Poucas pessoas têm hoje ideia da importância, na história da televisão brasileira, de Homero Icaza Sánchez (com acento agudo no a), que morreu no último dia 30. Mas ela foi fundamental, transformadora.
Panamenho de nascimento, poeta, Homero tornou-se amigo de Manuel Bandeira, que chegou a traduzir alguns de seus poemas. Antológicos, como os do livro Las Arras del Amor, que ele mesmo conhecia desde 1966, mas só foram publicados na década de 80 em edição restrita de 210 exemplares, ilustrados por serigrafias de Carlos Scliar. São 15 sonetos impecáveis, em que o último verso do primeiro (“en este corazón desamparado”) passa a ser o primeiro verso do seguinte – e assim em todos os poemas, até que o 15º é feito dos primeiros versos dos 14 anteriores.
Homero tinha muitas aptidões. Foi dos primeiros a construir modelos para pesquisas de opinião pública. E essa capacidade acabou levando-o em 1973 para a ainda incipiente TV Globo. Homero tornou-se diretor de pesquisa e fez uma revolução. Naquele tempo, as novelas tinham em grande parte temas estranhos à realidade brasileira (O Sheik de Agadir, por exemplo). Com suas pesquisas, Homero mostrou que temas próximos da nossa realidade seriam bem aceitos pelo público – até desejados. E ocorreu a inflexão. Mas a principal inovação estava nas pesquisas que não se limitavam a perguntar se o espectador estava gostando ou não da novela – e sim em pesquisas específicas sobre cada personagem e as relações do espectador com ela. De tudo tomavam conhecimento os autores.
A recomendação
No primeiro contato profissional de Homero com o autor destas linhas (que passou em 1975 a ser editor-chefe do Globo Repórter), uma lição inesquecível: “Você não pode esquecer que, na televisão, fala com todos os públicos ao mesmo tempo – doutor e analfabeto, velho e criança, rico e pobre, homem e mulher, morador da cidade ou do campo, do sul ou do norte. E tem de ser entendido por todos, ser interessante para todos – sem ser chato, banal. Porque, se a pessoa não entender algo do seu texto e deixar de prestar atenção para perguntar a alguém “o que é que ele disse?”, já terá perdido a sequência e poderá mudar de canal”. E perder audiência na TV era e é pecado mortal.
Algum tempo depois, no governo Geisel, o programa deixou de ter censura prévia da Polícia Federal. Aproveitou-se, então, para abrir mais a temática do programa, que passou a tratar também de questões sociais brasileiras, como boias-frias, mortalidade infantil e outras. E, para surpresa de todos, a audiência começou a diminuir, cair abaixo de 50 pontos de Ibope, enquanto subia a de seu concorrente principal no horário, o programa do Chacrinha. Solicitou-se uma pesquisa específica ao Homero. E ele foi claro: o público das classes A e B, de maior renda e instrução, considerava “impróprio” ou “desagradável” que a TV lhe levasse temas tão incômodos “na hora do jantar”. Já o público das classes D e E, de menor renda e instrução, dizia que, se o programa era apenas para mostrar a realidade da pobreza e da vida dura das pessoas, não precisava vê-lo: sentia na carne todos os dias; se o programa não trouxesse propostas de mudanças, alternativas úteis, preferia ver o Chacrinha.
Algum tempo depois, nova consulta ao Homero: o Globo Repórter havia sido procurado por uma delegação de cegos; eles gostavam muito do programa, acompanhavam-no pela narrativa do locutor; mas sempre que o narrador cedia a palavra a algum entrevistado, eles, cegos, não sabiam de quem se tratava, porque a identificação do entrevistado aparecia apenas escrita na tela; e eles pediam que houvesse identificação especificada pela voz do narrador – o que foi atendido, mas suscitava uma questão mais ampla: como atender a todos os públicos, principalmente o dos surdos-mudos, que, juntamente com os cegos, formavam mais de 10% da audiência e também reclamavam? Homero chegou a sugerir que um oitavo da tela fosse ocupado por um intérprete na Língua Brasileira de Sinais (libras). Mas a proposta enfrentou resistências em outras áreas.
Em muitas ocasiões se discutiam a temática do programa, sua linguagem, acertos e desacertos. Em certos momentos, muito complicados. Como no dia em que uma professora universitária foi, na quarta-feira, queixar-se de que o filho de 8 anos, que era vegetariano e só comia saladas e legumes, desde a véspera se recusava a comer qualquer coisa, porque vira no programa a documentação do teor inaceitável de agrotóxicos perigosos nos produtos vendidos no maior mercado paulista. “Vocês é que criaram o problema, agora me deem a solução”, dizia ela. A única recomendação possível foi a de levá-lo a um psicólogo. Mas as pesquisas do Homero mostravam que o público desejava que lhe fossem feitas advertências sobre o teor dos programas e cuidados a tomar.
Faz falta
Nessa mesma ocasião veio à baila episódio semelhante, em que o diretor de Jornalismo, Armando Nogueira, ao voltar do almoço encontrou uma senhora que lhe contou haver o filho adolescente sofrido uma parada cardíaca ao ver na TV, poucas horas antes, cenas de uma pessoa que se atirara do terraço superior do Edifício Joelma, em São Paulo, que estava em chamas. O cinegrafista acompanhara toda a sequência, desde o momento em que a pessoa subira ao parapeito e se atirara até estatelar-se na rua, mais de 20 pavimentos abaixo. A espectadora dizia que, socorrido, o filho já estava bem; mas recomendava cuidado com as imagens. No Jornal Nacional, horas depois, a cena foi exibida apenas com “quadros parados”: o homem sobre o parapeito, depois já morto no chão. E o episódio criou regras.
Homero estava sempre atento. Não por acaso escreveu: “Ni esclavo del amor, ni desterrado,/ he de vivir, Amor, humanamente/ este morir al cual fuí condenado”.
Num momento como este, tão difícil para a comunicação brasileira, fazem muita falta discussões como as mencionadas. E faz falta o Homero.
***
[Washington Novaes é jornalista]