TELEVISÃO
Perdidos na selva
‘Tempos atrás, um prédio em Chicago foi consumido por um incêndio. Uma mulher que trabalhava no local valeu-se das lições de um reality show para guiar os colegas em meio às chamas. ‘Ela salvou treze pessoas’, garante o apresentador Cade Courtley. A maioria dos espectadores, decerto, preferirá não testar na prática os procedimentos apresentados em Guia de Sobrevivência. O ex-oficial da Marinha americana ensina como se safar de sequestros de aviões e assaltos a banco. Em exibição no Discovery, a atração encaixa-se em um nicho televisivo forte: o manual de sobrevivência. No mesmo canal pago, outros dois machões exploram o extremo selvagem dessa linha. Em Survivorman, o canadense Les Stroud tem de se virar com quase nenhum recurso em lugares inóspitos. No mesmo espírito aventureiro, mas com mais produção, o ex-militar inglês Bear Grylls estrela À Prova de Tudo, hoje a maior audiência do Discovery. Há, ainda, uma variação da receita para quatro talheres. No reality show Pressure Cook (que aqui ganhou o título boboca de Tradições Culinárias), do National Geographic, o chef americano Ralph Pagano é despachado para locais exóticos e tem 72 horas para juntar o dinheiro da passagem de volta, dando duro em restaurantes nos quais se preparam iguarias como testículos de boi.
A TV já havia transformado agrura em diversão com reality shows como Survivor (matriz do brasileiro No Limite) e The Amazing Race. A nova safra de programas radicais pretende ser mais, digamos, educativa. No lugar de competidores neófitos nas artes de escalar rochedos ou cozinhar répteis, agora são especialistas que se lançam por desertos e geleiras para demonstrar suas técnicas de sobrevivência. Em um episódio no México, o saltitante Bear Grylls escala uma cordilheira sem equipamento de proteção. Mais tarde, fica com o rosto deformado ao levar uma picada de abelha. E, para fechar a excursão bizarra, mata uma cobra, devora sua carne e fabrica um recipiente com o couro do bicho – para guardar a própria urina, como recurso de emergência no caso de padecer de muita sede no deserto (e, adiante, ele aparece consumindo o grotesco conteúdo de seu cantil improvisado). Les Stroud – que viaja sozinho e grava o programa com sua própria câmera – não se mostra assim tão faceiro. Já chorou no meio da madrugada ao descobrir que o tronco em que se refugiara em uma floresta costa-riquenha abrigava formigas agressivas.
A última tendência na seara extrema é trocar os cenários ermos por situações urbanas. É o que faz Cade Courtley em Guia de Sobrevivência (e Bear Grylls em um novo programa, ainda inédito no Brasil). As lições de Courtley são um tanto temerárias. No episódio que trata do sequestro do avião, ele mostra como render terroristas e assumir o controle de uma aeronave – façanhas dignas do personagem de Bruce Willis na série Duro de Matar. O apresentador, porém, sustenta que o valor do que ensina é maior que os riscos do uso irresponsável de suas dicas. ‘Sem saírem de seus lares, as pessoas se reconfortam ao ver que qualquer um está apto a superar as condições mais adversas’, diz. É. Na poltrona, todo mundo está apto para tudo.
A dureza televisiva, na verdade, é meio de mentirinha. Os desastres mostrados por Courtley são simulações (mesmo que realistas: ele já quebrou uma mão e várias costelas). Apesar da mise-en-scène – Ralph Pagano chega aos locais vendado –, não se esconde que os desafios de Tradições Culinárias não são tão excruciantes. Pagano até chegou a ouvir negativas a seu pedido de emprego em restaurantes da China. Mas, no geral, as atuações do chef forasteiro são pré-combinadas. As aventuras radicais de Bear Grylls são radicalmente duvidosas. Em 2007, o jornal inglês The Times acusou-o de ser um farsante. Durante uma gravação em uma ilha ‘deserta’, ele teria se refestelado num motel em vez de dormir ao relento. Também já usou fumaça artificial para simular as emanações tóxicas de um vulcão ativo. Depois da denúncia, o reality show passou a informar que continha certas licenças ficcionais. Grylls, que já foi eleito um dos homens mais bonitos do mundo pela revista People, não se abalou. Permitiu-se até a autoironia. Em 2009, gravou um episódio em companhia do comediante Will Ferrell – que, claro, descambou para a franca palhaçada. Ferrell faz uma expressão impagável ao encarar uma cabeça de rena assada. A melhor receita para sobreviver às condições mais severas? Conte com uma boa equipe de produção.
GUIA DE SOBREVIVÊNCIA
Terças-feiras, às 21h, no Discovery
Com simulações muito realistas, o ex-militar americano Cade Courtley ensina como reagir a situações de perigo urbano, de incêndios em arranha-céus a assaltos a banco
TRADIÇÕES CULINÁRIAS
Sábados, às 18h, no National Geographic
Despachado com olhos vendados para lugares remotos, o chef de cozinha americano Ralph Pagano tem de fazer bicos (ordenhar vacas ou trabalhar em restaurantes) para pagar a viagem de volta
SURVIVORMAN
Reestreia em junho, no Discovery
O canadense Les Stroud apresenta-se como um novo Robinson Crusoé: a cada episódio, ele passa uma semana em isolamento, com recursos próximos de zero, em lugares como a tundra do Ártico ou selvas tropicais’
POLICIAL
Parece até ficção
‘Stieg Larsson não era sujeito de fazer nada pela metade. Quando o jornalista sueco decidiu virar romancista, primeiramen-te elaborou sinopses detalhadas para cada um dos dez livros de uma série policial – todos protagonizados pelo jornalista Mikael Blomkvist e pela investigadora particular Lisbeth Salander. Então escreveu até o fim os dois volumes iniciais. Só aí pensou em publicá-los: Larsson escrevia depois dos longos expedientes na redação da Expo, a revista que fundou e que mal conseguia sustentar, e de início não estava seguro de que a obra teria pernas para ir longe. Mas, à medida que a série foi tomando forma, constatou que ela poderia ser a porta para uma vida diferente. Estava certo. Assim que o primeiro livro, Os Homens que Não Amavam as Mulheres, foi lançado na Suécia, um pequeno culto começou a se formar em torno dele – e em particular em torno da antissocial, tatuada, lacônica, magérrima, perturbada e ocasionalmente violenta Lisbeth Salander, uma moça de 24 anos e inteligência brilhante, mas que a maioria das pessoas julga ser retardada, tal a carapaça com que ela se protege. Larsson, porém, não conheceu a popularidade de sua personagem. Em 9 de novembro de 2004, antes que o primeiro volume tivesse chegado às livrarias, o autor viu que o elevador do prédio de Estocolmo onde funcionava a Expo estava quebrado. Pegou as escadas – e, na subida, sofreu um infarto. Morreu aos 50 anos, morando de aluguel e quase sem dinheiro. Havia acabado de entregar as provas do terceiro volume à editora e ia pela metade do quarto episódio.
Conhecida como Millennium, em referência à revista da qual o personagem Mikael Blomkvist é editor, a decalogia que a morte prematura de Larsson reduziu a trilogia já vendeu cerca de 28 milhões de exemplares em mais de quarenta países – números que qualificam a série como um legítimo fenômeno editorial. (No Brasil, o trio completado por A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar e publicado pela Companhia das Letras soma até aqui 280 000 cópias vendidas, um colosso para o padrão nacional.) Os proventos desse êxito vêm se expandindo velozmente em outro território ainda: o do cinema. Nesta sexta-feira, estreia no Brasil o filme baseado no primeiro volume, Os Homens que Não Amavam as Mulheres (Män som Hatar Kvinorr, Suécia/Dinamarca/Noruega/Alemanha, 2009), com uma recomendação expressiva dos europeus: 90 milhões de dólares de bilheteria no continente. O suspense é uma reprodução fiel do enredo de Larsson. Fidelíssima, aliás. Muitos dos diálogos entre Blomkvist e Lisbeth (os suecos Michael Nyqvist e Noomi Rapace) são reproduzidos tal e qual aparecem na página. A excisão de pequenas passagens que não caberiam nas duas horas e meia de projeção foi feita com bisturi – é palpável o receio do diretor dinamarquês Niels Arden Oplev de desagradar aos fãs.
Nos três enredos deixados por Larsson, assim como na maioria dos romances policiais publicados hoje em dia – o gênero vem passando por uma forte revitalização criativa –, o ‘quem fez’ é quase um pretexto. As revelações de fato perturbadoras são de outra ordem: estão na venalidade, na brutalidade e na imoralidade que se encontram logo abaixo até das superfícies mais lustrosas. Revirar esses monturos que a maioria preferiria ignorar é o trabalho do jornalista, por dever e convicção (e Blomkvist é sem dúvida o alter ego de Larsson); e é a missão da investigadora, porque ela própria é uma vítima da indiferença do sistema. Declarada legalmente incompetente, em razão de sua presumida instabilidade psíquica, Lisbeth a certa altura é seviciada pelo tutor que deveria protegê-la. Como sua palavra não vale, resolve a questão por meios próprios, e chocantes. Larsson, assim, é um dos muitos autores contemporâneos que vêm levando o policial em uma volta completa até o seu ponto de partida, na era vitoriana, como uma expressão de mal-estar em face de um mundo que se transfigurava muito rapidamente, de perplexidade diante do mal que as pessoas ocultam e de fascínio com aqueles que têm a habilidade de ver o que os outros não enxergam – os detetives, como Blomkvist e Lisbeth.
A série Millennium desperta paixões. O crítico Mark Lawson, do jornal inglês The Guardian, observou que, na praia, no verão europeu, quase todos os turistas tinham um dos livros em mãos, tornando a leitura algo próximo de uma experiência coletiva. A trilogia tem ingredientes poderosos para atrair assim: não só a maneira como repercute com seu tempo e a figura tão solitária de Lisbeth, como a aura de um escritor quixotesco que foi vingado postumamente pelo sucesso – mais as teorias conspiratórias segundo as quais ele teria sido assassinado por uma das organizações neonazistas que patrulhava. Em uma coincidência infeliz, porém, também abaixo dessa superfície sedutora se desenrolam intrigas amargas. Comunista de terceira geração que nunca abandonou suas convicções e que, com a revista Expo, se dedicava a desmascarar as ações da ultradireita, Larsson tinha ganhos modestíssimos e jamais viu motivo para deixar um testamento. Na década de 70, fez um documento sem valor legal que parece ser fruto de um impulso simbólico, já que nele legava todas as suas posses a uma entidade de esquerda. Como essas posses eram então inexistentes, é compreensível que o documento não contemplasse Eva Gabrielsson, com quem Larsson morou durante mais de trinta anos, até sua morte.
Eva e o escritor não se casaram, por temor de que seu endereço viesse assim a constar de arquivos públicos e facilitar as ameaças de morte que sofriam por parte dos alvos de Larsson. Quando ele sucumbiu aos dois maços diários de cigarros, ao sedentarismo e ao stress crônico, deixou Eva a descoberto: a lei sueca não reconhece uniões informais. Sem testamento, seu espólio foi transmitido para seu pai e seu irmão. E, ao mesmo tempo em que o culto à série se iniciava, começou também uma batalha feia nos tribunais pelos direitos sobre as obras. Eva finca os calcanhares, com um argumento de força: um laptop com cerca de 200 páginas prontas do quarto livro, o que Larsson deixou inacabado, e que poderia vir a ser completado e publicado. Como Lisbeth Salander, a viúva do escritor foi trapaceada pelas regras – mas tenta se defender com os meios que tem à mão.’
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Folha de S. Paulo