Nestes tempos em que o debate se trava em torno de adjetivos – um dos estratagemas mais desonestos a que se referiu, com precisão cirúrgica, Schopenhauer –, em que se rechaçam proposições ao argumento de que ‘isto é estatismo’, ‘isto é socialismo’, ‘isto é totalitarismo’, ‘isto é neoliberalismo’, ‘isto é qualquer outro `ismo´ odiado’, em que se atacam as proposições porque foram, eventualmente, urdidas por alguém que militava numa causa adversa – ‘isto é coisa de Gramsci’, ‘isto é coisa de Hitler’, ‘isto é coisa de Hayek’ – ao invés de se verificar se o respectivo mérito corresponde à realidade, em caráter objetivo, olhos postos nos comentários dos leitores ao texto de Washington Araújo [‘Como demonizar populações vulneráveis‘], não posso deixar de convocar a quantos não queiram seguir o trilho de delegar a desconfortável tarefa de raciocinar e não ingressar nas fileiras de qualquer torcida organizada a refletir sobre a onda de irracionalidade dos tempos atuais [‘O constitucionalismo entre a racionalidade e a barbárie‘] a partir da leitura de um romance de 1902, muito mais citado do que lido e muito mais lembrado por ter fornecido a matéria-prima para o filme Apocalypse now, de Francis Ford Coppola (1979): o Coração das trevas, de Joseph Conrad (1857-1924).
Meu primeiro contacto com a obra de Joseph Conrad foi o Lord Jim, no qual uma das facetas mais interessantes é precisamente a fronteira entre a coragem e a cobardia. Jim vive à espera da oportunidade de praticar uma ação heróica. Como imediato de um navio que conduzia peregrinos a Meca, vê um sinal de que o navio iria afundar e, com isto, abandona a embarcação, com toda a tripulação. Algum tempo depois, o navio não só não afunda como vem a aportar, somente com os passageiros. Quando teve a oportunidade do ato heróico, portou-se como um poltrão. No momento de praticar o seu ato de bravura para ser reconhecido pelos pares, Jim, demasiado humano, abandona um navio cheio de muçulmanos em peregrinação a Meca, na certeza de que ele afundará, e, mais tarde, verifica que ele chegou a seu destino, tripulado apenas pelos passageiros, desmoralizando, inclusive, a autoridade britânica em face dos coloniais.
Uma obra atual e indispensável
No Coração das Trevas, a própria questão dos limites da sanidade e da insanidade, da lealdade e da rebeldia – Kurtz era o mais dedicado dos empregados da Companhia até o momento em que decidiu, cansado do abandono, constituir o seu próprio reino, em meio à selva [CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Trad. Albino Poli Jr. Porto Alegre: L & PM, 2007, p. 60: ‘`Como foi que esse marfim percorreu todo esse trajeto?´, perguntou o mais velho, que parecia bastante irritado. O outro explicou que viera com uma frota de canoas sob o comando de um mestiço inglês empregado de Kurtz; que Kurtz aparentemente pretendia ele próprio vir também, já que seu posto estava, naquele momento, sem mantimentos e provisões, mas, depois de navegar trezentas milhas, decidira de repente voltar atrás, o que fizera sozinho numa piroga com quatro remadores, deixando o mestiço continuar rio abaixo com o marfim. Os dois sujeitos estavam assombrados, pelo fato de alguém tentar aquela coisa. Quanto a mim, parecia estar vendo Kurtz pela primeira vez. Foi uma visão bem nítida: a piroga, quatro selvagens remando e o velho homem branco subitamente dando as costas para a sede da Companhia, para o conforto, para a pátria e a família – talvez; voltando o rosto para as profundezas da selva, para o seu posto vazio e desolado’] –, do homem da Renascença [Observação contida no ensaio de Armando Teixeira Júnior – O coração das trevas – Joseph Conrad] cansado de ser instrumentalizado pelo utilitarismo próprio da era da Revolução Industrial (tema que, por sinal, foi enfrentado por Max Weber em Economia e sociedade), do homem que detestava mentiras (Marlow [CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Trad. Albino Poli Jr. Porto Alegre: L & PM, 2007, p. 51. ‘Eu não iria tão longe a ponto de brigar por Kurtz, mas confesso que cheguei a mentir por ele. Os senhores sabem que odeio, detesto e não posso suportar uma mentira, não porque sou mais correto que o resto da humanidade, mas porque a idéia me horroriza. Há um laivo de morte, um gosto macabro em mentiras – e é exatamente isto que detesto no mundo –, o que procuro esquecer. Faz-me sentir péssimo, doente, como se mordesse uma coisa podre. Temperamento, suponho’]) tendo de mentir para poder perpetuar a melhor memória de Kurtz [Coração das trevas, de Joseph Conrad]. Por sinal, este quase nos recorda uma espécie de Lúcifer no ‘Paraíso perdido’, de Milton: um Anjo brilhante converte-se, de repente, no Opositor do Eterno [por sinal, nesta acepção é que com tal personagem vem o jornalista Cláudio Mafra a comparar Kim Jong-li, o chefe de Estado da Coréia do Norte (No coração das trevas – parte 1 – o primeiro contato].
Entretanto, o entusiasta do Ocidente, que, no início da sua carreira, desejava a ampliação das conquistas culturais da Europa, já via na destruição dos bárbaros a condição inafastável do progresso: até nisto, realmente, é um homem da Renascença, embora não deixe, modo certo, de evocar o Hegel da ‘Introdução à história da Filosofia’, quando este aponta para a superioridade do modo de ser e de pensar germânico sobre todos os outros, porque, afinal, ‘somente ali’ é que se sabe que ‘todos são livres’. Enquanto o desejo de destruição recai sobre os bárbaros, nada mais faz do que exprimir a idéia de que estes apenas estorvavam o avanço civilizatório e roubavam o espaço reservado por Deus aos europeus [‘O modo lumpen de estar no mundo‘; ‘O lugar das trevas: leituras e releituras de O coração das trevas em tempos de pós-modernismo‘; ‘As metáforas do vazio: Conrad e Coppola na crítica dos imperialismos’] – insetos daninhos, na expressão de Kafka [Carta ao pai. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L & PM, 2008, p. 30-1: ‘bastava que eu manifestasse um pouco de interesse por alguém – o que aliás não acontecia com freqüência, por causa do meu jeito de ser – para que tu, sem o menor respeito pelo meu sentimento e sem consideração pelo meu veredicto, interviesses logo com insulto, calúnia e humilhação. Pessoas inocentes e ingênuas, como, por exemplo, o ator judeu Löwi tinham de pagar por isso. Sem conhecê-lo, tu o comparaste, de um modo terrível, do qual já esqueci, com insetos daninhos e, como muitas vezes aconteceu em relação a pessoas que me eram caras, tu automaticamente tinhas à mão o provérbio sobre os cães e as pulgas’], cuja melhor sorte seria, mesmo, a destruição -. Conrad e Kafka, por sinal, foram contemporâneos (morreram, inclusive, no mesmo ano – 1924), e, cada qual ao seu modo, foram capazes de exprimir o mundo de pesadelo em que o ser humano se enleou, cada vez mais e mais, com a diferença de que o primeiro nos chama a atenção de um modo muito mais ‘leve’ que o segundo, talvez porque este último nos coloca com maior explicitude diante de um inferno interior [CAMPOS, Paulo Mendes. Artigo indefinido: crônicas. Rio de Janeiro: Record/Civilização Brasileira, 2005, p. 38-9: ‘todos os incidentes da viagem são superficiais, por mais que impressionem o leitor e o próprio Marlow: a verdadeira aventura da novela é a que o narrador e o leitor fazem ao coração da treva, à escuridão do inconsciente, ao negrume sinistro da existência humana. Como nos livros de Kafka, menos explicitamente porém todas as ações são desconexas, mesmo as mais triviais, ou vão perdendo o sentido’]. Kafka, a bem de ver, não inventa situações intoleráveis [‘Franz Kafka e sua obra‘]: ele, ao contrário, as registra, como se fosse um verdadeiro gravador, como a máquina que executava os condenados na colônia penal gravando sobre eles o texto dos dispositivos de lei infringidos [KAFKA, Franz. Um artista da fome, seguido de Na colônia penal e outras histórias. Trad. Guilherme da Silva Braga. Porto Alegre: L & PM, 2009, p. 86: ‘Então, deteve o olhar nas mãos; elas não lhe pareciam estar limpas o suficiente para poder tocar nos desenhos; o oficial dirigiu-se até o balde e lavou-as uma vez mais. Logo puxou um pequeno porta-fólio de couro e disse: ‘Nossa sentença não é severa. O comando que o condenado infringiu é escrito pelo rastelo em seu próprio corpo’’]. As preocupações éticas do teatro de Eurípides renascem em Kafka – o que não é de surpreender, porquanto, na condição de bacharel em direito, a preocupação com a ética em todas as suas manifestações (direito, costumes, religião, moral) viria para ele em primeiro lugar –, no sentido de que, não importa o que o Homem faça para agradar a um dos deuses, sempre haverá outro que se ofenda e, portanto, condenado, inexoravelmente à transgressão e, por isto mesmo, ao castigo. Mesmo sem o desejar, termina tendo de se converter em um rebelde, sabendo que será mais adiante esmagado, porque nem mesmo a sua rebeldia será tomada em consideração: será simplesmente pisado como se fosse um inseto daninho, que furta o ar a quem está investido no poder, e este lhe fará um grande favor se o pisar. Pouco lhe adiantará, outrossim, produzir qualquer defesa ou esclarecimento: estes serão tidos como um desacato à majestade de quem recebeu a investidura, cujo título tem um caráter sempiterno. O drama kafkaesco (presto, aqui, homenagem ao tradutor Marcelo Backes, da Carta ao pai) é sisífico, tal como Camus percebeu, porque não só Josef K. como também o agrimensor do Castelo, Gregor Samsa, o artista da fome, todos eles têm noção, embora contra ela lutem inutilmente, da própria impotência. Repete-se, aqui, a própria expressão de Hamlet, quando se vê na dúvida entre ser ou não ser, por não saber que sonhos o aguardam caso a ponta do punhal o leve para o sono profundo. A angústia da perda dos referenciais, típica do início do século XX, prolongando-se até este início de século 21, em que as certezas estão abaladas, em que não se sabe mais como dizer com clareza onde estão o Bem e o Mal, a despeito de tantos, como o velho Hermann Kafka, ainda se arrogarem o direito de ser a medida a ser observada [KAFKA, Franz. Carta ao pai. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L & PM, 2008, p. 28-9: ‘da tua poltrona, regias o mundo. Tua opinião era certa, qualquer outra era disparatada, extravagante, meschugge, anormal. E tua confiança era tão grande que tu não precisavas de maneira alguma ser conseqüente e mesmo assim não deixavas de ter razão. Também poderia acontecer de em um assunto nem sequer teres opinião e, conseqüentemente, todas as possíveis opiniões relativas ao assunto eram, necessariamente e sem exceção, erradas’], é o que torna a obra do franzino, doentio, arguto Franz mais atual e, portanto, necessária, indispensável. E o mesmo juízo cabe em relação a Conrad.
Inteligência inútil
Tem-se bem presente, pois, que o Coração das trevas é muito mais rico do que a excitante história de aventura que é narrada: há nele um componente de descrição da administração colonial, em que os nativos da colônia são tratados como simples objetos semoventes até a respectiva exaustão – a passagem em que Marlow se depara com os esqueletos humanos enquanto se prepara para ingressar no rio é emblemática, neste sentido [CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Trad. Albino Poli Jr. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2007, p. 31: ‘estavam morrendo devagar: era evidente. Não eram inimigos, não eram criminosos, e agora era como se fossem seres do outro mundo – não passavam de escuras sombras, doentes e famintas, amontoadas confusamente na penumbra esverdeada. Trazidos de todos os recantos da costa, com a legalidade dos contratos temporários, perdidos num ambiente inóspito, alimentados com comida estranha, adoeciam, tornavam-se ineficientes, sendo-lhes então permitido rastejar para longe e descansar. Essas formas moribundas eram livres como o ar – e quase diáfanas de tão magras’] – e os enviados para tratar do interesse da metrópole ou das companhias que, a pretexto deste, buscavam lucro no território colonizado são postos como simples engrenagens destinadas a propiciarem o maior retorno independentemente de quais sejam as condições de trabalho [ O Coração das Trevas; O coração das trevas] – desde uma prosaica deficiência no abastecimento de rebites para consertar o casco da embarcação que conduzirá os peregrinos (a reclamação feita ao denominado ‘fabricante de tijolos’, em realidade, secretário do Posto, fora recebida como se não tivesse sido formulada [CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Trad. Albino Poli Jr. Porto Alegre: L & PM, 2007, p. 52-4: ‘não havia nada por trás de mim! Nada havia além dos destroços daquele velho e estropiado vapor contra o qual me recostava, enquanto ele falava copiosamente sobre ‘a necessidade que todo homem tem de progredir’. ‘E quando se vem para cá, o senhor compreende, não é para ficar olhando para a lua’. O sr. Kurtz era um ‘gênio universal’, mas mesmo um gênio acharia mais fácil trabalhar com ‘ferramentas adequadas…homens inteligentes’. Ele não fabricava tijolos – havia, de fato, uma impossibilidade material para que os fizesse –, como eu bem sabia. E, se ele fazia o trabalho de secretário para o gerente, era porque ‘nenhum homem sensível rejeita gratuitamente a confiança dos seus superiores’. Era capaz de entender isto? Era. Que mais eu queria? O que realmente queria eram rebites, ora bolas! Rebites. Para continuar o trabalho – para tapar o buraco. Rebites era o que eu queria. Havia caixas deles na costa…caixas…empilhadas…rebentadas…partidas! Você chutava um rebite ao acaso a cada dois passos naquele pátio do posto da encosta. Rolavam rebites para o bosque da morte. Você podia encher os bolsos com rebites caso se desse o trabalho de abaixar-se – e não se encontrava um rebite onde era preciso achá-los. Tínhamos placas de metal que serviriam, mas não tínhamos nada para pregá-las. E toda semana, um mensageiro, um negro solitário, sacola de cartas ao ombro e cajado na mão, deixava nosso posto em direção à costa. E, várias vezes por semana, uma caravana chegava do litoral com artigos de comércio – um horrendo morim lustroso que fazia você tremer só de olhar para ele, contas de vidro a um penny o quilo, execráveis lenços de algodão estampado. E nenhum rebite. Três carregadores bastariam para trazer tudo de que era preciso para manter aquele vapor flutuando. ‘Ele agora estava se tornando confidencial, mas imagino que minha atitude indiferente deve tê-lo afinal exasperado, pois fez questão de dizer que não temia nem a Deus nem ao diabo, muito menos a um simples mortal. Eu disse que percebia isso muito bem, mas o que eu precisava era de uma certa quantidade de rebites – e rebites eram o que o sr. Kurtz necessitaria, se alguma vez viesse a tomar conhecimento do assunto. Agora seguiam cartas para a costa toda semana…‘Meu caro senhor’, exclamou, ‘escrevo somente o que me é ditado’. Exigi os rebites. Havia um jeito de conseguir as coisas – para um homem inteligente. Mudou de comportamento; tornou-se muito frio, e subitamente começou a falar sobre um hipopótamo; perguntou-me se, dormindo a bordo do vapor (eu não desgrudava do salvado noite e dia), eu não era perturbado. Havia um velho hipopótamo que tinha o mau hábito de aparecer na margem do rio e perambular à noite pelos terrenos do posto’]) até mesmo a ausência de regular abastecimento de provisões -; há a própria quebra de uma precompreensão da vida por parte do personagem Marlow, que se sente muito mais identificado com os selvagens embarcados (nos quais reconhece, inclusive, uma certa força moral maior, pelo fato de pouparem a vida de um minúsculo número de brancos que os comanda [CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Trad. Albino Poli Jr. Porto Alegre: L & PM, 2007, p. 78-80: ‘por que, em nome de todos os torturantes demônios da fome, eles não vinham para cima de nós – eram trinta contra cinco – e faziam um bom repasto de uma vez é algo que ainda me surpreende quando penso nisto. Eram homens grandes e poderosos, com não muita capacidade de pesar as conseqüências, corajosos, fortes, embora suas peles não fossem mais lustrosas nem seus músculos rijos. E percebi que algum freio, um desses segredos humanos que desafiam a probabilidade, havia entrado em jogo ali. […] Sim, eu olhava para eles como vocês fariam com relação a qualquer ser humano, com curiosidade sobre seus impulsos, motivos, capacidades, fraquezas, postos à prova diante de uma necessidade física inexorável. Um freio! Que tipo de freio poderia ser esse? Superstição, repugnância, paciência, medo – ou alguma primitiva noção de honra? Nenhum medo pode esgotar a fome, nenhuma paciência pode esgotá-la, a repugnância simplesmente não existe onde há fome; e quanto a superstições, crenças e o que se poderia chamar de princípios são menos do que palha soprada pelo vento. Vocês têm uma idéia do que seja o suplício de uma fome prolongada, conhecem seu exasperante tormento, os negros pensamentos e a terrível ferocidade que ela inspira constantemente? Bem, eu conheço. Um homem necessita de toda sua força inata para combater a fome de maneira apropriada. É realmente mais fácil enfrentar a desgraça, a desonra e a perdição da própria alma – do que a fome permanente. Triste, mas verdadeiro. E aqueles sujeitos não tinham nenhuma razão no mundo para nenhum tipo de escrúpulo. Nem contenção! Eu poderia bem ter esperado contenção da parte de uma hiena rodeando os cadáveres em um campo de batalha. Mas o fato estava ali, diante de mim – deslumbrante para a visão como espuma sobre o mar profundo, uma ruga sobre a superfície do mar insondável -‘. É, certamente, a esta passagem que se refere Paulo Mendes Campos (Artigo indefinido: crônicas. Rio de Janeiro: Record/Civilização Brasileira, 2005, p. 39): ‘O absurdo dos indígenas, com sua humanidade primitiva, ganha aos poucos a consciência de Marlow, isto é, vai destruindo nele a confiança nos valores do homem civilizado’]) com ele do que com os peregrinos brancos que o acompanham, indivíduos mesquinhos, que odeiam em Kurtz principalmente o dado de que sua inteligência tenha deixado de ser instrumentalmente útil não só para a companhia como para os próprios interesses pessoais deles [CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Trad. Albino Poli Jr. Porto Alegre: L & PM, 2007, p. 60-1: ‘Seu nome, compreendem, não havia sido pronunciado uma única vez. Ele era `aquele homem´.’
Fragilidade física e desesperança
O mestiço que, tanto quanto pude perceber, fizera uma viagem difícil com grande perícia e coragem, era invariavelmente referido como ‘aquele patife’. O ‘patife’ relatara que ‘o homem’ havia estado muito doente – e não se restabelecera completamente…a seguir, os dois afastaram-se de mim alguns passos e passaram a caminhar de um lado para outro a uma pequena distância. Escutei: ‘Posto Militar…doutor…trezentos quilômetros…muito sozinho agora…atrasos inevitáveis…sem notícias…rumores estranhos’. Aproximaram-se novamente, bem quando o gerente estava dizendo: ‘Ninguém, tanto quanto eu saiba, a não ser uma espécie de mercador ambulante…um sujeito pestilento, tomando marfim dos nativos’. De quem estavam falando agora? Pelos fragmentos de conversa que eu havia ouvido, deduzi que falavam de um homem ligado a Kurtz, e que o gerente não aprovava. ‘Não estaremos livres da competição desleal até que um desses sujeitos seja enforcado como exemplo’. ‘Certamente’, grunhiu o outro. ‘Que seja enforcado! Por que não? Qualquer coisa – aqui nesta terra tudo pode ser feito. É o que digo; ninguém aqui, aqui, pode pôr em perigo a sua posição. E por quê? Você agüenta o clima – você vai sobreviver a todos eles. O perigo está na Europa; mas lá, antes de partir, tive o cuidado de…’ Eles se afastaram um pouco, cochichando, depois suas vozes aumentaram de novo’. Cf., ainda, Guimarães, J. C. O mundo de Joseph Conrad., acessado em 16 maio 2010] – um dado que, de plano, arreda uma tendência de converter o romance em um libelo racista [‘A África e os africanos em Heart of darkness (Coração das trevas)’] -; há no romance, também, a descrição de uma transição de uma lealdade ilimitada para uma hostilidade feroz, decorrente da desconsideração absoluta pelo esforço desenvolvido em prol dos interesses de seus superiores hierárquicos – a passagem em que Kurtz despacha o último carregamento de marfim é notável, neste sentido, não se enquadrando nos sistemas de simplificação binária tão explorados pela literatura barata, em que facilmente se vem a dizer ‘o Bem é o Bem e o Mal é o Mal’-; a própria reprodução de uma titanomaquia, dado que Kurtz, num certo sentido, é um homem que ‘assalta os céus’, assumindo uma condição de Deus, para, de repente, ver-se reduzido à fragilidade física e à desesperança de quem viu as dimensões que o ser humano faz questão de ocultar, a despeito de elas existirem e se manifestarem de quando em quando. Não deixa, num certo sentido, de evocar o Klingsor do Parsifal de Wagner, embora a Companhia esteja muito longe se de poder comparar à Santa Confraria de Monsalvat [‘Atualidade de Parsifal: a angústia, o hedonismo e o altruísmo‘].
Falta de condições de trabalho
Kurtz é um dos mais acabados exemplos do poder carismático, na acepção weberiana típica. Sem dúvida, esta forma de legitimação é a mais primitiva [‘O Coração das Trevas’, de Joseph Conrad], mas ainda hoje, no ‘mundo civilizado’, é a mais corriqueira. Mais de trinta anos depois da publicação deste livro, aparecem os famosos líderes carismáticos em Estados como Alemanha (Hitler), Itália (Mussolini) e, mesmo, Inglaterra (Churchill), independentemente, no caso, de simpatias ou antipatias políticas por cada um deles. Refiro, aqui, Estados cujo ‘desenvolvimento’, à época, não seria posto em dúvidas, cujos povos não eram compostos por uma massa iletrada, mas por pessoas esclarecidas, cultas, de um modo geral, justamente para se ver que um personagem como Kurtz não faria sucesso somente em um ambiente selvagem, similar ao que seria o início dos tempos [‘O coração das trevas, de Joseph Conrad: defesa de uma utopia colonialista ou crítica ao sistema imperial de seu tempo?’] – chega-se a dizer que ele poderia eleger-se tranqüilamente por qualquer partido extremista (pouco importando se ‘de direita’ ou ‘de esquerda’) [CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Trad. Albino Poli Jr. Porto Alegre: L & PM, 2007, p. 138: ‘por fim, apareceu um jornalista ansioso para saber alguma coisa sobre o destino de seu ‘querido colega’. Esse visitante informou-me que a esfera própria de Kurtz deveria ter sido a política ‘no lado popular’. Tinha sobrancelhas retas e peludas, cabelo curto eriçado, um monóculo amarrado num longo cordão; tornando-se expansivo, confessou-me que Kurtz realmente não podia escrever o mínimo que fosse… ‘Mas, por Deus! Como aquele homem falava. Eletrizava grandes platéias. Tinha fé…o senhor compreende…tinha fé no que dizia. Podia fazer você acreditar em qualquer coisa…absolutamente qualquer coisa. Teria sido um esplêndido líder de um partido radical’. ‘Que partido?’, perguntei. ‘Qualquer partido’, respondeu o outro. ‘Ele era um…extremista’. Eu também não pensava assim? Consenti’]. O conto ‘Entre os profetas’, de Thomas Mann, ao focar a lente sobre um personagem que oferece a seus discípulos a missão de conquistarem o mundo, não deixa de fazer referência a alguém como Kurtz (por sinal, Thomas Mann era um grande admirador da obra de Conrad [‘Joseph Conrad’s Cultural Reception in Germany).
Há no romance, também, uma das mais interessantes reflexões, no caso de Kurtz, sobre uma fidelidade extrema não correspondida que, de repente, chegada ao limite da resistência – a Companhia queria os resultados independentemente de os homens por ela enviados virem ou não a sucumbir pela absoluta falta de condições mínimas de trabalho (aliás, nem mesmo os rebites para unir as chapas da embarcação de Marlowe ela providenciara) –, vem a se converter no seu oposto, a hostilidade.
Procurando o Santo Graal
A passagem em que é descrita a meia volta depois do último carregamento de marfim é emblemática, consoante afirmado linhas atrás. De simples serviçal, vem a se converter numa espécie de Deus, para terminar seus dias melancolicamente, num sussurro, resumindo, entretanto, todo o irracional com que tivera de conviver, num primeiro momento, encoberto pelas sedas da civilização européia, com a besta latente, desejosa de explodir, e num subsequente, com a besta já desnudada, com as sedas rasgadas [CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Trad. Albino Poli Jr. Porto Alegre: L & PM, 2007, p. 126: ‘Tentei quebrar o encanto – a pesada e muda maldição da selva – que parecia arrastá-lo para o seu impiedoso seio, ao despertar esquecidos e brutais instintos, pela lembrança de gratificantes e monstruosas paixões. Eu estava certo de que unicamente isso o havia arrastado para a borda da floresta, através da mata, em direção ao brilho das fogueiras, ao bater dos tambores, rumor de estranhos encantamentos; unicamente isto havia atraído sua alma desregrada para além dos limites das aspirações permitidas. Vejam bem, o horror de minha situação não consistia no risco que corria de levar uma cacetada na cabeça – embora eu tivesse plena consciência desse perigo, também –, mas no fato de que eu tinha de lidar com um ser para quem era inútil invocar o nome do que quer que fosse, nem do que era elevado, nem do que era baixo. Seria preciso invocar, como faziam os negros, invocar – a ele próprio – sua própria exaltada e incrível degradação. Não havia nada acima ou abaixo dele, e eu sabia disso. Desprendera-se da Terra a pontapés. Diabo de homem! Chutara a própria Terra, fazendo-a em pedaços. Agora ele estava só, e, diante dele, eu não sabia se permanecia no chão ou flutuava no ar’]. Kurtz, num certo sentido, lembra um pouco o Übermensch do Zaratustra de Nietzsche, que se coloca acima do rebanho e está além do Bem e do Mal, tendo como única divisa a sinceridade consigo próprio. Antes, empregado dedicado, voltado sinceramente à causa da Companhia, convencido da missão civilizatória dos europeus e da necessidade de extirpar da face da terra todos os que denominava ‘bárbaros’, não era considerado insano [É de se notar que existe, dentre os comentários a esta obra, manifestação no seguinte sentido: ‘Kurtz, cujos escritos denunciavam um homem notável a princípio, preocupado com práticas idealistas do Bem, acaba, no final, por se colocar nos antípodas daqueles mesmos ideais. Aquele que Marlowe vai encontrar, já não é o Kurtz celebrado por todos; Kurtz tornou-se a própria selva, a sombra, imenso na sua grandeza maligna’ (‘O coração das trevas de Joseph Conrad – memória do mundo‘)]. Exigido cada vez mais com cada vez menos auxílio da Companhia, cobrado da mesma forma que o próprio Continente explorado, resolveu abandonar a civilização, abandonar a Companhia, pôr a teste a tese de Aristóteles, a respeito do homem ‘só’ ser ou um bruto ou um deus. E, desde que pusera em prática a sua máxima de fazer com que os nativos acreditassem que os europeus eram deuses, algo superior a eles, convertera-se, ele mesmo, no deus branco que movia a guerra aos mercadores de marfim – o marfim convertido numa espécie de fim em si mesmo, de Santo Graal buscado pelos colonizadores, produto de luxo e estética por excelência [CAMPOS, Paulo Mendes. Artigo indefinido: crônicas. Rio de Janeiro: Record/Civilização Brasileira, 2005, p. 39-40: ‘Talvez a busca da verdade se identifique com a paixão da mentira. Para uns o marfim pode ser uma verdade enlouquecida; mas para Marlowe (ou para o leitor) o marfim pode representar a verdade final. O Santo Graal, uma resposta às ações desconexas, a beatitude ou a maldição. De qualquer forma, o marfim é o ídolo, o bezerro de ouro, o símbolo material de uma ilusão fantástica. A mentira vital é o marfim, assim como em Nostromo é a prata. Em torno desse fantasmagórico marfim movem-se os homens e, além destes, existe a floresta, imensa, inexplicável, invencível – o cosmo impossível’] -. Mesmo aí, Kurtz não vê os nativos como seres humanos, porque ele não está, na realidade, ‘só’: está em meio a seres humanos, de diferente cultura. Kurtz asselvaja-se, sem sombra de dúvida, e seu único elo com a civilização é a sua Prometida – a única pessoa para quem Marlowe, por compaixão, é obrigado a quebrar a sua regra de jamais mentir.
Há um ponto que gostaria de comentar, em relação, justamente, à última frase de Kurtz: não me parece que a referência ao ‘horror’ tenha que ver com um abalo decorrente das alterações que provocara naquele ambiente, mas principalmente o dado de que vivera, sempre, cercado pelo horror, e que os horrores por ele mesmo provocados nada mais eram que acréscimos e se mostravam, por isto mesmo, inexoráveis: sua visão de mundo chegara ao ponto de considerar a vida como puro sofrimento, e sofrimento sem sentido, o horror como inexorável, a beleza como simples utopia, igual à prometida, ainda resguardada em sua pureza, protegida pela única mentira que Marlow teve de pronunciar em sua vida. O abalo, então, não é uma crise de consciência que o provoca, mas sim uma crise de lucidez. Assim como na obra de Kafka, O castelo, cuja idéia principal é a impotência de K. para sair da cidadezinha a que chegou, por um equívoco burocrático. Ele não quer ir embora ou ele não pode sair? É uma idéia de um absurdo sem fim, dentro de uma teia que ele está para sempre: ele não pode sair de lá, a menos que o senhor se digne falar com ele, com o que, está condenado a permanecer, a não deixar aquele mundo no qual será sempre um ‘de fora’, exceto pela morte – e a morte se torna uma bênção para o pobre K, desejamos-lhe, para seu próprio bem, que morra – e ele não morre, a novela não tem fim [CAMPOS, Paulo Mendes. Artigo indefinido: crônicas. Rio de Janeiro: Record/Civilização Brasileira, 2005, p. 39: ‘A analogia da novela de Conrad com a experiência existencial narrada no Castelo de Kafka prende o leitor moderno’]…O horror não tem fim [‘A compreensão como categoria filosófica‘]… a não ser que, por compaixão, alguém nos distraia, criando a beleza, como Marlow ludibria a Prometida de Kurtz [CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Trad. Albino Poli Jr. Porto Alegre: L & PM, 2007, p. 22: ‘É estranho como as mulheres não têm contato com a verdade. Vivem num mundo próprio, que nunca existiu, nem nunca existirá. É, no todo, bonito demais, e, se elas fossem construí-lo, cairia em pedaços antes do primeiro por-do-sol’. Esta passagem, que daria muito a falar a muitas líderes feministas, prepara, entretanto, o terreno para se entender a seguinte: ‘Garota! O quê? Mencionei uma garota? Oh, ela está fora disso – completamente. Elas – refiro-me às mulheres – estão fora disso – deveriam estar fora disso. Devemos ajudá-las a ficar naquele belo mundo só delas para que o nosso não fique pior. Oh, ela tinha de ficar fora disso. Vocês deviam ter escutado o corpo desenterrado do sr. Kurtz dizendo: ‘Minha Prometida’. Compreenderiam, então, de imediato, como ela estava fora disso’ (p. 91-2)].
E agora retornando ao ponto de partida: o que tudo isto tem que ver com o texto de Washington Araújo? Tudo. Porque a concordância com a matéria da revista Veja por ele comentada implicaria, antes de mais nada, afirmar a sagrada missão civilizadora e o dever de exterminar os bárbaros – não era exatamente isto que Kurtz preconizava, antes de ser reconhecido como ‘louco’? –, considerar necessário apagar da memória nacional os nomes de Cândido Rondon, os Irmãos Villas Boas e Darcy Ribeiro, bem como realizar um auto de fé para a queima das obras de Claude Lévi-Strauss, Bartolomé de las Casas (que, no século 16, escreveu a Breve relacción de la destrucción de las Índias), Dee Brown, e proclamar que o conceito de humanidade se reduziria às categorias econômicas ‘empresário’, ‘empregado’ e ‘consumidor’ – e não é disto que se trata quando o marfim se torna o eixo de toda a narrativa de Conrad, o Santo Graal procurado tanto por Kurtz quanto pela Companhia, o símbolo do poder em torno do qual gravitam os interesses em conflito na narrativa? E o que dizer das exigências feitas pela Companhia, para além das possibilidades físicas daqueles que para ela trabalham?
Para evitar mal-entendidos: não ingresso no terreno de considerar o homem branco o vilão absoluto de toda história ou o ‘índio’ como vítima eterna e absoluta. Minha postura, antes, toma em consideração o dado singelo de que a condição humana, pelo menos, no momento presente, logra uma compreensão majoritária como suficiente para o fim de gerar o status de fim em si mesmo e, portanto, de sujeito dotado de dignidade.
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Advogado, Porto Alegre, RS