‘A primeira resposta aos críticos da criação dos conselhos federal (CFJ) e regionais de jornalismo (CRJ), constante de projeto encaminhado pelo governo federal ao Congresso, é a de que eles, além de terem apoio da Federação Nacional de Jornalistas, não trazem novidade alguma. Afinal, os advogados, os médicos e os engenheiros -para ficar em três profissões tradicionais-, afirmam os governistas, têm seus conselhos há muitos anos. São organismos operantes e úteis, como congregadores de seus inscritos, sem cuja inscrição prévia não podem exercer suas profissões. O Conselho da Ordem dos Advogados tem até especial distinção constitucional em vários dispositivos e a profissão deles é considerada essencial para a Justiça.
O argumento, sustentado com base no exemplo de outros conselhos, é defeituoso, ao menos por dois motivos. Os conselhos de jornalismo imaginados pelo governo federal serão, nos termos do artigo 1º do projeto ‘autarquias dotadas de personalidade jurídica de direito público com autonomia administrativa e financeira’. A comunicação social e o trabalho jornalístico têm dignidade constitucional específica, que impede até a ameaça de cerceamento de sua atividade (Constituição, artigos 5º, inciso IX, 220 e 221). Os conselhos da OAB não são autarquias, embora os de outras profissões o sejam. As autarquias são pessoas jurídicas de direito público interno fiscalizadas pelo Estado. São organismos vinculados à máquina estatal. A autonomia administrativa e financeira, prevista no projeto, é um jogo de palavras. Nem mesmo o Judiciário, que é Poder (com P maiúsculo) constitucional e tem autonomia administrativa e financeira, consegue exercê-la à plenitude. A autarquia é submetida aos preceitos da administração pública, previstos no artigo 37 da Constituição. Por isso o artigo 12 do projeto impõe aos presidentes do CFJ e dos CRJs a prestação de contas ao Tribunal de Contas da União, sendo os conselhos destinados a nascerem dependentes da administração, sem liberdade plena.
O projeto distingue 17 competências para o conselho federal, no artigo 2º, a serem limitadas pelo poder dominante, quando isso lhe convenha. Os dois primeiros incisos do artigo 2º merecem referência especial. Atribuem competência ao conselho federal para ‘zelar pela dignidade, independência, prerrogativas e valorização do jornalista’ (inciso I) e para ‘representar em juízo ou fora dele os interesses coletivos ou individuais relativos às prerrogativas da função dos jornalistas, ressalvadas as competências privativas dos sindicatos representativos da categoria’ (inciso II). Se o próprio conselho não terá independência plena, como poderá zelar pela independência do jornalista?
Apesar da ressalva constante do inciso II quanto aos sindicatos, é evidente que haverá conflito dos conselhos com o cumprimento da função sindical, o que é ruim do ponto de vista da operatividade. Três alterações essenciais, porém, tornariam os conselhos viáveis. A primeira consistiria em excluir sua vinculação autárquica à administração pública. A segunda seria estabeler normas estruturais e de funcionamento na própria lei votada pelo Congresso e não deixá-las, como está no projeto, para regulamentação posterior. A terceira poderia ser representada por normas de um conselho de ética apto a equilibrar a liberdade jornalística e os direitos individuais. Seria um primeiro avanço no rumo da aceitação.’
Flávio Aguiar
‘Os vestígios e as máscaras’, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 12/08/08
‘Há um objetivo estratégico na gritaria levantada com a apresentação do projeto de criação de um Conselho Federal de Jornalismo: impedir que a opinião pública tenha outra arena de julgamento sobre a mídia que não seja ela própria, a mídia.
A apresentação do projeto de criação de um Conselho Federal de Jornalismo levantou uma grita enorme na mídia, de palavras e ‘palavrões’ para serem atirados contra o governo: stalinismo, estatismo, controle, censura, coerção, chavismo, castrismo, autoritarismo, ditadura, entre outros. Até os já empoeirados DIP e varguismo foram tirados da gaveta. Nessa gritaria há objetivos imediatos: atacar o governo, impedir que a própria categoria dos jornalistas tenha poder maior no julgamento da própria mídia, já que o Conselho é reivindicação da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
Mas há um objetivo estratégico: impedir que a opinião pública tenha outra arena de julgamento sobre a mídia que não seja ela própria, e o controle que a mídia procura exercer sobre a própria opinião pública. Não, não estou falando de teorias conspiratórias da história, embora as conspirações existam, e vou prová-lo. Estou falando que nesta discussão está em jogo algo que é inerente à própria mídia contemporânea, à sua condição, à sua pompa e à sua circunstância.
Teóricos de inspiração marxista têm levantado a hipótese de que o fenômeno, que se percebe sob o nome vago de ‘pós-modernidade’, é algo inteiramente midiático, associado ao império dos mercados em escala global. Identifica-se como ‘fenômeno da pós-modernidade’ a sensação de fragmentação, de perda das referências tradicionais como Estado, nação, região, pertencimento, história; identifica-se nele o declínio das ‘grandes narrativas’ da modernidade, que passam a ser definidas como ‘ilusões’: progresso, política, transcendência, ruptura, salto de qualidade, tudo isso desaparece no frenesi do instante. Cultura e fast-food se aproximam.
Às vezes isso é vivido disforicamente, como uma perda e um declínio; às vezes euforicamente, como o desaparecimento de discursos ideológicos totalizantes ou totalitários, herdeiros do iluminismo, que embotariam a percepção das diferenças, da migração, do deslocamento, que seriam conceitos condutores da percepção de um real em contínuo movimento e em contínua mutação, num ‘universo sem fronteiras’. Em qualquer dos casos, a percepção desse momento é potenciada pela mídia, que hoje invade os espaços público e privado com toneladas de papéis publicitários, maçarocas de informação aglutinada, um contínuo despejar de imagens em lares e telões e um bombardeio alucinógeno de mensagens dirigidas ou extraviadas pela internet.
Mas quero provar que a mídia do capitalismo tardio não apenas potencia isso; em grande parte ela é a raiz disso, num universo em que luta para deter e quase detém a hegemonia da percepção do cotidiano. Essa hegemonia se afirma pelo menos em quantidade, mas quem já leu os antigos fundadores da inspiração marxista sabe que quantidade vira fator de qualidade. A mídia cresceu cercada por instituições legitimadoras do saber e do conhecimento: estado, educação, universidades, academias, institutos e outras mais, herdeiras da modernidade.
Cresceu tanto que se tornou, em suas variegadas manifestações, mais uma delas; mas com seu poder aí sim potenciado de se multiplicar, de se repetir e de multiplicar suas mensagens com rapidez não acompanhada pelas demais, entrou a disputar espaço com elas. A mídia criou um mundo algo real, algo imaginário, e tão real quanto a imaginação pode chegar a ser, de auto-legitimação e de legitimação das demais instâncias.
Isto não aconteceu sem abalos consideráveis no mundo da cultura. A mídia pulveriza o pensamento em informação, fragmenta a informação e a recompõe como mercadoria de valor agregado. Mas é um valor agregado peculiar, pois agrega, sobretudo, a capacidade de se reinventar a cada instante e desse modo recriar o seu valor de troca.
No mundo quase inteiramente mediado pela mídia não há passado; o passado só ‘vale’ enquanto reminiscência presente, uma reminiscência triturada e recomposta como mercadoria para ser de novo vendida hoje, agora, e pelo preço de capa. No mundo midiático não há escombros, muito menos ruínas: somente há vestígios presentes de um passado que pouco a pouco se torna uma ficção diante da obrigatoriedade do presente. A eventual ruína se torna informação no guia turístico do consumidor.
Como não há passado, não há espaço para o sonho, para a intimidade nem para a expansão das subjetividades. Portanto não há futuro; o futuro torna-se algo como um boletim meteorológico, e no mundo do império dos mercados, sobretudo o financeiro, esse boletim é recheado com índices de ascensão e queda nos investimentos.
É através portanto da criação e manutenção, em ritmo de marcha forçada, desse presente eterno, contínuo e imutável que a mídia se auto-legitima, e perde a referência com outras instituições, vendendo a idéia de que é ela, mídia, que pode legitima-las. Algo parecido ocorre com as bolsas de valores: no mundo da mercantilização global, as bolsas deixam de ser parte de uma cadeia produtiva, cujos objetivos legitimam as suas operações; essas operações passam a ser uma finalidade em si mesmas, passam a ser suas próprias causas materiais, formais, eficientes e finais.
E são elas próprias, bolsas de valores com seus índices em queda ou ascensão, que passam a legitimar, isto é, a abençoar ou a amaldiçoar as cadeias produtivas, que podem ser reduzidas a escombros e ruínas, mas que são lidas apenas como vestígios descartáveis, às vezes de sonhos transformados em pesadelos.
Nesse mundo da auto-legitimação não há outra ética possível, se é que se pode usar esta palavra, que a da sobrevivência, a da própria sobrevivência, no carro-chefe da produção de mercadorias informáticas (em todos os sentidos da palavra) que captem os símbolos de sucesso e os reciclem para o eterno presente, revendendo-os como ‘novidade contemporânea’. Na mídia do capitalismo tardio, assim como nas bolsas de valores do capitalismo tardio, o fetichismo da mercadoria atinge o seu grau máximo de pulsão, condenando ao ostracismo quem por ele não se deixa absorver, seja em que posição for.
Por isso se diz que nesse mundo pior do que ser explorado é não ser explorado, pois isso não significa a liberdade, mas sim a condenação ao silêncio, e não por que se perca a voz, mas porque os ouvidos estão tampados, atopetados pelas miçangas desse neo-colonialismo em escala planetária.
Existe, portanto, por trás desse frenesi dos campeões da nossa mídia privada, uma questão estrutural grave: esse universo não pode aceitar qualquer desvio, por menor que seja, do campo de sua auto-legitimação. A idéia de um Conselho, qualquer que seja, lhe é inerentemente insuportável, pois retira de suas entranhas a condição da perpétua auto-legitimação que ele é condenado a construir.
O que estamos vendo, portanto, na grita exasperada, para além de uma manifestação da racionalidade da mídia privada, é um brado de exasperados, de escravos atados às galés que ajudaram a construir e de onde não têm escapatória, pois se essa nau dos insensatos fizer água (não precisa nem afundar) eles fazem água também: no mundo da mídia midiatizada (que tautologia!) não há subjetividades, não há sonhos, não há intimidade; há fantasmagorias, máscaras que não têm rosto por detrás.
Tanto é assim que essas máscaras podem se inventar a cada instante. A máscara que ontem incensava o mercado como a panacéia universal pode muito bem hoje discursar sobre o social e os deserdados, uma vez que agora isso pega bem para atacar o governo presente, que repete a política econômica do governo anterior. A empresa televisiva ou de jornalismo impresso que anteontem apoiava a ditadura militar pode muito bem hoje se fazer passar por campeã da democracia: nesse mundo não há história, só há vestígios, e para que deles se esqueçam rapidamente.
É verdade que essa mídia paga um preço. Ela rompeu qualquer idéia de compromisso real com o leitor; não há elos duráveis possíveis entre subjetividades que são lidas como esvaziadas. Sou do tempo, na Porto Alegre antiga, em que as pessoas mais velhas diziam que para se ter certeza de que algo tinha de fato acontecido se devia esperar para vê-la no Correio do Povo. Hoje isto não existe mais, essa idéia de compromisso entre leitor e jornal ou veículo. Nossa mídia conseguiu convencer nosso universo de leitores que no mundo da informação mercantil não há pensamento, só há serviços. E o contrato de serviços ou é efêmero ou entra para rotina sob a forma de manutenção, como a mídia faz.
Não estranha, portanto, que a mídia brasileira toda esteja em crise; não é apenas uma crise financeira, ou uma crise devido às oscilações do poder aquisitivo do público ou dos patrocinadores: é uma crise de paradigma, que se reflete na própria condição patrimonial e econômica maior das empresas, a simbólica, pois elas ganharam em auto-legitimação o que perderam em credibilidade, inclusive em auto-credibilidade.
Grande parte da publicidade que se faz da mídia na própria mídia gira em torno da credibilidade, e isso vai do conteúdo político ou outro ao ‘anúncio que funciona’: é o sintoma do problema. As vendas oscilam, e quando caem são fatais: assinar um jornal, por exemplo, deixou de ser um compromisso com um pensamento. Ligar a televisão é mais uma forma de ‘sapear o tempo’, e com nulidades em geral, do que abrir uma janela para o mundo. A este panorama contemporâneo se soma a tradição oligárquica do liberalismo brasileiro, de que grande parte de nossa mídia é herdeira, é escombro, é ruína e é vestígio. O liberalismo brasileiro sempre teve, no campo político, um vezo patrício; como no tempo do Império: para ser admitido no clube tinha que se demonstrar uma certa quantidade de renda.
Imagine-se então nesse mundo um Conselho impulsionado pelos que trabalham nos jornais e outros veículos, e não por aqueles que pensam que neles mandam! É impossível! É petismo, e logo, dirão até alguns, no momento em que parte do petismo está aderindo a esse universo das máscaras felizes! É o petismo dinossáurico! São os burocratas stalinistas que querem reconverter o cristão-novo Lula! E por aí vai.
A favor de um Conselho que debata a fundo a condição ética na mídia pode-se levantar o argumento sólido de que não houve capítulo sujo de nossa história que não tenha contado com a leniência, ou o apoio, ou o estímulo, ou até a conspiração em nossa mídia. Assim foi na Guerra de Canudos, a primeira que foi ‘transmitida em tempo real’ (o da época). A imprensa em parte criou, difundiu e aumentou a figura do ‘jagunço fanático’ para justificar o massacre dos sertanejos miseráveis e altivos. Depois veio o mea culpa sobre os cadáveres, transformados em vestígios submersos.
Talvez o único episódio sombrio de nossa história que não teve o apoio de nossos barões da mídia foi o Estado Novo. Assim mesmo, olhando-se de hoje, parece que havia mais incompatibilidade dos baronatos midiáticos com o populismo do Estado Novo do que com seu autoritarismo, pois quando esses liberais fizeram e tiveram a sua ditadura, a de 64, o autoritarismo foi saudado como sendo a salvação nacional. Até editorial em favor da censura nas artes houve! Depois se arrependeram (alguns): a ditadura saiu-lhes do controle, animada pelo sectarismo prepotente de Costa e Silva e por um sistema administrativo que se transformou numa conferência de czares, reunidos para o ofício fúnebre de 13 de dezembro de 1968 e para outros.
Em 1954 quase toda a mídia brasileira apoiou e acobertou a operação golpista conhecida como ‘República do Galeão’ (descrita nessa página em magistral artigo de Mauro Santayana), enquanto malhava impiedosamente Vargas – menos pela lembrança dos desmandos ao tempo do Estado Novo e mais por causa da fundação da Petrobrás.
De 1964 já falei, ainda que de leve, perto do que aconteceu. Grande parte da mídia recalcitrou em cobrir devidamente as manifestações pelas eleições diretas em 1983 – 84 (o grupo Folha, registre-se, foi o primeiro a cobrir, destoando do coro silencioso).
A mídia ajudou a depor Collor? Sim! Mas lembremos, foi ela que o criou, na figura do ‘caçador de marajás’. E a mídia teve vergonhosa participação na pantomima montada para apresentar Collor como vencedor (do famoso debate em 89) antes mesmo dele ter vencido, e na farsa de se apontar o PT ou o petismo como responsável pelo seqüestro de Abílio Diniz. E ainda nem falei, e não vou falar por falta de espaço, das campanhas perenes contra as administrações populares nas cidades e estados do Brasil.
Tudo isso mostra a necessidade premente de um espaço, como um Conselho Nacional, em que se discutam e se debatam e se tracem diretrizes sobre o relacionamento entre mídia e ética. Isso será possível naquele mundo midiático que descrevi acima? Não sei. Mas vale a pena tentar. Isto posto, penso que é necessário apontar que o governo cometeu, para variar, erros primários de encaminhamento político. Uma parte do governo, e pertinente à área de comunicações, até desconhecia o teor do projeto. Isso parece remontar àquela prática comum em administrações petistas: o que a minha mão direita faz, ela não quer que a esquerda o saiba, e vice-versa. Por quê? Porque não é da minha facção, do meu grupo, ou do meu nicho, ou seja lá o que for.
Segundo, se a reivindicação veio da Fenaj, era de todo conveniente montar algo como uma cerimônia, no Planalto, ou em lugar semelhante, em todo caso em Brasília, ou até mesmo no Congresso, sob a forma de um seminário, onde a minuta do projeto fosse apresentada explicitamente para debate, e com a participação daquela entidade representativa na mesa. Como está, ficou parecendo que o projeto foi desengavetado pelo governo e apoiado pela Fenaj.
Em todo caso, o debate foi lançado, ainda que aos tropicões. Esse mérito é inegável.’
Roberto Romano
‘Covardias’, copyright Folha de S. Paulo, 20/08/08
‘‘Os franceses, por natureza, são mais arrogantes do que valentes; e no primeiro ímpeto de quem pode resistir à sua ferocidade, tornam-se humildes e perdem o ânimo’ (Maquiavel, ‘Ritracto di Cose di Francia’).
As palavras do florentino podem ser injustas em relação aos franceses, mas expressam a violência dos poderosos em geral, quando esses não encontram resistência às suas intimidações. Inspiradas em Homero, Erasmo de Roterdã e La Boétie, designam os tiranos, que se aproveitam das covardias espalhadas pela sociedade, como devoradores de povos. Quando muitas espinhas se curvam diante dos palácios, ‘chamaremos isso de covardia? Trataremos de covardes os que servem? Se dois, se três, se quatro não se defendem de um, isso é estranho, mas possível; poderíamos dizer que se trata de falta de ânimo. Mas quando (…) um milhão de homens, dos quais o mais bem tratado de todos recebe o título de servo ou de escravo, não assaltam um só, como poderíamos chamar esse comportamento? Covardia?’. Nomear a submissão ao déspota é tarefa impossível, pois ‘aquele vício monstruoso ainda não merece o nome de covardia, ele é tão vil que a língua se recusa a nomear e a natureza nega ser a sua artífice’.
Os pensadores resumem toda a questão ao seguinte: o tirano parece terrível e suas garras surgem, ameaçadoras, quando ele deseja impor um desejo ao coletivo.
Blaise Pascal mostra o quanto as máscaras dos poderosos servem para intimidar os cidadãos comuns. Trata-se de uma técnica política: o dono do poder desconhece limites quando se trata de envilecer os governados. Ele só interrompe sua escalada quando surge alguém mais poderoso do que ele, ou diante de um ‘basta’ dos que, na sociedade, ainda têm auto-respeito.
Luiz Inácio da Silva, presidente, exigiu para si o título de ‘pai dos brasileiros’. Com a façanha, feriu a República brasileira. Agora, quando os projetos de seu partido para dirigir, controlar e punir a imprensa livre são questionados, ele emprega o insulto. Os jornalistas que resistem ao conselho determinado por ele e pelos seus áulicos seriam ‘covardes’.
Tibieza, no entanto, é ameaçar os cidadãos com a pena de morte, como o fez o embaixador brasileiro em Cuba. Ignávia é jogar anciãos numa fila, para que eles provem a própria existência. Socórdia é arrancar direitos dos aposentados e dobrar-se diante do sistema financeiro. Desvalor é aceitar que um auxiliar direto, pego em clara tarefa de achaque, peça demissão e não seja demitido. Molúria é acocorar autoridades, concedendo-lhes foro privilegiado, um instituto que é ao mesmo tempo evidência de medo diante dos cidadãos escorchados por impostos e salvo-conduto para falhas éticas.
Numa República todos são iguais. Nem ao presidente nem ao lixeiro cabe o direito de insultar os semelhantes. Quando isso ocorre, é preciso responder à altura. Afinal, todos nós precisamos escapar do ridículo exposto no ‘Sobrinho de Rameau’. Ali, o escritor mostra que os humanos, poderosos ou pessoas comuns, podem ser meras cópias do Cavaleiro de la Morlière.
A covardia própria é inconsciente e apenas uma coragem fictícia impera nos que desrespeitam o próximo. Alguém se vangloria de ser corajoso e os demais covardes? Lembre-se do citado cavaleiro, ‘que levanta a aba do chapéu sobre a orelha, anda de cabeça erguida, que nos olha, quando passa, por cima do ombro, que traz uma grande espada batendo contra a coxa e tem um insulto pronto para quem não a traz e que parece desafiar todo mundo, que faz ele? Tudo o que pode a fim de se convencer de que é corajoso; mas é covarde. Dê-lhe um piparote na ponta do nariz, aceitá-lo-á calmamente. Quer fazê-lo baixar a voz? Eleve a sua. Mostre-lhe a bengala ou meta-lhe o pé no meio das nádegas; muito surpreendido de se ver covarde, perguntará quem lhe contou, de onde o senhor o sabia. Ele próprio o ignorava, no instante precedente; impusera-se um longo e habitual arremedo de bravura; fizera tantas caretas que acreditava na coisa’.
No Estado democrático de Direito, o nível do debate político, ideológico, institucional deve ser respeitoso. Com as diatribes do presidente, os jornalistas e intelectuais não têm saída: respondem à altura ou dão a si mesmos o atestado de covardia concedido pelo ocupante do Palácio do Planalto. Nas duas hipóteses, temos um lamentável testemunho de truculência institucional e uma confirmação insofismável da escalada autoritária que promete destruir as liberdades em nosso país.
Apelemos para o diálogo e a troca de idéias, pois apenas em semelhante clima podem conviver as diferenças, com dignidade de todos. Roberto Romano, 58, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, ‘Moral e Ciência – a Monstruosidade no Século XVIII’ (ed. Senac/São Paulo).’
Francisco Alves Filho / Muniz Sodré
‘‘Divergir é ajudar’’, copyright IstoÉ, 24/08/08
‘A sequência de denúncias publicadas pela imprensa tendo como alvo altos figurões da República causou revolta no presidente Lula e em vários ministros. No lugar dos personagens envolvidos nas irregularidades, a ira das autoridades federais se voltou contra os jornalistas que revelam essas histórias. Reportagens desse tipo ganharam dos integrantes do Executivo um apelido pejorativo: denuncismo. Doutor em comunicação social e professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o baiano Muniz Sodré, 62 anos, autor de 26 livros e conhecido como crítico rigoroso da mídia brasileira, discorda completamente. A começar pela denominação escolhida pelos governistas. ‘Se o regime de quem ocupa a Presidência é o presidencialismo, o conjunto de denúncias deveria ser chamado de denuncialismo, e não denuncismo’, corrige. O professor acredita que uma das mais importantes funções da imprensa é justamente denunciar e revelar os bastidores do poder. Se as acusações estão surgindo com maior frequência, Muniz Sodré tem para o fato uma razão quase aritmética. ‘Efetivamente, tem havido muitas denúncias. Mas isso acontece porque a corrupção se alastrou no espaço público, no serviço público’, avalia.
A opinião de Muniz Sodré tem importância reconhecida pelo governo. Ele integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – um grupo de 80 notáveis de várias áreas de atuação que discute os assuntos mais importantes do País e assessora o presidente da República. Na condição insuspeita de quem votou em Lula na última eleição, o mestre identifica na posição das autoridades federais um sinal de que o PT, ao chegar ao poder, tornou-se um partido de centro. ‘Falta saber se de centro-esquerda ou centro-direita’, ironiza. Nesta entrevista, o professor elogia ainda a reação do ex-deputado Ibsen Pinheiro, que, mesmo tendo sofrido bastante com um erro de imprensa, discorda de qualquer iniciativa de censura. ‘Eu o vejo como modelo de homem público, do ponto de vista ético.’
ISTOÉ – O sr. acha que o presidente Lula e alguns ministros têm razão
ao reclamar de uma onda de denuncismo na imprensa brasileira?
Muniz Sodré – Uma das funções da imprensa é denunciar, mesmo que a palavra pareça feia ou pesada. A imprensa surge expandindo o artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que trata da valorização dos direitos civis. Principalmente, direito de desocultação. Ou seja: direito de tornar visível aquilo que o poder, o império, pretendia manter invisível. A grande expansão do prestígio do jornalismo se deve a essa desocultação. Assim, é possível conhecer os mecanismos de decisão e não mais haverá o segredo da antecâmara do palácio do rei. É um direito público reivindicar que nada fique oculto, que tudo se torne transparente. Há uma acusação de certo conluio do jornalismo com o Ministério Público. Se existe esse conluio, é uma coisa espúria. Mas, a rigor, a imprensa tem funções que cabem ao MP. E a principal delas é a de denunciar.
ISTOÉ – O presidente diz que esse ‘denuncismo’ não dá ao Estado brasileiro sabedoria para tomar decisões. Reclama que são informações precipitadas, que achincalham as pessoas e depois não se prova nada e ninguém se desculpa por isso. A imprensa tem sido tão irresponsável?
Muniz Sodré – Efetivamente, tem havido muitas denúncias. Mas isso acontece porque a corrupção se alastrou no espaço público, no serviço público. Não é uma falha da imprensa. Cabe ao denunciado dizer se aquilo é ou não verdade. Por outro lado, não creio que seja função da imprensa, nem no passado nem hoje, dar sabedoria ao governo, como quer o presidente. Ao contrário. A imprensa está aí para avaliar a sabedoria do governo. Cabe ao governo agir sabiamente e cabe ao jornalismo e ao povo avaliar. Se a imprensa está fazendo isso bem ou mal, é um outro problema. Acho que deve haver uma crítica à imprensa.
ISTOÉ – Não é surpreendente que os petistas, que antes levantavam tantas denúncias, agora reclamem delas?
Muniz Sodré – É natural, agora o PT é o poder. Há dez anos esteve aqui no
Brasil o filósofo francês Alain Badiou. Participou de um debate no qual defendeu que, se algum dia o PT chegasse ao poder, não seria mais o PT. Queria dizer que um partido de esquerda que chega ao poder pelo voto vira centro. Na época, discordei. Dez anos depois, sou obrigado a bater na testa e reconhecer que Badiou tinha razão. Há uma antiga tese do alemão Carl Schmidt segundo a qual as democracias parlamentaristas do Ocidente e os parlamentos do Ocidente tendem à corrupção e ao centro. Ele não afirmou isso quanto a um país ou outro, e sim como lei geral da política. Eu acho que o PT não chegou ainda à corrupção, mas certamente chegou ao centro. O problema é saber se é centro-esquerda ou centro-direita.
ISTOÉ – E o argumento de que certas revelações quebram a privacidade do cidadão que ocupa o cargo público?
Muniz Sodré – Se um sigilo fiscal for violado e exposto de maneira que infrinja a Constituição, é só usar a lei. Com a legislação existente no Brasil isso se resolve. Mas se o jornalismo abrir mão de revelação dos segredos do mando, dos segredos do poder, estará fadado à morte. Sou contra a violação da Constituição, mas se há uma lei que impede os desvelamentos dos segredos do Estado, é um dispositivo antimoderno. O jornalismo tem autoridade para, pelo menos, bater de frente com certos dispositivos constitucionais? Essa autoridade advém de um nível de credibilidade e de consenso social. Se existir isso, aí sim, ele pode. É preciso haver um consenso ao mesmo tempo social e profissional quanto, digamos, à função elevada do jornalismo. Assim, pode-se avaliar se o sigilo está sendo quebrado em nome do bem público.
ISTOÉ – O que achou da reação de Ibsen Pinheiro, que mesmo sendo vítima da imprensa repudia a censura?
Muniz Sodré – Nunca tive maiores simpatias ou antipatias por esse senhor, sou meio neutro em relação a ele. Não gosto do seu partido, o PMDB. Mas esta reação de rejeitar a censura, mesmo tendo sofrido com um erro da imprensa, me leva a vê-lo como modelo de homem público, do ponto de vista ético. A moral é particular, algo de foro íntimo, e a ética tem a ver com a comunidade. O discurso de Ibsen se sobrepôs ao da moral e ele foi ético ao rechaçar qualquer possibilidade de censura. Ele foi homem, no sentido tradicional que a palavra tem na Bahia. Já o fato de o erro não ter sido reparado se deve à mesquinharia corporativista do jornalista, para quem é difícil consertar o erro. Ora, o erro é um momento necessário à verdade. A imprensa tem o direito de errar e o dever de se corrigir. Eu defendo a pressa da imprensa. Não se deve esperar, como quer o governo, que o jornalismo produza apenas notícias certinhas. A notícia não é o fato, mas apenas o indício do fato. Só a continuidade do noticiário vai mostrar o que é certo e o que é errado, e o que estiver errado tem que ser corrigido. Apenas a arrogância do jornalista impede que ele se desdiga. A consciência ética sugere que ele repare o erro.
ISTOÉ – Como avalia a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo?
Muniz Sodré – Mais perigosa que alguns artigos francamente autoritários é a intenção do projeto. Por que exatamente nesse momento criar um CFJ que é impeditivo, que é restritivo? O artigo que prevê a cassação do registro do jornalista é o pior de todos. No livro Democracia na América (Alexis de), Tocqueville diz que uma nova democracia pede uma forma nova de política. Eu me pergunto o seguinte: uma sociedade nova, com a mídia com a influência que tem, com o mercado, não pediria também um novo tipo de jornalismo? Esse jornalismo novo, para mim, pede mais liberdade. O prestígio do jornalismo no Ocidente foi conquistado graças à liberdade de expressão, liberdade de opinião. Certas questões poderiam ser resolvidas por uma espécie de British Council ou o Conselho alemão. Mas estes conselhos são dos jornalistas, não passam pelo Estado. Por que o projeto foi encaminhado ao governo? Acho que, em tempos de mais serenidade, um conselho no qual o jornalista pudesse discutir ética, relação com as empresas, relação da imprensa com o governo ou avaliar descaminhos éticos de cobertura é desejável. Mas uma proposta desse tipo não deveria nem de leve ser mostrada a ninguém de poder. Muito menos a Gabinete Civil.
ISTOÉ – Que tipo de conselho seria desejável?
Muniz Sodré – Acho que um conselho de jornalismo deveria nascer de um consenso não apenas entre profissionais e donos de imprensa, mas também de determinados grupos da sociedade civil, como OAB, ABI. Será que a ABI não poderia cumprir esse papel? É importante fortalecermos a sociedade civil. Houve um tempo em que a OAB e a ABI foram importantes para a sociedade brasileira. Se tiver a forma de um conselho, que conte com interlocutores de fora da classe jornalística, mas que não sejam do Estado. Esse é o defeito principal desse conselho: incluir o Estado nisso. Essa é uma questão de jornalistas e sociedade civil.
ISTOÉ – A reação dos jornalistas à criação do CFJ é motivada pelo corporativismo?
Muniz Sodré – A classe jornalística mostra forte corporativismo em determinados momentos. De maneira geral, o jornalista não aceita grandes análises nem grandes interferências no seu trabalho. No caso das objeções ao tal conselho de jornalismo, no entanto, avalio como uma defesa compreensível.
ISTOÉ – Não é curioso que uma reação desse tipo venha de um governo mais à esquerda que o governo Fernando Henrique, que nunca esboçou nenhum cerceamento às críticas da imprensa?
Muniz Sodré – Vem de muitos anos essa tradição da imprensa brasileira de derrubar autoridades. Um caso clássico é o editorial de inauguração do Correio da Manhã. Edmundo Bittencourt escreve: ‘Esse jornal nasceu não para fazer ministros, mas para derrubar ministros.’ Essa é uma tarefa perfeita para o jornalismo. No governo Fernando Henrique, as denúncias pareciam repercutir mais. Talvez haja um problema de compreensão do governo Lula sobre qual é o significado da mídia. Coloco em dúvida a compreensão histórica do PT com relação à mídia. Eles compreendem que esse termo representa assessoria de imprensa ou assessoria de marketing. A modernidade do PT está no marketing do Duda Mendonça ou do Nizan Guanaes. Com exceção da Marilena Chauí, que eu já vi escrever artigos interessantes sobre tevê e mídia, o assunto é inexistente em suas discussões. Só se pensa em economia e política. Me pergunto se o governo avalia corretamente a inserção e o lugar da mídia na sociedade brasileira hoje. Estar contra ou fazer crítica desencadeia da parte do PT uma fúria punitiva muito grande. A mesma fúria punitiva que se estendeu a políticos como Babá, Heloísa Helena. Uma raiva, um ódio como se não pudesse haver discordância. Isso é emoção partidária antiga, algo incompatível com democracia social que se busca hoje.
ISTOÉ – O sr. acredita que essas denúncias podem estar atrapalhando o governo?
Muniz Sodré – Eu avalio que divergir do governo é ajudá-lo nesse momento. E divergir duramente. Porque divergência para terminar com cerveja e pizza não é uma coisa real. É preciso um contraditório social e popular para esse governo, que não está havendo. Do ponto de vista da argumentação e da discussão, há um ambiente de deserto, no sentido que (Friedrich) Nietzche dá. É a desolação, há um deserto de idéias, de argumentação, de criatividade. Então, hoje a indignação é pelo fato de ter havido a denúncia, e não pelo fato denunciado. O Henrique Meirelles (presidente do Banco Central) é denunciado, vem o governo e diz que ele está mais forte que antes das denúncias. É como em Alice no País das Maravilhas, em que o personagem diz: isso aqui é água. A rainha vem e diz que isso aqui é pedra. E, se você discordar, corto-lhe a cabeça. A rainha se vale da força para legitimar conceitos sem sentido. A decisão de dar a Meirelles o status de ministro, para ganhar foro privilegiado, é outra consequência desse pensamento.
ISTOÉ – Qual a origem dessa reação?
Muniz Sodré – Existe uma cultura política bolchevique, no pior sentido do termo. Acho que é anacrônica. Não há mais lugar para isso na contemporaneidade. A mídia pode ter todos os defeitos, mas ainda tem o benefício de oferecer o controle do poder pela exposição. Isso é irrefreável. A sociedade vive da transparência, mesmo sem ideal ético. Meus dados estão na internet, o Imposto de Renda sabe tudo sobre você, tem os recursos digitais que revelam o perfil de qualquer internauta. Isso é a sociedade de transparência. O governo não pode se ocultar. Já no século XVIII existia o imperativo de tornar público os atos de governo, (Immanuel) Kant já falava disso. É nadar contra a história querer botar biombos na frente disso. Acho que as entidades, os governos podem ter surtos autoritários. Há pessoas que não enlouquecem, mas têm surtos. Acredito que esse seja o caso.
ISTOÉ – O projeto de criação da Ancinav pode ser creditado a esse surto autoritário?
Muniz Sodré – O Estado não tem o direito nem o dever de meter a colher em nenhum roteiro de cinema, em nenhum programa de tevê. A menos que ele queira fazer danos definitivos à cultura. A cultura só tem sentido no espaço de liberdade. O governo não pode legislar sobre conteúdo, isso é stalinismo, dirigismo insuportável e intolerável. Mesmo com as boas intenções de ‘defender a cultura brasileira’. Sou radicalmente contra. Acho que é nadar contra maré da história se o governo quiser intervir. Não que às vezes não dê vontade. Eu ligo a tevê e algumas vezes vejo a Luciana Gimenez, um programa que assisto com o mesmo fascínio com que vejo um acidente de trânsito. A diferença é que eu fixo o olhar. Outro dia vi ali uma moça vendendo a virgindade por R$ 100 mil. Ela fingia escândalo. Na semana passada vi uma professora de posições sexuais de São Paulo que demonstrava o Kama Sutra. Isso parece liberdade, mas é o lixo televisivo. Em outros canais a mesma coisa. Ainda assim, sou contra qualquer intervenção do governo. Em matéria de cultura e de informação, o governo tem que ser afirmativo. Deveria afirmar uma rede pública de televisão com programação séria, confrontar com qualidade. O Ministério da Cultura não é lugar para regulamentação do entretenimento.’
Contardo Calligaris
‘Proposta para a criação da Anlivimp’, copyright Folha de S. Paulo, 19/08/08
‘Li o projeto de lei que instituiria a Ancinav, Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual.
Fui conquistado pelos argumentos. Sugiro que o governo institua uma agência análoga para fiscalizar a produção e a difusão de ficção, ensaios e poesia: a Anlivimp, Agência Nacional do Livro e dos Impressos.
À diferença dos jornais e das revistas (que também é urgente monitorar), os livros atingem um número reduzido de cidadãos. Mesmo assim, eles influenciam, direta ou indiretamente, ‘os valores éticos, históricos, políticos e sociais cultivados pelo povo’.
Portanto não podemos deixar que sua produção e difusão fiquem nas mãos dos autores (que são pessoas suspeitas, freqüentemente vistas em botecos) e das editoras (que podem ser ligadas a capitais estrangeiros e que sempre preferem os livros que se vendem bem). Ainda menos podemos confiar no critério dos leitores, que são profundamente alienados, visto que compram livros diferentes dos que nós gostaríamos que eles lessem.
Agora, para o bem da nação, a produção e a distribuição serão fiscalizadas de maneira a oferecer, não obras que fazem sonhar e que divertem, mas obras que apresentem ‘finalidades educativas, artísticas e informativas’ e obras que protejam ‘os valores éticos e sociais da pessoa e da família’. Com isso, o setor editorial evoluirá de maneira ‘harmônica com as metas do desenvolvimento social do país’. É bom que essas indicações sejam vagas, de forma a justificar qualquer intervenção que a Anlivimp venha a julgar necessária.
Não se trata de instituir uma censura. Na regulação das atividades literárias e editoriais, ‘a liberdade será a regra, constituindo exceção as proibições, restrições e interferências do Poder Público’. Como as leis repressivas são sempre decretadas como ‘leis excepcionais’, seria melhor evitar o termo ‘exceção’, pois a imprensa é maldosa e se pega a esses detalhes.
A Anlivimp promoverá a ‘produção independente’ de obras ‘atentas à valorização da cultura brasileira e de suas peculiaridades regionais’, assegurando ‘o direito dos brasileiros de ver e produzir sua imagem’ nos textos escritos como no audiovisual. Graças aos fundos arrecadados com impostos e multas, a Anlivimp financiará obras recusadas pelas editoras dinheiristas e cosmopolitas. Um poema de 48 mil versos em rima, escrito por um conhecido meu e engavetado pela ganância das editoras, será enfim apreciado. O poema é como a gente gosta: regionalista e educativo, pois trata de uma épica luta sertaneja para parar de fumar. Seu título e primeiro verso (conhecido pelos sortudos que tiveram acesso à obra) é ‘O Cangaceiro de Aço Acabou Seu Maço’.
A Anlivimp aumentará ‘a competitividade da produção’ literária e editorial brasileira -tanto no país como no exterior.
No exterior, combinaremos nossas promoções editoriais com as promoções turísticas. Por exemplo, distribuiremos folders representando o Cangaceiro de Aço e uma sambista mulata, ambos sorrindo enquanto balançam a rede em que um turista estrangeiro toma uma caipirinha. Não é uma boa?
No país, a coisa vai ser fácil, pois, por sorte, o leitor brasileiro é pobre. Bastará aumentar o imposto sobre as obras estrangeiras para que ele escolha as nacionais. Ora, os livros e impressos de autores estrangeiros serão sujeitos ao Fome-Cultura (o imposto de Fomento Editorial), de 150%.
Serão fiscalizadas as vitrinas. As livrarias, sob pena de multa, reservarão 50% de seu espaço de exposição a autores nacionais, 30% a autores regionais locais, e só nos 20% restantes será permitido expor obras de autores estrangeiros.
A cada encomenda de livro de autor estrangeiro, as livrarias deverão comprar três exemplares de livros de autores nacionais. As pilhas acumuladas transmitirão ao público a impressão de um sucesso e o encorajarão a comprar.
Outro caso (que exigirá um Fome de 250%) é o dos impressos importados, particularmente perniciosos por ameaçarem a soberania da língua nacional. Sabemos de fonte autorizada que 30% dos impressos vendidos pela livraria Cultura são em língua estrangeira. No lançamento do último volume da série de Harry Potter, a livraria vendeu mais de mil exemplares da edição em inglês só em São Paulo. Para onde vai a nação, se os jovens, que mal aprenderam a língua portuguesa, já lêem numa outra língua? Isso sem considerar que as histórias de Harry Potter, como mostrou um francês (melhor não citá-lo no texto definitivo; afinal, é um estrangeiro), talvez não estejam em harmonia com nossas metas e não promovam os valores que nos importam.
O Ministério da Cultura poderia também instituir a Andim (Agência Nacional do Disco e das Músicas), para fiscalizar a produção e a difusão de gravações de músicas e intérpretes estrangeiros ou de intérpretes nacionais em língua estrangeira (caso mais grave ainda). Seria ingênuo subestimar a influência da música sobre os costumes etc.
1) Esta coluna é irônica. Voltarei ao assunto para tentar entender a paixão de fiscalizar que, às vezes, se apodera de quem governa.
2) As citações são extraídas do preâmbulo e dos artigos 1 a 8 do projeto de lei que instituiria a Ancinav.’