Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Veja

TELEVISÃO
Marcelo Marthe

A vida sexual das heroínas

‘Lara (Mariana Ximenes), a patricinha da novela A Favorita, já bancou uma noitada num motel para o ex-namorado, o operário Cassiano. Com sua paixão atual, o golpista Halley (Cauã Reymond), viveu cenas tórridas no chuveiro de um vestiário. Os pombinhos dormem juntos e, nos próximos capítulos, passarão uns dias aos amassos num sítio. Lara, seus dois homens e a prostituta Céu (Deborah Secco) formam um quadrilátero amoroso. Entre eles, a palavra ‘preservativo’ inexiste – o mesmo Halley que vai para a cama com Lara engravidou Céu. A personagem diz muito sobre a evolução sexual das mocinhas das novelas. Lara teve mais de um parceiro. Suas aventuras de alcova são mostradas sem rodeios. Tudo o que faz é normal para os familiares. ‘Para uma paulistana de sua geração, ela é até casta’, diz o noveleiro João Emanuel Carneiro. Mas uma heroína tão soltinha seria impensável nas novelas de antigamente.

Nos anos 60, o sexo fora do casamento era pecado grave nos folhetins. Por engravidar solteira, a Maria Helena (Nathalia Timberg) de O Direito de Nascer (1964) sofreu um castigo: teve de virar freira. Até os anos 70, havia também os problemas com a censura. Em Selva de Pedra (1972), a vilã Fernanda (Dina Sfat) deitou-se com três homens – e terminou louca, pois os censores exigiram punição. Para as mocinhas, o sexo era ainda mais proibitivo. Só em 1979 a figura da donzela que fazia sexo apenas depois de casada (e de forma velada) foi questionada. Foi o ano do seriado Malu Mulher – em que Regina Duarte, ex-namoradinha do Brasil, causou escândalo como uma mulher separada e liberal. Foi também o ano de Pai Herói, folhetim de Janete Clair que trazia uma heroína com um quê feminista. A bailarina Carina (Elizabeth Savala) chocou o público quando revelou ao homem com o qual se casara que tinha uma filha de uma relação anterior. ‘Carina foi o ponto de mutação das heroínas’, diz o doutor em teledramaturgia Mauro Alencar. ‘Elas conquistaram definitivamente o direito de ter mais de um parceiro.’

Dos anos 80 para cá, as novelas ganharam em realismo. Em Vale Tudo (1988), a mocinha interpretada por Lídia Brondi não só se permitiu ter mais de um homem: ela também arranjou um filho em esquema de ‘produção independente’. Mesmo assim, a vida sexual das heroínas até aí era mais sugerida que explicitada. Isso mudou para valer só nos anos 90. A partir de então, tornou-se comum a coexistência de reprimidas e liberadas numa mesma novela. Em Laços de Família (2000), Vera Fischer envolvia-se com três parceiros, enquanto sua filha se mantinha fiel a um único amor.

Apesar das mudanças, as novelas atuais continuam a pagar pedágio aos velhos folhetins num aspecto: ainda é vedado às heroínas usar o sexo como arma. A manipulação do desejo é atributo negativo – e, como tal, terreno preferencial das vilãs. Tudo bem se uma maluca como a Nazaré (Renata Sorrah) de Senhora do Destino fosse sadomasoquista: era o que se esperava dela. A atual trama das 8 da Globo tem outro caso interessante: Dedina (Helena Ranaldi), a primeira-dama que trai o marido prefeito com um fortão. Embora ela não seja movida pela maldade, as espectadoras a vêem como megera. Para evitarem a repulsa, as heroínas têm de seguir regras. Só podem ir para a cama por amor. Trair, nem pensar. Lara se entregou a Halley apenas depois de ver o ex com outra. ‘Não fosse assim, ela seria vista como desleal’, diz Carneiro. Ou, como pondera o noveleiro Silvio de Abreu: ‘A Lara provou, comparou e escolheu entre dois namorados. Mas fez isso com dignidade’.’

 

 

ACORDO ORTOGRÁFICO
Diogo Mainardi

Uma reforma mais radical

‘u sou um ardoroso defensor da reforma ortográfica. A perspectiva de ser lido em Bafatá, no interior da Guiné-Bissau, da mesma maneira que sou lido em Carinhanha, no interior da Bahia, me enche de entusiasmo. Eu sempre soube que a maior barreira para o meu sucesso em Bafatá era o C mudo. Aguarde-me, Bafatá!

Nossa linguagem escrita está repleta de letras inúteis. A rigor, todas elas. Abolir o trema ou o acento agudo de alguns ditongos deveria ser apenas o primeiro passo para abolir o resto do alfabeto. Se os italianos decidissem abolir a linguagem escrita, perderiam Dante Alighieri. Se os brasileiros decidissem abolir a linguagem escrita, conseguiriam libertar-se de José Sarney.

José Sarney idealizou a reforma ortográfica em 1990. Ela foi escanteada por praticamente duas décadas, até a semana passada, quando Lula a sancionou. A posteridade se recordará da reforma ortográfica como a grande obra de José Sarney, ao lado da emenda parlamentar que permitiu ampliar o aeroporto internacional do Amapá para o atendimento de 700 000 passageiros.

Para os brasileiros, a reforma ortográfica tem um efeito nulo. Ninguém sabia escrever direito antes dela, ninguém saberá escrever direito depois. O caso dos portugueses é mais complicado. Eles concordaram em abrasileirar sua ortografia. Isso acarretou a necessidade de abdicar de um monte de consoantes duplas herdadas do latim. Alguém ainda se lembra de José de Anchieta? Quando ele desembarcou no Brasil, abdicou do latim e passou a rezar em tupi, para poder se comunicar com os canibais. Foi o que os portugueses, mais uma vez, concordaram em fazer agora: para poder se comunicar com os canibais – Quem? Eu? –, adotaram sua língua.

Eu entendo perfeitamente o empenho dos brasileiros em deslatinizar a língua escrita. De certo modo, o latim representa tudo o que rejeitamos: os valores morais, o rigor poético, o conhecimento científico, o respeito às leis, a simetria das formas, o pensamento filosófico, a harmonia com o passado, o estudo religioso. Ele encarna todos os conceitos da cultura ocidental que conseguimos abandonar. Eliminando o C e o P de certas palavras, Portugal poderá se desgrudar da Europa e ancorar na terra dos tupinambás.

Eu já enfrentei outra reforma ortográfica. Em 1971, durante a ditadura militar, Jarbas Passarinho, por decreto, cancelou uma série de acentos. Além do Brasil, só a China de Mao Tsé-tung pensou em fazer duas reformas ortográficas em menos de quarenta anos. Quando a reforma ortográfica de Jarbas Passarinho foi implementada, eu acabara de me alfabetizar. O resultado desse abuso foi despertar em mim uma salutar ojeriza pela escola. Nos anos seguintes, a única tarefa didática que desempenhei com interesse foi me lambuzar com cola Tenaz e, depois de seca, despelá-la aos pedacinhos. Meus amigos fizeram o mesmo. O analfabetismo causado pela reforma ortográfica de 1971 – e pela cola Tenaz – impediu que muitos de nós nos transformássemos em algo parecido com José Sarney. Espero que a reforma ortográfica de 2008 tenha um resultado semelhante. Em Carinhanha e em Bafatá.’

 

 

 

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