma obra sobre o País. ‘Ficar aqui significava estar longe do terror nazista e, embora não fosse acostumado a literatura de viagens, ele aceitou a troca.’

Como já admirava o Brasil, Zweig escreveu com prazer. O título foi criado ainda em Nova York e pretendia apresentar o País como uma solução para os problemas que afligiam a humanidade. ‘Ele se espantou em ver pessoas de diversas raças convivendo calmamente nas cidades e, portanto, apontou as potencialidades da nação e não apenas no plano econômico, em que recebeu dicas do empresário Roberto Simonsen’, afirma. ‘Zweig enxergava no Brasil um antídoto para o ódio que tomava conta do mundo. Muito antes de firmado o conceito de sociedade cordial, ele já se encantava com a nossa bonomia e com o que Voltaire e Montaigne, antes dele, chamaram de ‘bondade natural’.’

O que era primeiro um conceito logo se tornou um estigma – apesar de ter criado um canto de louvor ao povo e não ao governo brasileiro, Zweig recebeu duras críticas. ‘Como estávamos sob censura ferrenha, a imprensa poupou o governo para descontar no autor do livro. Disseram, inclusive, que tinha sido ‘comprado’ pelo DIP.’ Mas, segundo Alberto Dines, o escritor estava certo ao descrever o País como uma espécie de paraíso: ‘Nós é que perdemos de vista os seus paradigmas humanistas.’

A imprensa da época também foi extremamente imprecisa ao acompanhar o suicídio do escritor e de sua mulher Lotte, a 23 de fevereiro de 1942, um domingo de carnaval. Stefan Zweig preparou seu fim e deixou várias evidências sobre o plano. Como a série de 13 cartas de despedida, algumas enviadas na tarde anterior, quando o casal foi visto por diversas pessoas.

Também a organização dos arquivos com originais do escritor, além de livros que deveriam ser devolvidos aos respectivos donos com uma palavra de cortesia. E ainda uma ‘Declaração’ manuscrita (sua caligrafia era inconfundível), pousada na cômoda.

‘Os repórteres, porém, foram muito relapsos e não notaram detalhes que poderiam ser essenciais’, reclama Dines. ‘Como um livro de Medicina, que foi deixado aberto por Zweig ou sua mulher – por que ninguém se interessou em descobrir sobre qual assunto tratava aquele trecho?’

Com o faro de um bom policial, Dines dissecou também a foto em que aparecem os corpos do escritor (cuidadosamente trajado) e o de Lotte, que surge abraçando-o. Na imagem, ele descobriu uma caixa de fósforo aberta, deixada sobre a cômoda. ‘Como não há sinais de palitos ou mesmo de charutos, acredito que ali Zweig carregou a morfina que os matou.’

É impressionante também como o pacto macabro foi conduzido por Lotte, que morreu por último, o que é perceptível a partir da posição em que ficou seu corpo. ‘Sua morte deve ter sido mais rápida, pois a musculatura estava muito rígida’, comenta. ‘Zweig se matou tomado pelas dores do mundo e Lotte, como uma perfeita secretária, supervisionou tudo e ainda o seguiu.’

Disposto a não mais reescrever o livro – vai apenas supervisionar algumas traduções, como a inclusão de material inédito sobre a relação de Zweig com seu editor argentino quando o livro sair em espanhol -, Dines busca ainda um detalhe que não conseguiu elucidar: a briga que o escritor austríaco teve com o poeta mineiro Ribeiro Couto. ‘Sei apenas que discussão aconteceu porque Couto, que tinha idéias racistas, reclamou da insistência de Zweig, em Brasil, País do Futuro, em ter mais mão-de-obra estrangeira no País. O assunto é tratado em uma carta que o austríaco escreveu para um amigo, em Buenos Aires, e que continua desaparecida.’ Uma colaboração que, se doada como as demais que vieram após a primeira edição, será bem-vinda.’



Rachel Bertol

‘Dines relança biografia de Zweig, atual no derrotismo’, copyright O Globo, 24/8/04

‘Em todas as casualidades, diz o jornalista Alberto Dines, ‘há uma dose de causalidade’. Por isso, o lançamento, hoje, da terceira edição de ‘Morte no paraíso – A tragédia de Stefan Zweig’ ganha um significado extra. A sessão de autógrafos, às 19h30m, na livraria Argumento (Dias Ferreira 417, Leblon), acontece no dia em que Getulio Vargas se suicidou, há 50 anos. Segundo Dines, o lançamento nesta data é uma oportunidade para lembrar ‘elementos cruciais da biografia de Zweig’, escritor austríaco e judeu que, por causa do nazismo, veio se refugiar no Brasil, apesar da ditadura do Estado Novo. Aqui, o autor de ‘Brasil, país do futuro’ – aposto que virou estigma, diz Dines – não suportou a solidão e a depressão e, quatro dias depois do carnaval de 1942, suicidou-se em Petrópolis, junto com Lotte, sua mulher e secretária.

Outros biógrafos, de acordo com Dines, ‘menosprezaram o ângulo brasileiro’.

– O Brasil teve muito a ver com a sua morte. É preciso não esquecer que ao longo de 10% da sua vida — seis anos, os derradeiros – Zweig manteve uma forte ligação com o nosso país. Ele não chega a ser uma ‘vítima de Vargas’, mas foi um caso emblemático do sistema de maquinações do Estado Novo às quais não escaparam tantos intelectuais aqui refugiados e também muitos brasileiros que deveriam saber como delas esquivar-se. Zweig foi vítima das artimanhas do Estado Novo – afirma Dines, que amanhã, às 20h, fará a palestra ‘Por que Stefan Zweig?’, seguida de autógrafos, na Associação Religiosa Israelita (General Severiano 170, em Botafogo).

Desde 1981, quando publicou a primeira edição da biografia, o jornalista nunca deixou de reunir novas informações sobre Zweig. Tido a princípio como um autor menor – diferentemente de seus amigos Romain Rolland e Thomas Mann, ambos Nobel de literatura – Zweig, curiosamente, continua a suscitar paixões e tem sua obra relida e reeditada em todo o mundo. Segundo Dines, eram tantas as novas informações que foi impossível não reescrever a biografia.

– Trata-se do mesmo Zweig, amável ou detestável. Ele não mudou, o retrato que dele fiz em 1981 é exatamente o mesmo que faço agora. A mudança foi no traço. Nas primeiras edições fiz uma aquarela, agora ofereço uma água-forte. O mundo é que mudou muito e hoje temos condições de conhecê-lo melhor. Em 1981, os fantasmas dos anos 30 e 40 pareciam definitivamente arquivados. Em 2004, aparentemente, escaparam dos armários – afirma Dines, criador do Observatório da Imprensa e organizador e autor de outros 15 livros, como ‘Vínculos do fogo – Antônio José da Silva, o Judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil’.

‘Um intuitivo, dominado por percepções’

O pacifista Zweig não tinha como saber do Holocausto no início de 1942, mas, de acordo com Dines, ‘era um intuitivo, dominado por percepções e, sobretudo, pressentimentos’.

– Com base no que viu entre 1933 e 1942 sabia que algo pior estava sendo gestado. No fundo, sabia que Hitler seria derrotado – está dito na sua famosa ‘Declaração’ (seu último texto) – mas sabia também que o seu mundo, ‘o mundo de ontem’ – o titulo de seu livro de memórias – estava acabado. Matou-se poucas semanas após escrever as linhas finais da autobiografia.

Na nova introdução ao livro, Dines observa que ‘agora que tentam minimizá-lo (o Holocausto) , negá-lo e até justificá-lo, Zweig funciona como antídoto aos candidatos à reincidência’.

– Os que negam ou relativizam o Holocausto preparam a sua duplicação com ingredientes e elementos diferentes porém com as mesmas dimensões trágicas. O nazismo é a expressão máxima do fanatismo. E o fanatismo está ai, outra vez – afirma ele.

Dos acréscimos que fez, considera ‘o episódio português’ um dos mais relevantes. Com base em novas pesquisas, Dines descobriu que, no inverno de 1938, Zweig foi a Lisboa para tentar convencer Salazar a permitir a entrada de refugiados do nazismo no planalto angolano. Mas, chegando lá, nem audiência com o ditador ele pediu.

Para Dines, Zweig sempre fez a opção pelos derrotados, ‘identificou-se com os perdedores porque neles encontrava grandeza moral’.

– Sempre detestou os triunfantes e o triunfalismo. Por isso, tornou-se um pacifista pois as guerras são produzidas pela certeza de vitória.

Quase todos os seus biografados são os que ‘fazem as opções dignas mesmo que paguem um alto preço por isso’. O exemplo de Zweig também inspira no exercício do jornalismo.

– A ética sem dor é retórica. A busca da verdade, nossa divisa profissional, é necessariamente incômoda, sofrida. A pletora atual de prêmios de jornalismo faz da busca da verdade uma mercadoria. Na sociedade contemporânea que fez do êxito uma religião, o derrotismo zweiguiano pode parecer inadequado, romântico e antiquado. É justamente isso que o torna atual.’



MEMÓRIA / GV
Cora Rónai

‘A fantástica máquina do tempo’, copyright O Globo, 30/8/04

‘Na madrugada da terça passada, os leitores do blog do jornalista Ricardo Noblat puderam acompanhar uma experiência sensacional. À meia-noite em ponto, o blog voltou no tempo e aterrissou no dia 24 de agosto de 1954. A partir daquele momento, os acontecimentos imediatamente anteriores ao suicídio de Getúlio Vargas foram contados como notícia, e não história.

Eu tive a sorte de participar desta grande e-ventura , tanto como leitora ávida pelas ‘novidades’ quanto como jornalista: vários colegas e personalidades do mundo político escreveram artigos especiais, os mais velhos contando as sensações do dia, os mais novos fazendo, literalmente, um esforço de reportagem virtual, transportando-se a um tempo que não conheceram.

Peço desculpas a vocês por não ter avisado antes; mas a idéia era tão boa que não valia a pena correr o risco de ver algum portal esperto correndo por fora e pondo a perder o esforço de um jornalista auxiliado por meia dúzia de amigos. Esta é, afinal, uma das grandes maravilhas da internet: ninguém precisa ser uma grande empresa para criar um grande evento.

Tão bom quanto acompanhar a maratona do Noblat, foi acompanhar os comentários dos seus leitores. Quem vive na rede sabe: mesmo nas horas mais negras da madrugada, há sempre umas corujas malucas de olho acesso, trocando idéias:

Leitor: ‘Contem alguma coisa enquanto a gente espera. Ei Housman, conta algo. Mourão, pega um café.’

Housman: ‘Pensei em postar um conto meu conciso para vocês, mas me xingariam demais…’

Mourão: ‘Estou com sono. O Noblat não termina de contar o causo!’

Housman: ‘Ô Leitor, serve um chá de funcho pra nós?’

Leitor: ‘Gelado ou quente?’

Housman: ‘Morno’

Leitor: ‘Vou dormir. Por favor anotem os recados para mim. Volto antes do funeral. Boa noite a todos os companheiros de boemia!’

ML: ‘Um bom dia amigo Leitor e ao amigo Hau… Vou nessa também.’

Leitor: ‘Deixei o chá na bandeja, está morno. Tem açúcar, adoçante e uns biscoitinhos. Café também tem mas, está fraco. A água está na jarra e está sem gelo. Durmam bem.’

A máquina do tempo do Noblat pode ser encontrada, com comentários e tudo, em ; rolem a tela até chegar ao dia 24. Em tempo: a conversa das corujas foi exceção. De modo geral, discutiu-se História, em grande estilo. Mas eu adoro corujas malucas.’