‘Cansado de anos de invasões policiais, agressões e prisões, Aparício Torelly, vulgo Barão de Itararé, colocou um pequeno aviso na porta de entrada da redação de seu jornal, A Manha: ‘Entre sem bater.’ Mais que uma provocação, o cartaz representava o tipo de humor que, no início do século passado, Torelly incentivava na imprensa brasileira, combinando a crítica incisiva à política e à sociedade ao mais absoluto nonsense. Trazia também novidades gráficas, com montagens fotográficas e fotos retocadas para servir ao texto.
‘Desse senhor Barão de Itararé, de seu riso claro e irresistível, nasceram os atuais humoristas brasileiros, os que desenham, os que escrevem, os que desenham e escrevem’, disse, certa vez, Jorge Amado, afirmação recuperada por Luís Pimentel em seu Entre sem Bater! (Ediouro, 109 págs., R$ 35), um descompromissado estudo sobre o humor na imprensa brasileira, desde a primeira caricatura publicada no País (em 1837, no Jornal do Commercio do Rio) até o recente Opasquim21.
A obra chega às livrarias no mesmo momento em que a editora do Clube dos Quadrinhos recuperou o precioso trabalho de um dos mais influentes desenhistas de imprensa do Brasil – em Alceu Penna e as Garotas do Brasil, Gonçalo Júnior mostra a trajetória do mineiro que se tornou o primeiro e único brasileiro a publicar na revista americana Esquire, além de criar, para a Cruzeiro, desenhos de pin-ups que influenciaram a moda nos anos 40 e 50.
São traços que comprovam o vigor que a caricatura sempre revelou no Brasil.
A história remonta ao período regencial em que o desenho de Araújo Porto-Alegre satirizava a briga dos partidos pelo poder, que acabaria nas mãos de d. Pedro II, cuja maioridade foi antecipada justamente para botar um ponto final da disputa. Com seu bico-de-pena, Porto-Alegre destilou veneno e deu o tom aos seus sucessores.
Como o italiano Angelo Agostini, que, na Revista Ilustrada, tripudiava de d.
Pedro II, eleito seu alvo principal. ‘O humor brasileiro sempre se diferenciou pela agilidade’, comenta Pimentel, cujo trabalho confirma a análise feita pelo historiador Elias Thomé Saliba – ao se debruçar sobre a função do humor na sociedade brasileira, ele notou que a caricatura, em particular, atua como uma cunha entre o discurso político – pródigo em promessas não-cumpridas – e a impotência do cidadão anônimo.
O fato torna-se mais evidente, segundo o historiador, durante a República Velha e o crescimento no número de publicações satíricas. Foi a época em que o melhor traço e o humor mais refinado eram disputados a tapa, revelando nomes que se tornariam referência para os futuros humoristas, como J.
Carlos, Raul, K. Lixto, Belmonte, Guevara e até Di Cavalcanti que, antes de se consagrar com as belas mulatas, fez charges e caricaturas para diversos periódicos.’
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‘‘Descaso com originais foi pior que a censura’’, copyright O Estado de S. Paulo, 12/09/04
‘Nenhum governante da recente história política brasileira escapou da mira dos caricaturistas de imprensa. Em seu livro Entre sem Bater!, Luís Pimentel relembra a explosiva trajetória do semanário mineiro Binômio que, entre 1952 e 1964, filtrava o noticiário pela irreverência. Entre manchetes de mau gosto (como na edição em que tratava de um prefeito de Belo Horizonte, que tinha só um olho: ‘Um administrador de visão única’), a publicação destacou-se com uma capa histórica, de 1952, em que mostrava uma foto de ponta-cabeça do então governador Juscelino Kubitschek com a seguinte legenda: ‘Governador plantando bananeira’.
Pimentel observa a linha evolutiva do humor impresso, especialmente nos períodos de censura mais acirrada. O tempo, porém, pregou-lhe uma peça: ele trata o semanário Opasquim21 como único representante em atividade, mas o jornal deixou recentemente de circular.
Estado – Em que aspecto, o humor brasileiro se diferencia do do resto do mundo? Há uma característica que seja só (ou principalmente) nacional?
Luís Pimentel – O humor brasileiro se diferencia na agilidade. Nossos humoristas, talvez por conta das dificuldades que o mercado restritivo sempre impôs, aprenderam a lidar com a piada com muita intimidade e jogo de cintura. Tudo aqui dá piada, vira charge ou cartum. E era assim também nos tempos bicudos da repressão política. Os censores impediam a publicação, mas nem por isso os nossos criadores deixavam de criar, deixavam a peteca cair.
Não conheço a imprensa de humor mundo afora, como conhecem o Ziraldo e o Jaguar, por exemplo. Mas pelo pouco que li e vi, duvido que exista outra com pegada tão certeira. Modéstia à parte, nesta área (e não só no futebol) nós somos mesmo imbatíveis.
Estado – Quem seriam os artistas seminais, aqueles que influenciaram as gerações seguintes? Por quê?
Pimentel – Barão de Itararé, J. Carlos, Nássara, Don Rossé Cavaca, Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Ziraldo e Jaguar. Penso que esses têm sido, ao longo dos anos e em diferentes fases, os grandes inspiradores dos artistas que vão começando.
Estado – O caricaturista Loredano acredita que J. Carlos foi o maior desenhista de imprensa no Brasil. O que pensa você?
Pimentel – Loredano está certo. No traço, J. Carlos foi imbatível. Tão importante quanto o Barão de Itararé no texto ou o Chico Anysio no humor de rádio e TV.
Estado – Especula-se que muitos dos desenhistas mais antigos não guardavam originais, jogando-os no lixo. Seria possível ter realmente um arquivo muito mais completo?
Pimentel – Acredito que sim. Muitos originais foram perdidos em bares, em táxis ou em redações de jornais e revistas. Creio que o descaso terá feito um estrago maior do que a censura.
Estado – Por falar na censura, até que ponto ela foi uma exterminadora de originais?
Pimentel – Acho que a censura não exterminava originais – danificava e devolvia. Felizmente, muita coisa foi recuperada e publicada depois. Meu livro tem algumas sugestões gráficas para capas do Pasquim, com imenso X de caneta de fora a fora.
Estado – Com os atuais recursos tecnológicos, é possível apontar para uma mudança de rumo na arte brasileira de imprensa? Ou seja, uma estilização mais futurista?
Pimentel – Creio que inúmeras mudanças de rumo poderão acontecer, por conta dos novíssimos recursos tecnológicos. Todas do ponto de vista da forma; quanto ao conteúdo, este continuará sendo exigência. O talento jamais será substituído.’
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‘As certinhas do Alceu Penna’, copyright O Estado de S. Paulo, 12/09/04
‘Alceu Penna (1915-1980) ensinou Carmen Miranda a gingar com saia, escolheu as roupas do Bando da Lua, vestiu Marta Rocha no concurso Miss Universo de 1954, fez os figurinos de espetáculos dos cassinos e teatros cariocas, adaptou clássicos da literatura mundial, mas seu nome se tornou mundialmente conhecido graças à seção As Garotas do Alceu, que publicava na revista O Cruzeiro e era lida com avidez por todas as moças de família. ‘Entre 1938 e 1964, ele ditou a moda no País’, conta Gonçalo Neto, autor de Alceu Penna e as Garotas do Brasil, editado pelo Clube dos Quadrinhos (informações pelo e-mail cluq@terra.com.br).
A grande oportunidade de Penna surgiu em 1941 quando, durante a guerra, a revista deixou de receber o material jornalístico que vinha da França. Com um conteúdo já direcionado para o público feminino desde a reformulação editorial de 1934, O Cruzeiro abriu espaço então para o cartunista mineiro que, inspirado na sensualidade das pin-ups, iniciou uma série de desenhos sobre garotas que ganhou leitores fiéis.
‘Ele foi o criador de um biótipo da garota padrão do Rio de Janeiro muito antes de Tom Jobim e Vinícius de Morais comporem Garota de Ipanema no começo da década de 1960 – e certamente deve tê-los influenciado’, acredita Gonçalo, que contou com o auxílio imprescindível de Theresa Penna, irmã de Alceu e organizadora de sua obra, com destaque para desenhos inéditos.
Gonçalo observa que o trabalho de Penna tinha uma aparente superficialidade – segundo ele, As Garotas do Alceu difundiu as tendências de liberdade e emancipação da mulher ocidental, às vezes à frente das atitudes mostradas pelo cinema e pela moda. ‘Suas meninas era, no mínimo, ousadas para os valores morais de seu tempo. Apareciam em um universo do qual os homens raramente faziam parte como protagonistas – eram apenas coadjuvantes – e curtiam a vida a bordo de Cadilacs sem a necessidade de companhias masculinas’, escreve ele.
Penna exibia um traço elegante e estiloso capaz de convencer seus leitores de que a liberdade e a sensualidade femininas nada tinham a ver com vulgaridade ou, no extremo oposto, com a castidade. Com isso, tornou-se uma verdadeira celebridade: foi convidado para ilustrar a poderosa revista americana Esquire e recusou um convite para trabalhar nos estúdios Disney temendo se tornar mais uma peça na engrenagem industrial do cinema.
Anos mais tarde, ao se envolver com a moda (nessa época, assume que é estilista), Penna viajou para a França onde chegou a contatar Dior. Apesar de tanto sucesso, ele morreu pobre e estaria esquecido não fosse o esforço de Gonçalo Júnior.’
João Luiz Sampaio
‘Quando Cabral encontrou Tiradentes’, copyright O Estado de S. Paulo, 12/09/04
‘O livro foi escrito, está anotado logo na orelha, por um monge cristão no ano 400 a.C. ‘E um exemplar autografado fazia parte da bagagem de Pedro Álvares Cabral, que deixou Lisboa a bordo de um navio a vapor em direção à Bahia. Lá chegando, foi recepcionado por chefes indígenas como Tiradentes, José Bonifácio, D. Pedro II e o Marechal Deodoro. O navegador lhes ofereceu o livro como presente e, logo após a Primeira Missa de Vítor Meirelles, descobriu o Brasil.’ Não é preciso avançar muito na leitura de O Brasil pelo Método Confuso (Cia. das Letras, 300 págs., R$ 31) para entender a intenção de seu autor Mendes Fradique, que misturou datas, personalidades, mitos e histórias para narrar com muito humor, no fim do século 19, a história do País.
Editado no início da década de 20, o livro já foi tido, como assinala a sua organizadora, Isabel Lustosa, como precursor do modernismo brasileiro. E seria errado não perceber por trás da ‘confusão’ e do besteirol do autor – médico capixaba cujo nome verdadeiro era José Madeira de Freitas – ‘um curioso painel da sociedade e de suas elites políticas e culturais na Primeira República, em forma de quebra-cabeça ou de charada, cheio de pistas falsas’, como aponta Isabel.
E aí está a grande sacada do autor. ‘Ao se propor a contar a história do Brasil pelo método confuso, Mendes Fradique acaba por adotar um rigor metodológico absoluto’, explica Isabel. ‘Tudo em seu livro sofre os efeitos do seu ‘método’ – capa, prefácios, informações sobre outras obras do autor, número de edições, notas de pé de página, índice, tanto quanto a própria estrutura narrativa, a entrada em cena dos personagens etc., são objeto de confusão-humor. Ou seja, ao tentar ‘confundir’ o método, Mendes Fradique, metodicamente, não deixa de submeter nada à confusão.’ E é isso, portanto, ‘que permite a Mendes Fradique questionar tudo’.
Mas é claro que o humor se faz presente parágrafo após parágrafo. E não apenas na narrativa, mas no próprio modo como ela se estrutura, desde os prefácios assinados por gente como Rui Barbosa, mas escritos na verdade pelo próprio autor, até a confissão da ‘falsidade ideológica’, no Prefácio:
‘Considerando que o sr. Rui Barbosa é muito grosso para pilhéria e por certo não receberia bem um pedido para prefaciar sandices; Considerando que se não tem direito de publicar qualquer cousa sobre o Brasil sem uma acentuada referência ao sr. Rui Barbosa; (…) Considerando que meu livro não comporta elogios justos e merecidos; (…) – Resolvi: Publicar uma carta apócrifa de Rui Barbosa, escrita pelo meu próprio punho, pela qual não respondo nem exijo que responda o sr. Rui Barbosa.’
Afinal, como escreve o autor, ‘não devemos deturpar amanhã o que podemos deturpar hoje’.’
STEFAN ZWEIG POR LLOSA
‘A Montanha dos Capuchinhos’, copyright O Estado de S. Paulo, 12/09/04
‘Acontece que desde a elevada fortaleza de Hohensalzburg, símbolo e sede do poder dos príncipes-arcebispos que durante séculos governaram Salzburgo, a harmonia e a beleza da cidade barroca onde nasceu Mozart são mais bem apreciadas a partir das ladeiras da Kapuzinerberg, uma elevação arborizada encimada por um convento de capuchinhos construído no século 16, que domina toda a cidade antiga e as voltas e curvas do Sulzbach, o rio que a atravessa. A única moradia que há nesse bosque é um belo pavilhão de caça erigido por um arcebispo do século 16, que o escritor Stefan Zweig (1881-1942) comprou em 1918 e onde morou até fevereiro de 1934, os anos mais fecundos e bem-sucedidos de sua vida literária. Não resta rastro dele na casa, a não ser o frondoso e perfumado jardim, que no verão fica cheio de flores e vespas ruidosas.
Seus atuais proprietários, dois irmãos, um empresário e outro pintor, não parecem saber muito sobre o ilustre homem de letras que, nos 16 anos que passou aqui, grandes artistas e intelectuais de toda a Europa vinham visitar.
Aquela Salzburgo na qual veio a instalar-se Stefan Zweig ao final da primeira Guerra Mundial era pequena e miserável – a Áustria ficou mutilada e arruinada no conflito – e esta casa estava cheia de goteiras, paredes sem pintura e encanamentos furados. Para resistir ao frio, ele escrevia as biografias, os ensaios históricos e os relatos que os leitores de meio mundo devoravam afundado numa cama com luvas de lã e um gorro de dormir enterrado até as orelhas. Da cidade até aqui era preciso subir uma escadaria com cem degraus que a neve, no inverno, transformava num tobogã. Mas a beleza e a tranqüilidade do lugar justificavam qualquer obstáculo e, além disso, atraíam as musas, porque os livros de Zweig daquela época – Amok, Carta de Uma Desconhecida, os dedicados a Hölderlin, Kleist e Nietzsche e Momentos Estelares da Humanidade, entre outros – foram tão reeditados e traduzidos que fizeram de seu autor um homem muito próspero. Zweig aproveitou para investir esses ganhos na sua paixão de colecionador e o antigo pavilhão de caça se encheu de manuscritos literários, partituras, e incunábulos e primeiras edições.
Em 1920, o diretor teatral Max Reinhardt e o poeta e dramaturgo Hugo von Hofmannsthal organizaram, na praça da catedral de Salzburgo, umas apresentações teatrais ao ar livre que desde o primeiro momento tiveram uma grande acolhida. Assim nasceu o festival que, dentro de poucos anos, transformaria Salzburgo, segundo Zweig, ‘na capital artística não só da Europa como também do mundo’, à qual afluíam no verão ‘reis e príncipes, milionários americanos e estrelas do cinema, amantes da música, escritores e celebridades, para aplaudir aqueles extraordinários espetáculos’. Passados 84 anos, o Festival de Salzburgo, dedicado a Mozart, continua sendo um dos mais prestigiados e transforma de meados de julho até o fim de agosto esta cidade num enclave civilizado onde a boa música, o bom teatro, excelentes exposições, as inquietações culturais e a alegria parecem ocupar tudo.
O festival tinha fama de conservador e restrito em matérias artísticas quando dirigido por Herbert von Karajan, mas seu sucessor, Gérard Mortier, injetou-lhe um formidável alento renovador e moderno que, na atualidade, até mesmo aqueles que foram os mais ruidosos críticos da sua gestão recordam com nostalgia. Não diminuiu de categoria com a partida de seu diretor belga, mas sim perdeu seu ar juvenil e polêmico que Mortier soube insuflar-lhe sem, com isso, romper com sua vocação clássica.
A não ser uma vereda perdida entre pinheiros que leva o seu nome, nada em Salzburgo lembra Stefan Zweig. Os guias turísticos não o mencionam ou apenas a sua carreira em tópicos e não existe nenhuma placa na casa onde morou, como se a cidade se sentisse incomodada com a recordação daquele vizinho ilustre que, entre 1918 e 1934, foi das maiores celebridades que Salzburgo exibiu perante o mundo. Por quê? Porque o autor de O Mundo de ontem está intimamente ligado a um passado que esta bela cidade, que este belíssimo país que é a Áustria, cuja prosperidade e estilos de vida civilizados deixam os forasteiros invejosos e admirados, cuidou de esquecer, abolir e substituir, como aqueles imperadores incas que subiam ao poder com um séquito de historiadores, cuja função era reconstruir a história de maneira que esta alcançasse seu apogeu sempre com o inca reinante.
Desde a montanha dos capuchinhos, além do rio e da cidade barroca das 50 igrejas, divisa-se uma paliçada de pedra que esconde as nuvens cujo nome soa como um calafrio: Berchtesgaden. No seu cume distante está a casa que Martin Bormann deu de presente a Hitler, quando este fez meio século de vida e onde o Führer costumava passar suas férias. Das janelas de seu quarto, Stefan Zweig conseguia divisar aquele ninho de águias onde, naqueles anos, sem que o diligente escritor suspeitasse, o caudilho nazista estava assentando as bases da tragédia que acabaria com sua obra, com sua vida e com a de pelo menos 20 milhões de europeus.
Segundo sua própria confissão, os primeiros anos do nazismo, apesar de terem transcorrido às portas de Salzburgo, na vizinha Munique, foram para ele nada mais que umas travessuras de palermas iletrados que cruzavam a fronteira alemã e organizavam marchas e comícios com alguns gatos pingados, onde cantavam canções patrióticas e vociferavam insultos anti-semitas que os vizinhos austríacos observavam de longe, como palhaçadas sem importância.
Zweig detestava política e, como não se metia com ela, tinha a ingenuidade de achar que ela também não se meteria com ele nunca. De repente, descobriu que era judeu. E descobriu nos olhos de seu melhor amigo, um intelectual ilustre, com quem conversava, discutia, trocava livros e idéias e passava horas nos bares bebendo litros de cerveja. O judaísmo devia ser algo muito vago e distante para esse austríaco laico, para esse intelectual totalmente integrado à cultura ocidental, para esse europeu ao qual a religião só interessava como objeto de estudo ou fonte de prazeres estéticos. E, não obstante, um belo dia, aquele amigo deixou de cumprimentá-lo na rua e, pior ainda, o fez saber que só podiam continuar sua amizade de maneira clandestina, porque para um ariano como ele havia se tornado muito arriscado freqüentar um judeu.
O estupor de Stefan Zweig foi o mesmo que, nessa cidade prodigiosamente culta e criativa que era naquela época Viena, deve ter surpreendido Karl Popper, Sigmund Freud, dezenas de músicos, filósofos, economistas, artistas, escritores, arquitetos austríacos, integrados há gerações ao que acreditavam ser seu país, sua sociedade, sua cultura e que, da noite para o dia, deixaram de ser o que eram e passaram a ser párias, infectados, acossados, perseguidos. Quer dizer, judeus.
Quando quatro policiais austríacos se apresentaram na casa da montanha dos capuchinhos em fevereiro de 1934 com uma ordem de registro, porque se suponha que o proprietário escondia armas para uma conspiração subversiva, Stefan Zweig compreendeu que havia chegado a hora de partir. Empacotou o que pôde e, sem dizer a ninguém que estava partindo, fugiu para a Inglaterra, de onde logo continuaria fugindo, desta vez para além-mar, para Petrópolis, Brasil, onde em 1942, depois de um tranqüilo serão no qual jogaram uma partida de xadrez, ele e sua jovem esposa Lotte se suicidaram tomando uma forte dose de Veronal.
Será que lamentou nesses anos de desterro, enquanto via ruir ao seu redor toda aquela civilização européia refinada e tolerante, à qual havia dedicado tantos elogios nas figuras que, segundo ele, melhor a encarnavam, um Erasmo, um Montaigne, um Balzac, ter escrito o libreto para a ópera A Mulher Silenciosa, do provecto Richard Strauss, menino mimado pelos nazistas que estreou em Dresden sob o Terceiro Reich? Provavelmente, não. Até o fim, apesar das atrocidades que viu ao seu redor e padeceu na própria carne, Stefan Zweig acreditou que a cultura e a política eram esferas independentes que não deviam se misturar e que um escritor e um artista, para alcançar a excelência estética, deviam manter-se rigorosamente alijados dessa coisa medíocre, vulgar e suja que é a ocupação política. Ele colaborou com o exímio compositor Der Rosenkavalier que se deixou afagar e usar pelos nazistas, não porque compartilhasse de seus preconceitos e fanatismos criminosos, mas sim porque pensava que era a única maneira de preservar pequenas ilhotas de civilização e cultura em meio à barbárie política reinante.
O país que o desconheceu e o expulsou fez dessa ingênua convicção uma filosofia vitoriosa. Quando se pensa em nazismo, pensa-se na Alemanha e não na Áustria, onde houve tantos partidários de Hitler como entre os próprios alemães. Não obstante, jogando habilmente a carta da neutralidade e lançando um véu de amnésia e silêncio sobre esse passado comprometedor, a Áustria prosperou, democratizou-se e aparece na história contemporânea como uma das vítimas mais sofridas e de maneira alguma uma cúmplice das hordas sombrias.
Será que é são ou doentio pensar nessas coisas quando se está em Salzburgo gozando deste belo dia ensolarado e com uma entrada no bolso para ouvir esta noite na Grosses Festspielhaus a Filarmônica de Berlim, com sr. Simon Rattle, interpretando as Variações, de Schenberg, e a Nona, de Beethoven?
Melhora aspirar a fragrância do ar puríssimo, distrair-se com a geometria das abelhas que fazem evoluções entre as flores e dizer-se embevecido com o espetáculo do rio, das torres, dos campanários, dos palácios, dos conventos, que isto é a felicidade e que aqui encontrou inspiração um famoso escritor, que Salzburgo merece Mozart e que Mozart merece Salzburgo, e que Berchtesgaden não é mais que um pico alpino a cujos pés está o lago König, onde vão beijar-se todos os apaixonados. (Tradução de Maria de Lourdes Botelho)’