TELEVISÃO
Marcelo Marthe
Discoteca caipira
‘Há três semanas, a novela Paraíso exibiu um beijaço de 45 segundos entre o peão Zeca Diabo (Eriberto Leão) e sua amada Santinha (Nathália Dill). Reivindicado pelas espectadoras desde o início desse remake de uma trama exibida originalmente em 1982, o primeiro amasso do casal rendeu um pico de ibope. Teve ainda outro efeito colateral: as rádios do país passaram a martelar a música-tema do casal, da até então desconhecida Paula Fernandes (a balada Jeito de Mato tem versos medonhos como ‘dorme serena no sereno e sonha’). As novelas de Benedito Ruy Barbosa, de temática rural, são sempre aguardadas com ansiedade pelo mercado sertanejo. Mas Paraíso está saindo melhor do que a encomenda para essa turma. Lançada em maio, a trilha sonora do folhetim está na marca das 106 000 cópias vendidas – o triplo do que os discos de novelas das 6 costumam atingir e mais do que qualquer dos cinco CDs atualmente à venda da novela das 8. Na esteira de seu sucesso, a Som Livre, braço fonográfico da Globo, lançou um segundo CD com faixas tocadas na rádio de mentirinha da novela. Até agora, contabiliza 35 000 unidades comercializadas.
Paraíso oferece a conjunção de elementos que normalmente impulsiona as vendas de trilhas. A audiência, na casa dos 30 pontos no ibope nacional, é a mais alta em sua faixa desde 2006. Há uma boa liga entre os personagens e seus temas. Em meio aos diálogos com sotaque de jeca-tatu (os personagens falam ‘marluco’ e ‘nóis faiz’), campeiam longas cenas embaladas só por cantoria. A tal rádio e um núcleo de violeiros capitaneado pelo personagem do cantor Daniel constituem vitrines perfeitas para o merchandising musical. Além do próprio Daniel, duplas como Chitãozinho e Xororó e Bruno & Marrone fizeram participações na história – assim como Victor & Leo, mauricinhos que fazem o chamado ‘sertanejo universitário’. O músico Marcelo Barbosa, um dos filhos de Benedito, produziu várias faixas e é o compositor de oito canções das trilhas (interpretadas por diferentes nomes). ‘A cada novela do papai, tenho de mudar meu celular. Uns 300 artistas me procuraram para oferecer músicas suas para Paraíso’, diz ele.’
DICIONÁRIO
Diogo Mainardi
O gosto azedo da mesmice
‘Ali Kamel é o Flaubert do lulismo. Flaubert? Gustave Flaubert? Ele mesmo. No Dicionário das Ideias Feitas, publicado postumamente como um adendo ao seu último romance, Bouvard e Pécuchet, Flaubert reuniu, em ordem alfabética, os lugares-comuns mais idiotas difundidos na Terceira República francesa. Ali Kamel, no Dicionário Lula, cumpriu uma tarefa semelhante. Com o rigor e com a imparcialidade de um dicionarista, ele sistematizou o pensamento de Lula, destrinchando os lugares-comuns por meio dos quais ele se comunica.
O bronco retratado e ridicularizado por Flaubert no Dicionário das Ideias Feitas orgulha-se de papagaiar platitudes sobre praticamente todos os assuntos, da pobreza à dor de dente, da imprensa à gramática. Lula é igual. Sobre a pobreza: ‘Somente quem passou fome sabe o que é a fome’. Sobre a dor de dente: ‘Somente quem já teve dor de dente sabe o que é uma dor de dente’. Sobre a imprensa: ‘Só tem notícia negativa’. Sobre a gramática: ‘Daqui a pouco vou falar en passant. Para quem tomou posse falando ‘menas laranja’, está chique demais’.
Na última semana, fazendo propaganda do ProUni, Lula repetiu a blague sobre o fato de falar ‘menas laranja’. A blague sobre o fato de falar en passant também já foi repetida outras vezes nestes sete anos. Quantas vezes? Uma? Duas? Nada disso. De acordo com Ali Kamel, em seu prefácio, foram catorze vezes no período pesquisado para compor o Dicionário Lula. O repertório presidencial é minguado. E Lula repisa enfadonhamente os mesmos episódios, os mesmos comentários, as mesmas tiradas, conferindo um gosto azedo a esse fim de mandato – o gosto azedo de um governo que já caducou.
Há um aspecto desolador na obra de Ali Kamel: em 669 páginas de discursos e pronunciamentos, Lula mostra-se incapaz de articular uma única ideia minimamente elaborada sobre o Brasil e os brasileiros. Ao analisar o país, ele sempre recorre às imagens mais ordinárias com as quais somos caracterizados. ‘Deus fez duas coisas com o Brasil: deu uma natureza de beleza incomparável e um povo maravilhoso, ordeiro e generoso.’ Ou: ‘A beleza do Brasil está na nossa mistura, que produziu este povo de múltipla cor, alegre’. As banalidades proferidas por Lula refletem os métodos primários e grosseiros empregados por ele para conduzir o governo. Pior ainda: elas refletem a mesquinhez de seu projeto político.
A asnice representada pelas ideias feitas é a ‘verdadeira imoralidade’, disse Flaubert. E acrescentou: ‘O diabo é só isso’. Se Flaubert está certo – e ele está –, o Brasil é o inferno. O verdadeiro inferno.’
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