TRAGÉDIA EM CONGONHAS
Janela indiscreta, 20/07/07
‘As bruxas estão soltas: matam 200 inocentes, enlutam quase duas centenas de famílias, acabrunham a gente honrada, assustam aqueles que confiam no Estado como defensor do cidadão e avacalham uma República cujos dirigentes se avexam, incapazes de oferecer consolo ao povo sofrido.
Astutas e perversas essas bruxas aviltam pelo mundo afora a imagem do país do presente, comprometem os sonhos do país do futuro e, insaciáveis, flagram num gabinete contíguo ao do presidente, um dos seus cardeais exultando com a notícia de que o governo não era o culpado pela maior catástrofe aérea da sua história.
Quando os calendários eram disciplinados e obedeciam às superstições as bruxas baixavam em Agosto, no ano passado aterrissaram no final de Setembro e, neste ano, nos surpreendem em plenas férias de Julho.
Interrompem a euforia consumista do dólar baixo, tiram do pódio noticioso os atletas com suas medalhas de ouro, desprezam a baixa dos juros decretada pelo COPOM e, quando a mídia eletrônica estava sendo desmascarada por prejudicar o interesse público nas cruzadas contra a Classificação Indicativa da TV e contra as restrições à propaganda de bebidas alcoólicas, as manhosas bruxas colocam a imprensa como a única instituição vigilante num Estado omisso, arruinado pela corrupção e pela inépcia.
Ao contrário do filme de Alfred Hitchcock (no qual um fotógrafo preso à poltrona com o pé engessado desvenda o misterioso crime), assistimos diante de uma janela panorâmica à reprise da capciosa chanchada conspiratória armada no final do ano passado.
Na nota em que pede desculpas pelo debochado top-top (a expressão para designar o gesto foi criada pelo falecido cartunista Henfil no ‘Pasquim’) o assessor especial da Presidência e emérito professor universitário Marco Aurélio Garcia, investe novamente contra o seu alvo preferencial, a imprensa, com duas acusações no mínimo levianas.
Na tragédia com o Boeing da Gol em 29 de Setembro passado, a imprensa não culpou o governo. Ao contrário: quem prejulgou irresponsavelmente e antecipou-se às investigações foi o ministro da Defesa, Waldir Pires, interessado apenas em tirar o governo do foco das atenções já que o segundo turno das presidenciais ocorreria nas próximas semanas. Grande parte da mídia, sobretudo a eletrônica, deu ao ministro Pires ampla cobertura e passou ao largo das primeiras manifestações dos controladores de vôo, discretas naquele momento.
Nesta catástrofe com o Airbus da TAM, diante do incompreensível mutismo de todas as autoridades correram, como é natural, diferentes suspeitas: algumas sobre o estado da pista liberada prematuramente, outras recaíram sobre o piloto que teria aterrado com excesso de velocidade e, as últimas, aparentemente confirmadas, sobre a falha no sistema de reversão de uma das turbinas do jato. Recebidas com indignação (segundo Garcia) ou com júbilo (como transparece pelas imagens do cinegrafista que o filmou de longe), estas reações só servem para confirmar o grau de desnorteamento dos altos escalões do governo que se informam através dos telejornais ao invés de serem eles os informadores da opinião pública.
O poderoso Estado brasileiro não pode continuar apresentando-se como vítima da mídia. Esta manobra é tacanha e ridícula. Trata-se do mesmo despiste capcioso que no ano passado produziu perigosa crise institucional e que, neste exato momento, poucos dias depois de um banho de sangue que comoveu e revoltou grande parte da sociedade, pode gerar desdobramentos imprevisíveis.
A crise aérea é resultado direto e inequívoco da submissão do governo aos interesses do mercado. A entrega dos despojos da Varig aos seus competidores, a tibieza da Infraero diante das pressões da Gol e da TAM para entregar a pista de Congonhas antes de completados todos os reparos e a inapetência da ANAC para exercer com rigor a sua função disciplinadora no supersaturado aeroporto paulista escancaram o trágico equívoco de um governo de esquerda agachado diante de insaciáveis interesses empresariais.
Esta, a malícia final das bruxas.’
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