Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Veja

RC vs. PLANETA
André Petry

A burrice do rei

‘A cena é repulsiva: o caminhão parou diante do depósito da editora e recolheu 670 caixas, cada uma delas com dezesseis exemplares do livro. Carregando 10.700 exemplares, dirigiu-se para um depósito em Santo André. Ali, os livros poderão ter dois destinos: ou serão reciclados, rendendo cerca de 2,5 toneladas de papel, ou queimados numa fogueira.

Eis, em resumo, o desfecho do caso envolvendo o livro Roberto Carlos em Detalhes, escrito pelo historiador Paulo Cesar Araújo, que foi censurado como resultado do acordo judicial mais escandaloso e esdrúxulo de que se tem notícia. É inacreditável que num país livre, em plena vigência do estado de direito democrático, com uma Constituição que assegura a liberdade de expressão, tenhamos uma fogueira queimando milhares de livros. É grotesco e vergonhoso.

A grande fogueira, no entanto, vai queimar mais do que livros. Vai queimar a biografia mesma de Roberto Carlos e, junto com ela, o respeito que alguns milhares de fãs têm pelo rei – e que se incinerou com sua iniciativa intolerante e burra. É intolerante porque não há nada, nas 504 páginas do livro, que possa ser considerado uma invasão de privacidade em se tratando de uma personalidade pública – cuja privacidade, obviamente, é mais restrita do que a de um cidadão comum. É intolerante porque o rei não se contentou em retirar do livro trechos supostamente ofensivos (veja reportagem na página 120). Não, ele quis censurar o livro todo, todas as 504 páginas, todos os quinze capítulos, tudo. E, por fim, é uma iniciativa burra porque alguém com uma carreira artística há quarenta anos, e um sucesso inigualável, deveria ter ao menos uma noção da relevância da liberdade de expressão – a sua, a dos outros, a de todos. E Roberto Carlos parece que não entendeu nada. Sua estupidez não lhe deixa ver que a violação à liberdade de expressão começa proibindo que se diga algo e, como ensina a história das tiranias, termina exigindo que se diga outro algo. Já pensou exigir que Roberto Carlos grave Se Eu Quiser Falar com Deus, a belíssima canção de Gilberto Gil da qual ele não gosta nem de chegar perto?

A fogueira vai queimar também os dedos da Justiça, na pessoa do juiz Tércio Pires, que, mesmo sem identificar calúnia, mentira ou difamação no livro, abençoou o acordo e assassinou a liberdade de expressão. O estarrecedor é que a censura não decorreu de um ato autoritário, costurado às escondidas da Justiça. Foi selado dentro de um tribunal! Na presença de um juiz! E promotor! Será que um juiz pode promover um acordo que fere um direito constitucional? Criamos a censura legal? A ditadura judiciária?

A burrice de Roberto Carlos e a indigência da Justiça, associadas à covardia da editora Planeta, que deveria ter insistido para fazer soar sua sílaba, são reflexos dos tempos ameaçadores que vivemos. Uma hora são os pequenos ditadores religiosos querendo, autoritariamente, impedir a realização de um debate sobre o aborto. Outra hora são os petistas, do fundo de sua alma totalitária, propondo formas de controlar o noticiário da imprensa em época de eleição.

E, agora, essa. O rei é intolerante e burro. A justiça é indigente. E a vítima somos todos nós.’

MAINARDI vs. MR8
Diogo Mainardi

A morte do garoto de programa

‘O jornal Hora do Povo recomendou minha morte. A fatwa foi publicada na semana passada, em artigo de primeira página:

Condenado com seus patrões da VEJA a pagar 30.000 reais ao ministro Franklin Martins, em processo por calúnia, o garoto de programa Diego Mainardi houve por bem se auto-intitular ‘o Bacuri do petismo’. Bacuri foi martirizado por 109 dias seguidos no Deops e perdeu a vida em 1970 por negar-se a revelar aos algozes informações que pudessem prejudicar o andamento da luta revolucionária contra a ditadura. Foi um herói na plena acepção da palavra. Já o pequeno canalha perdeu apenas algum dinheiro. Sabemos o que o vil metal significa para certo tipo de pessoa. Ainda assim, ao que tudo indica ele está pedindo para perder algo mais. Pode ficar tranqüilo. Não faltarão almas pias para fazer a sua vontade.

Eu engulo ser chamado de garoto de programa ou de pequeno canalha. Já recebi ofensas piores. Fazem parte do meu trabalho. Mas dizer que estou pedindo para morrer é ir longe demais. O lulismo está cheio de almas pias. Há almas pias dispostas a roubar. Há almas pias dispostas a chantagear. Há almas pias dispostas a comprar deputados. Há almas pias dispostas a matar prefeitos. O risco é aparecer uma alma pia disposta a dar um teco nesse tal de ‘Diego’.

A Hora do Povo é do MR-8. Durante o regime militar, o grupo se dedicou ao terrorismo. Especializou-se em assaltos a bancos e supermercados. Depois de sofrer uma série de derrotas para a ditadura, desistiu do terrorismo em 1972. A última ameaça de morte do MR-8 foi feita ao diplomata americano Charles Burke Elbrick, raptado por seus militantes em 1969. Só agora, 38 anos mais tarde, eles ganharam coragem para flertar novamente com o terrorismo, incitando algum desajustado a fazer comigo o que os assassinos do Deops fizeram com Bacuri.

Os combatentes da Hora do Povo dizem saber o que o ‘vil metal’ significa para mim. Eu sei o que o ‘vil metal’ significa para eles. O MR-8 pulou heroicamente do terrorismo para o colo de Orestes Quércia. Passou por Anthony Garotinho. Fez negócios com Saddam Hussein. Dois meses atrás, num editorial, o jornal mendigou uns trocados a Lula, reclamando da falta de publicidade federal desde 23 de agosto de 2006. Coincidentemente, como mostrou Reinaldo Azevedo em seu blog, os gastos em propaganda do governo na Hora do Povo foram retomados no número seguinte à ameaça de morte feita contra mim, com um anúncio de meia página da Receita Federal. O lulismo está financiando o MR-8 com o ‘vil metal’ dos meus impostos. É como se eu pagasse para alguém me matar.

Eu sempre zombei dos lulistas. Mas há um aspecto inquietante nisso tudo. Um aspecto que vai muito além da bufonaria e da chanchada. O MR-8 defende publicamente a morte de um cronista da mesma maneira que defende publicamente o terceiro mandato de Lula. O lulismo desembestou. Os garotos de programa que se cuidem.’

Veja

Um perigo chamado MR-8

‘No último dia 27 de abril, o jornal Hora do Povo, panfleto de propaganda de um grupelho intitulado Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), usou sua primeira página para incitar a morte de um jornalista. O alvo da ameaça foi Diogo Mainardi, colunista de VEJA. O pretexto para o ataque foi um artigo do colunista que fazia referência a Eduardo Leite, o Bacuri, militante da antiga Ação Libertadora Nacional (ALN), assassinado em 1970 quando era prisioneiro das forças de repressão da ditadura militar. O artigo de Mainardi contava que parte da imprensa, na ocasião com estreitas ligações com o regime, soube com antecedência que Bacuri seria assassinado. Mainardi comparava o caso a uma sentença que o punia antes mesmo de ser apresentada sua defesa em uma disputa judicial com Franklin Martins, ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo federal (Secom) e ex-militante da organização, da qual se desligou há 25 anos. O juiz Sergio Wajzenberg condenou-o, em primeira instância, a indenizar o ministro em 30.000 reais. A sentença, porém, havia sido antecipada por um jornalista da Folha Online.

O MR-8 e a ALN foram duas das organizações esquerdistas que, sob a bandeira da luta contra o regime militar, promoveram seqüestros, roubos a banco e atos de intimidação. Com a volta da democracia, o MR-8 abandonou as armas mas continuou um terror, desta feita no terreno da fisiologia. Seus integrantes passaram a vender seus serviços sujos de atemorização a quem pagasse mais.

O MR-8, cujo nome faz referência à data da morte de um dos mais frios assassinos da história, o argentino Ernesto ‘Che’ Guevara, está desde 1979 abrigado no PMDB. É uma ‘corrente’ do partido. Nessa condição, chegou a dar ao então presidente José Sarney o título de ‘comandante da nação’. Também já serviu de tropa de choque a políticos de biografia conturbada – para dizer o mínimo — como os ex-governadores Orestes Quércia e Anthony Garotinho. Sabe-se muito bem em troca de quê. O serviço dos garotos de programa do MR-8 inclui todo tipo de arruaça. Em 1998, na convenção nacional que discutia se o PMDB lançaria candidato próprio à Presidência, o grupelho, contrário à aliança com o tucano Fernando Henrique Cardoso, deu início a uma sessão de socos que resultou na destruição do plenário da Câmara. Hoje, até Quércia prefere, pelo menos em público, manter distância dessa gente: ‘Eles já me apoiaram, mas agora estão com o Lula. Não tenho nenhuma ligação com esse jornal e acho um absurdo a ameaça a Mainardi’, disse o ex-governador paulista.

Em São Paulo, estado em que é mais presente, o grupelho não chega a uma centena de foras-da-lei. Mesmo assim, seu panfleto conta com a generosidade do governo federal. Em março, o Hora do Povo reclamava que já fazia sete meses que o panfleto não recebia anúncio estatal. Não foi preciso chorar muito. Em 2 de maio, a Receita Federal deu-lhe de presente uma propaganda de meia página. A Secom, que cuida das verbas publicitárias, diz que a tiragem superior a 50 000 exemplares do Hora do Povo justifica o anúncio. Curioso critério. Uma publicação de igual circulação que pregasse a violência da mesma forma que o panfleto do MR-8 o faz mereceria um anúncio se fosse, digamos, propagandista do nazismo? Na sua última edição, o jornal publicou nota negando que tivesse a intenção de ameaçar Diogo Mainardi. Mas a tentativa de recuo não convence – a nota que incita a morte do jornalista é bem clara. O colunista de VEJA já entrou com uma representação criminal pedindo a apuração do episódio. Ameaças de morte não são brincadeira. Devem ser sempre levadas a sério.

REPÚDIO À AGRESSÃO

‘Ameaçar um jornalista por discordar de sua opinião é crime de lesa-democracia e um atentado à liberdade de expressão.’

Cezar Britto, presidente do Conselho Federal da OAB

‘Os jornalistas precisam exercer o seu ofício a salvo de quaisquer pressões ou coações. Isso é um pressuposto da liberdade de imprensa.’

Renan Calheiros, presidente do Senado

‘Causa estranheza o silêncio do governo, que até o momento não se manifestou. Parece achar natural que um jornalista receba ameaças públicas.’

Arthur Virgílio, senador (PSDB-AM)

‘É uma violência contra o estado de direito. Há meios legais para contestar opiniões contrárias sem recorrer às ameaças anunciadas pelo jornal Hora do Povo.’

Maurício Azêdo, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

‘Numa democracia, todos têm o direito de dar sua opinião e expressá-la, mas dentro da melhor convivência democrática, sem incitamento à violência.’

Nelson Sirotsky, presidente da Associação Nacional de Jornais

‘Loucura tem limite, até para um jornal que não é nada sério.’

José Serra, governador de São Paulo

‘É um fato de extrema gravidade, especialmente quando se sabe que esse jornal recebe publicidade do governo federal.’

Rodrigo Maia, deputado federal, presidente do Democratas’

MEMÓRIA / DAVID HALBERSTAM
Roberto Pompeu de Toledo

Dois americanos

‘Paul Wolfowitz vive sua agonia como presidente do Banco Mundial. Wolfowitz, para quem viu o documentário Fahrenheit 11 de Setembro, de Michael Moore, é aquele que aparece cuspindo no pente antes de aplicá-lo nos cabelos. Não estranha que Moore o tenha retratado num momento ridículo. O filme é um libelo contra a Guerra do Iraque, da qual Wolfowitz, como vice-secretário da Defesa dos EUA e um dos expoentes do grupo chamado ‘neoconservador’, foi um dos principais ideólogos. Em 2005, George W. Bush o indicou para presidente do Banco Mundial. Dedicado à assistência aos países pobres, o Banco Mundial é, como o nome diz, uma instituição internacional, não um órgão do governo americano. Mas um antigo acordo prevê que sua presidência será sempre ocupada por um americano, ficando a do Fundo Monetário Internacional com um europeu. Decorre daí que o presidente dos EUA tem o virtual direito de nomear-lhe o presidente.

Wolfowitz tinha um problema ao aportar no novo cargo. Sua namorada, Shaha Ali Riza, uma inglesa de origem libanesa, era funcionária do banco. Marido e mulher, ou namorado e namorada, não podem conviver na instituição, segundo seus regulamentos, se existe subordinação entre eles. Wolfowitz deu um jeito. Conseguiu a transferência de Shaha para o Departamento de Estado. E, para indenizá-la da ruptura na carreira, providenciou-lhe um aumento de salário. Ela passou a ganhar 193.000 dólares por ano, mais que a secretária de Estado, Condoleezza Rice. Por um tempo, o arranjo funcionou. Há poucas semanas, estourou na imprensa, e Wolfowitz não conseguiu mais exercer suas funções em paz. Onde quer que apareça, é cobrado a respeito. Na sede do banco, em Washington, já foi hostilizado por funcionários que gritavam ‘Fora’.

A namorada é o que flutua na superfície do caso. Equivale aos problemas com o Fisco que acabaram por levar Al Capone à desgraça. Numa camada mais profunda, o que se flagra é a sombra do governo Bush num lugar em que não devia estar. Já o fato de a namorada ser posta a escorregar do Banco Mundial ao Departamento de Estado indica uma suspeita promiscuidade entre os dois órgãos. Mas há mais, e pior. Uma recente reportagem da revista The New Yorker dá conta de suspeitas manobras de Wolfowitz. Seguindo uma política de cortar a ajuda a governos considerados corruptos, ele mandou rever acordos com o Camboja, o Chade, o Congo Brazzaville e até a Índia. O Iraque, no entanto, que em matéria de corrupção não se destaca menos, mereceu tratamento inverso: Wolfowitz iniciou negociações para abrir uma representação permanente do banco nesse país. Esse fato, segundo o autor da reportagem da New Yorker, John Cassidy, confirmava o que ele já ouvira de outras fontes: que Wolfowitz continuava ‘profundamente engajado com a Guerra no Iraque’. Lá ia o Banco Mundial sendo arrastado para o papel de braço auxiliar da intervenção americana.

Wolfowitz parecia, na semana passada, no fim da linha. Não se via como pudesse continuar no cargo. Ele ficará não só como um dos símbolos da mistura de miopia e onipotência que conduziu os EUA ao desastre do Iraque, mas também como o personagem que tentou embicar no mesmo rumo os recursos e o prestígio de uma instituição internacional.

David Halberstam morreu num acidente automobilístico no último dia 23, aos 73 anos. Jornalista e escritor, Halberstam mexeu com muitos assuntos, mas ficará associado principalmente à Guerra do Vietnã, o desastre anterior dos EUA, e num papel oposto ao de Wolfowitz no desastre atual. Jovem repórter do New York Times, ele foi, na primeira metade da década de 60, a principal voz a denunciar que o que se passava no Vietnã estava longe de corresponder às versões apresentadas pelo governo americano. Junto com um punhado reduzido de outros repórteres, Halberstam mudou o conceito de correspondente de guerra. De retransmissor de comunicados oficiais, de quem se esperava que mantivesse a chama do patriotismo e tranqüilizasse as famílias em casa, como fora na II Guerra Mundial e em tantas outras guerras, esse profissional virava um perseguidor da verdade que incomodava as autoridades e acendia o espírito crítico dos leitores.

Halberstam escreveu o livro mais fundamental sobre a aventura americana no Vietnã — The Best and the Brightest (Os Melhores e os Mais Brilhantes). Em 2004, entrevistado pelo então correspondente de O Estado de S. Paulo em Washington, Paulo Sotero, disse, sobre a intervenção no Iraque: ‘Demos um soco e ficamos com a mão presa no maior vespeiro do mundo’. Ele já tinha visto esse filme. Por falar em filme, acrescentou que os arquitetos da invasão do Iraque tinham provavelmente o filme errado na cabeça. Sonhavam com Patton. Deviam estar atentos a A Batalha de Argel. Seria primário dizer que Halberstam foi o americano bom e Wolfowitz é o mau. Mas é justo afirmar que Wolfowitz é o fanfarrão que acaba vítima das ilusões do poder, enquanto Halberstam devotou o melhor de si a denunciá-las e advertir que elas cobram um alto preço.’

RC vs. PLANETA
Jerônimo Teixeira

A fogueira de Roberto Carlos

‘Se um dia publicar sua biografia autorizada, Roberto Carlos provavelmente vai omitir a tarde que passou em um tribunal de São Paulo discutindo os meios de destruir mais de 10.000 livros. No entanto, esse é um momento definidor na trajetória do chamado rei da música brasileira: na sexta-feira 27 de abril, depois de cinco horas e meia de audiência conciliatória, Roberto Carlos conseguiu que a editora Planeta e o historiador Paulo Cesar de Araújo concordassem em tirar a biografia Roberto Carlos em Detalhes das livrarias. Os 10.700 livros que a editora mantinha em estoque foram levados na quinta-feira 3 para um depósito de propriedade do cantor. Nos próximos dois meses, a Planeta deverá recolher os exemplares que restam nas lojas. Depois, será o tempo de Roberto decidir como dispor deles. A intenção é que o papel seja reciclado. Se não for viável, os volumes serão queimados. Uma fogueira de mais de 10.000 livros seria uma visão para extasiar Goebbels. ‘Só uma pessoa que não gosta de ler queimaria 10.000 livros’, diz Araújo, que se sentiu coagido a aceitar o acordo depois que seus editores optaram pela saída fácil. Tamanha destruição cultural só se tornou possível por uma conjunção de fatores aberrantes: uma estrela melindrosa, uma editora que se acovardou e não levou até as últimas instâncias uma causa que envolve princípios fundamentais e um sistema judiciário em que a liberdade de expressão e o raramente mencionado ‘direito à história’ ainda não encontram a justa guarida.

Três pontos teriam incomodado Roberto na biografia proibida: a narrativa do acidente de infância em que perdeu parte de uma perna, as revelações sobre sua vida sexual e o relato da agonia de sua mulher Maria Rita, que morreu de câncer em 1999. São quase todos fatos conhecidos e previamente publicados pela imprensa, o que derruba a alegação de invasão da privacidade feita pelos advogados do cantor. Surpreende que a obra de um fã, eminentemente elogiosa, tenha causado tanta indignação. Mas mesmo antes de ler o livro, quando soube que ele estava para ser publicado, Roberto já consultava seus advogados sobre a jurisprudência brasileira a respeito de biografias não autorizadas. Não é a primeira vez, aliás, que o cantor barra um livro a seu respeito. Em 1979, ele conseguiu, por meio da Justiça, que fosse recolhido O Rei e Eu, de Nichollas Mariano, seu ex-mordomo. A obra fazia inconfidências sobre as aventuras amorosas do cantor. ‘O Roberto nunca foi muito exigente em termos de mulheres. Qualquer uma que aparecesse e ele tivesse afim (sic) no momento servia’, escreveu o mordomo.

Os processos contra o livro começaram a correr em janeiro, em duas comarcas. No Rio de Janeiro, instaurou-se um processo cível contra o livro, por danos morais e materiais. Roberto Carlos pedia uma indenização elevada – conhecedores do caso falam em 10 milhões de reais -, o que terá sido decisivo para que a editora e o autor (ainda que inconformado) aceitassem fechar um acordo. Também foi do Rio que partiu a primeira decisão liminar de retirar o livro do mercado, em fevereiro. Em São Paulo, os advogados do cantor entraram com uma queixa-crime, pelo suposto ataque à honra de Roberto. Em casos do gênero, uma audiência de conciliação se torna obrigatória. O acordo a que se chegou nessa instância prevê que Roberto desista também do processo cível – e, por conseqüência, de qualquer indenização financeira. ‘A princípio, os advogados da Planeta me informaram que não haveria conciliação. Mas em momento algum da audiência se falou em preservar meu livro’, reclama Araújo.

A Constituição brasileira garante tanto o direito à privacidade como a liberdade de expressão. Nas biografias não autorizadas, os dois princípios freqüentemente entram em choque. Juristas tendem a considerar que não existe supremacia de um sobre o outro. No entanto, a liminar do juiz Maurício Chaves de Souza Lima, do Rio, falava da prevalência dos ‘direitos de personalidade’ sobre a liberdade de expressão – e ainda declarava, com base no equívoco artigo 20 do novo Código Civil, que só podem ser publicadas biografias que tenham ‘a prévia autorização do biografado’. A se consagrar esse princípio, a pesquisa histórica estaria inviabilizada.

O entendimento que emergiu de décadas de jurisprudência em países com maior tradição democrática, como os Estados Unidos, é que a privacidade das pessoas públicas não tem a mesma extensão daquela do cidadão comum. Políticos, artistas, celebridades em geral têm todo interesse em ver consagrada – em alguns casos, imposta – uma certa versão de sua vida. Mas cabe aos estudiosos e historiadores, para não falar dos fãs, o direito de cotejar essa versão com outras, alternativas. A história de Roberto Carlos, um cantor confessional que sempre propalou suas tantas emoções pela música, não é propriedade exclusiva sua. O escritor Paulo Coelho, em artigo na Folha de S.Paulo, censurou a própria editora, a Planeta, pelo acordo para tirar de circulação Roberto Carlos em Detalhes – e se declarou chocado com a ‘atitude infantil’ de Roberto. Coelho aprendeu uma lição fundamental que falta a muitas celebridades: ‘Minha vida privada não mais me pertence’.

Com reportagem de Sérgio Martins e Marcelo Marthe’

Rogerio Lacanna

Essas recordações me matam

‘‘Zunga (Roberto Carlos) e Fifinha pararam numa beirada entre a rua e a linha férrea para ver o desfile. Atrás deles, uma velha locomotiva a vapor começou a fazer uma manobra para pegar o outro trilho e seguir a viagem. Uma das professoras temeu pela segurança das crianças próximas do trem e gritou para elas saírem dali. Mas, ao mesmo tempo, avançou e puxou a menina, que caiu sobre a calçada. Roberto Carlos se assustou com aquele gesto brusco, recuou, tropeçou e caiu na linha férrea segundo antes de a locomotiva passar. A locomotiva avançou por cima do garoto, que ficou preso embaixo do vagão, tendo sua perninha direita imprensada sob as pesadas rodas de metal.’

Trecho do livro

Roberto Carlos em Detalhes

BENDITAS INCONFIDÊNCIAS

O que as obras oficiais escondem e as biografias não autorizadas revelam sobre a época e a personalidade de figuras célebres

GANDHI

• O líder hindu tinha o hábito de beber a própria urina

• Costumava dividir a cama com uma sobrinha-neta de 19 anos

MAO TSÉ-TUNG

• O ditador chinês não escovava os dentes e negava-se a tratar uma doença venérea que transmitiu a dezenas de concubinas

• Na Grande Marcha de 1934 e 1935, obrigou suas colunas do Exército Vermelho a desvios e carnificinas desnecessários só para prejudicar seus rivais

MICK JAGGER

• O vocalista dos Rolling Stones teve aventuras homossexuais com gente como o cantor David Bowie e o bailarino Rudolf Nureyev

• É um sujeito ambicioso e pão-duro nos negócios

RAINHA VITÓRIA

• Embora fosse uma mulher de opiniões fortes, abominava a idéia de emancipação feminina

• Seu primeiro ato ao subir ao trono foi exigir que a mãe a deixasse sozinha por uma hora – até então, nunca tivera direito a privacidade.’

TELEVISÃO
Veja

Pornô com carteira assinada

‘O único momento em que a indústria de pornografia dos Estados Unidos costuma demonstrar algum recato é na hora de exibir seus números. Mas já faz tempo que o dinheiro movimentado pelo ‘entretenimento adulto’ – para utilizar o eufemismo consagrado no setor – está na casa dos bilhões. Estima-se que os americanos gastem de 7 bilhões a 14 bilhões de dólares por ano em material pornográfico. Peter Acworth encontrou seu lugar no meio desse mercado competitivo atendendo a uma demanda especializada. Ele tem um portal na internet dedicado ao sadomasoquismo e ao bondage – a prática do sexo com participantes atados ou acorrentados. Seu portal traz imagens cruas, chocantes até, mesmo pelos parâmetros da pornografia: mulheres amarradas, torturadas com choques elétricos e seviciadas por máquinas. Mas também tem uma seção, com o singelo título de ‘valores’, na qual estão listados os parâmetros éticos que supostamente regem a empresa. A relação inclui de vantagens trabalhistas a normas de segurança para a filmagem de cenas de sexo (veja exemplos no quadro abaixo). Os tais valores revelam o surgimento de uma nova ‘cultura corporativa’ no mundo pornô. Os ‘empresários’ de medalhão no peito e palito de dente na boca estão dando lugar a jovens com formação universitária, métodos de administração modernos e um discurso mais asséptico, que tenta enquadrar a pornografia como uma espécie de normalidade alternativa. Um dos mais populares sites eróticos dos Estados Unidos promete ‘entretenimento adulto saudável e americano’.

Nos Estados Unidos, a pornografia sempre deu ensejo a discussões jurídicas sobre a extensão da liberdade de expressão. O consenso que se tem firmado é que a pedofilia é inadmissível. De resto, virtualmente tudo o que for feito de livre e espontânea vontade por dois (ou três, quatro…) adultos está valendo. A aceitação social da pornografia foi crescendo à medida que a tecnologia permitiu que o seu consumo se tornasse cada vez mais privado. O videocassete, a partir dos anos 80, ampliou o público dos filmes pornô, ao poupar o espectador do constrangimento de ser visto na fila de um cinema-espelunca. A indústria de filmes continua forte em DVD: lançou 7.000 novos títulos no ano passado. O sistema pay-per-view, porém, está roubando parte desse público – afinal, ele dispensa a visita a uma locadora. No ano passado, estima-se que a pornografia tenha respondido por um terço do 1,6 bilhão de dólares que os americanos pagaram por filmes pay-per-view.

A internet também é um grande veículo para o pornô. Peter Acworth percebeu isso em 1998, quando abandonou um curso de pós-graduação em administração na Universidade Columbia para se dedicar ao seu novo negócio. Os assinantes de seu portal hoje somam 60.000, cada um deles pagando 30 dólares por mês para ter acesso a vídeos com as mais variadas esquisitices sexuais. Os propalados ‘valores’ do site querem dar um certo sentido educacional ao conteúdo vendido ali. O objetivo seria combater o preconceito que cerca o sadomasoquismo. Antigos heróis da pornografia, como Larry Flynt – criador da revista Hustler, que enfrentou vários processos nas cortes americanas -, apresentavam-se como transgressores, à margem da moral dominante. Um tanto edulcorado na versão cinematográfica de Milos Forman (O Povo contra Larry Flynt), Flynt é um tipinho desagradável, que sempre ganhou a vida com a sujeira e lutou pelo direito – garantido pela Constituição americana – de continuar sujo. Sintonizado no discurso da ‘tolerância’ propagado pela correção política, Acworth tem outras reivindicações: deseja ser aceito, abraçado como um membro produtivo da sociedade.

A sociedade nem sempre é tão compreensiva. A empresa de Acworth comprou, no início do ano, um prédio histórico de São Francisco, o antigo arsenal da Guarda Nacional, em um negócio de 14,5 milhões de dólares. É hoje a sede da empresa, incluindo os estúdios de filmagem. Moradores da vizinhança montaram protestos contra a presença da companhia. Acworth respondeu em um artigo no jornal San Francisco Chronicle. Argumentou que o prédio, reformado, estava recuperando sua ‘beleza histórica’ e ainda serviria de cenário para filmes que ele qualifica de ‘artísticos’ – ainda que a arte, é claro, não entre nessa história nem amarrada.

CRIMES ANÔNIMOS NO

Na semana passada, um caso de pedofilia aprofundou a controvérsia sobre o anonimato na popular comunidade de relacionamentos Orkut. Um usuário com o apelido de ‘Tenente C’ expôs em seu álbum pessoal doze fotos, a maioria de meninas nuas, algumas delas sendo abusadas. A ONG SaferNet Brasil, que coleta casos de crimes on-line e os encaminha ao Ministério Público, recebeu mais de 1 000 denúncias sobre o fato, o que levou o Orkut a retirar do ar a página criminosa. ‘O que temos visto nesses casos é que a página sai do ar, mas não há punição. Isso incentiva o criminoso a continuar’, diz Thiago Tavares Nunes de Oliveira, presidente da SaferNet. Foi o que aconteceu. O Tenente C criou mais três perfis (o nome que recebem as páginas pessoais no site), divulgando as mesmas fotos. O Orkut – site filiado ao Google – diz que está tomando providências para garantir o ‘conteúdo saudável’ do site, incluindo filtros tecnológicos, monitoramento de conteúdo e parcerias com autoridades brasileiras. No caso do Tenente C, essas medidas se mostraram insuficientes. Somente divulgando o IP (espécie de assinatura digital dos computadores na rede) do criminoso é que se poderia identificá-lo. O Orkut ainda não fez isso, alegando que os dados estão sob custódia da matriz americana do Google. Os anônimos aproveitam-se dessa morosidade para propagar o crime na internet.’

INTERNET
Veja

Era só o que faltava

‘Um computador, um arquivo sonoro, um par de fones de ouvido e disposição para ouvir durante meia hora sons desconexos em alto volume. Essa estranha combinação tem atraído milhares de internautas para o site I-Doser. O motivo é que tais ruídos são vendidos como drogas digitais, com poder de provocar sensações idênticas às de drogas reais, como cocaína, maconha e heroína. Os efeitos prometidos não têm respaldo científico algum. Mas despertam curiosidade. Na semana passada, o site lançou 25 novos produtos – entre eles LSD e orgasmo. Em 24 horas, foram feitos 150.000 downloads de seu novo aplicativo. O catálogo contém 75 produtos que chegam por e-mail, a preços entre 2,50 e 4,50 dólares a dose. Há ainda a opção de testar amostras grátis, direto da página do I-Doser.

A idéia de usar sons como droga surgiu em 2001 com John Ashton, um programador de áudio nova-iorquino de 31 anos. Sua primeira invenção foi a maconha, lançada em 2005. ‘Demorou muito para as pessoas acreditarem no potencial do I-Doser’, disse Ashton a VEJA. O princípio da droga digital é a técnica binaural beats, descrita pelo físico alemão Heinrich Dove em 1839. Segundo o cientista, se freqüências distintas são reproduzidas em cada ouvido, o cérebro produz um terceiro sinal, correspondente à diferença entre os sons originais. A nova freqüência teria o poder de alterar o estado de consciência do usuário.

Quase 170 anos depois, a eficácia da técnica não foi comprovada. Nos últimos anos, foram publicados sete estudos sobre a binaural beats em jornais científicos internacionais. Todos com resultados inconclusivos. ‘As promessas do I-Doser não são sustentadas por nenhuma evidência científica’, afirma Helané Wahbeh, pesquisadora americana que coordenou dois estudos sobre a técnica na Faculdade Nacional de Medicina Natural, em Portland. Para Helané, o mais provável é que os arquivos sejam placebos, ou seja, drogas de mentira, com resultados provenientes de auto-indução. O I-Doser tem pelo menos uma vantagem real: não é ilegal. ‘São experiências sonoras. Não há incitação ao tráfico ou ao uso de drogas’, observa Antônio Cabral, do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ.

O site chamou a atenção da consultoria brasileira Box1824, que estuda tendências de comportamento, e motivou um projeto de pesquisa. Jackson Araújo, de 42 anos, foi um dos que testaram o I-Doser a pedido da consultoria. Com as doses de ópio e maconha, ele teve apenas uma sensação de sossego, semelhante à provocada por outras músicas relaxantes. Já a dose de cocaína causou irritação, ansiedade e uma baita dor de cabeça. ‘Não agüentei nem dez minutos. Parecia uma turbina de avião’, diz.

A página da empresa na internet: 75 produtos’

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Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

Terra Magazine

Veja

Agência Carta Maior

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