‘Sentindo-se vítima de denúncias contra os presidentes do Banco Central, Henrique Meirelles, e do Banco do Brasil, Cassio Casseb, além do tesoureiro do PT, Delúbio Soares, o governo resolveu atacar a liberdade de imprensa: propôs ao Congresso a criação de um Conselho Nacional de Jornalismo para fiscalizar e punir jornais e jornalistas. Mas uma revelação de um repórter em artigo enviado para o livro a ser lançado pelo ex-presidente da Câmara Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) mostra que a descoberta da verdade independe de mecanismos repressivos. Em 1992, Fernando Collor teve seu impeachment aprovado pelo Congresso. Um ano depois foram cassados parlamentares por corrupção na célebre CPI do Orçamento. No centro dos dois casos estava Ibsen. Político em franca ascensão, ele comandou a sessão que abriu o caminho para o impeachment. Um ano depois, enfrentou um calvário que culminaria em sua cassação, escudada em uma acusação de envolvimento com a Máfia do Orçamento.
Passada uma década surge uma revelação que obriga a revisão da história. O jornalista Luís Costa Pinto (Lula), à época editor da revista Veja em Brasília, decidiu contar os bastidores da reportagem de capa de sua autoria, em novembro de 1993, onde afirmava que a CPI descobrira que Ibsen movimentou US$ 1 milhão em suas contas. O relato acusa Waldomiro Diniz, então assessor do atual ministro José Dirceu (PT-SP), de ter vazado uma ‘falsa prova’. Além de confessar um erro, Costa Pinto revela detalhes da história que foi decisiva para incinerar Ibsen. Junto com o mandato, o ex-presidente da Câmara perdeu dez quilos e tempo indagando os motivos de sua ruína política. ISTOÉ o procurou para falar de seu livro e teve acesso ao artigo de Costa Pinto.
Em novembro de 2000, Ibsen almoçou com o jornalista na Churrascaria OK, em Curitiba, quando soube dos bastidores. ‘A CPI do Orçamento caminhava para um desfecho melancólico, pois só ia cassar deputados do chamado ‘baixo-clero’ (…). Foi nesse ambiente que se perpetrou um dos grandes erros jornalísticos contemporâneos’, contou Costa Pinto, no artigo que depois enviou a Ibsen. ‘Este depoimento é seu e pode ser usado da maneira que você quiser’, escreveu no e-mail. Trata-se de um raro mea-culpa em 2.804 palavras que dá pormenores e nomes. Costa Pinto conta que em novembro de 1993 foi procurado por uma figura que ficaria famosa dez anos depois: Waldomiro Diniz, assessor da CPI e já então braço direito dos parlamentares petistas José Dirceu e Aloizio Mercadante. ‘Pegamos o Ibsen’, disse Waldomiro. O depoimento de Costa Pinto, hoje consultor do presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), revela uma coragem incomum em desnudar um fato já sepultado na memória. Mostra também como Waldomiro vazava sigilos para incriminar investigados. A morte política de Ibsen tirou do caminho um forte candidato à Presidência. O PMDB se dividiu, mas na eleição de 1994 Lula acabou superado por Fernando Henrique Cardoso, após a edição do Plano Real.
Versão mantida – O jornalista conta que a revista identificou o erro nas contas de Waldomiro: não seria US$ 1 milhão, mas apenas US$ 1 mil. Como a edição estava praticamente fechada – relembra Costa Pinto -, o editor-executivo, Paulo Moreira Leite mandou encontrar alguém que sustentasse a versão de US$ 1 milhão. Acharam o deputado Benito Gama (PFL-BA), membro da CPI e ex-presidente da CPI/Collor. Costa Pinto diz que contou a Benito sobre o erro. A reportagem manteve o valor de US$ 1 milhão com a frase de Benito: ‘É fundamental não errarmos nas contas de Ibsen. E não erramos.’ Erraram sim, de propósito.
A seguir, o artigo escrito pelo jornalista Luís Costa Pinto, que foi editor e chefe da sucursal de Veja no Recife e em Brasília, repórter dos jornais O Globo e da Folha de S.Paulo, editor da revista Época e editor-executivo do Correio Braziliense. Hoje, é consultor de comunicação e de marketing político:
(…) Em 1992, quando o governo Collor perdeu as condições de sustentação política no Congresso e definhava à mercê da Comissão Parlamentar de Inquérito que lhe expunham as entranhas, o deputado Ibsen Pinheiro tornou-se um aliado seguro e secreto da corrente suprapartidária que pediria a cassação do presidente da República. ‘O que o povo quer, esta Casa termina querendo’, vaticinou o ex-presidente da Câmara dos Deputados ao receber, na primeira semana de setembro daquele ano, a formalização do pedido de impeachment presidencial no Salão Verde do Congresso.
A retórica começava a aprontar uma cilada para ele: o povo, representado em protestos nas ruas pela sociedade civil organizada, de fato queria o impeachment. O Parlamento, em sua maioria, ainda não. Existia certa margem de negociação capaz de evitar a perda de mandato de Collor, mas Ibsen foi peça-chave na articulação que estreitou o raio de ação dos estrategistas palacianos. Escreviam-se, naquela ação surda do presidente da Câmara, as primeiras linhas do epílogo de sua vida parlamentar em Brasília – a cassação, em 18 de maio de 1994, por alegada colaboração com a ‘Máfia dos Anões do Orçamento’.
Numa sexta-feira do mês de setembro de 1993, o repórter Policarpo Jr., meu colega na redação brasiliense de Veja, obteve o furo de reportagem que mais tarde deu origem à CPI do Orçamento. Depois de insistir por uma semana, ele conseguiu uma entrevista exclusiva com José Carlos Alves dos Santos, ex-assessor da Comissão Parlamentar Mista de Orçamento do Congresso Nacional. José Carlos estava preso em uma delegacia de Brasília por suspeita de assassinato de sua mulher, Maria Elizabeth Lofrano. Na entrevista original, José Carlos mencionou o envolvimento de sete deputados e de um senador em um esquema de fraudes ao Orçamento Geral da União. Não falou no nome de Ibsen Pinheiro, que acabara de deixar a presidência da Câmara e, semanas antes, fora lançado pré-candidato a presidente da República numa festa do PMDB no Recife. Àquela altura, mais de um ano antes do pleito, a candidatura presidencial de Ibsen era uma miragem no cenário político – mas do centro à direita do espectro partidário não havia nenhum nome viável para disputar o pleito presidencial de 1994 com Luiz Inácio Lula da Silva, o favoritíssimo pré-candidato do PT. ‘Tenho certeza que o calvário de Ibsen começou ali, no momento em que ele deixou de ser uma aventura para começar a aglutinar apoios em torno de si’, disse-me certa vez Nelson Jobim.
Cerca de dois meses depois de iniciadas as investigações parlamentares acerca dos desmandos e da cobrança de propinas na Comissão de Orçamento do Congresso Nacional, o nome de Ibsen Pinheiro emergiu associado à Máfia de Anões que corrompia o erário. O primeiro documento revelado para incriminá-lo era um cheque do ex-deputado Genebaldo Correia (que renunciou ao mandato na esteira das investigações) depositado em sua conta bancária. Horas depois de divulgada a informação dando conta da existência desse cheque, a assessoria de Ibsen Pinheiro passou a afirmar que o cheque era referente a uma transação financeira com uma camionete. O valor do documento bancário era compatível com essa transação e o carro, de fato, fora transferido de um para outro – mas a obviedade do álibi não aplacou a ânsia de apuração jornalística sobre o fato. O segundo documento divulgado para estabelecer um elo entre o ex-presidente da Câmara e a Máfia dos Anões do Orçamento era uma fotografia tirada durante um jantar em uma ilha grega – mostrava Ibsen cercado por cinco dos sete anões do Orçamento. (…)
O cheque de Genebaldo Correia e a foto da Grécia sustentaram uma semana de acusações nos jornais contra o ex-presidente da Câmara dos Deputados. Mesmo desarticulados, mas fiando-se na ausência de outras provas que maculassem ainda mais a biografia de alguém que fora interlocutor privilegiado da República por dois anos, os amigos de Ibsen conquistavam terreno na árdua tarefa de desmentir as acusações. No intestino da CPI do Orçamento, que caminhava para um desfecho melancólico, pois só ia cassar deputados do chamado ‘baixo clero’ parlamentar, buscava-se uma revelação de impacto. Foi nesse ambiente que se perpetrou um dos grandes erros jornalísticos contemporâneos.
Às 20h de uma sexta-feira de novembro de 1993 telefonou-me o assessor parlamentar Waldomiro Diniz. Lotado na Subcomissão de Investigação Bancária da CPI do Orçamento, Waldomiro era o braço direito dos deputados José Dirceu e Aloizio Mercadante naquelas investigações. Hábil, esperto e articulado, forjara-se desde a CPI do Caso PC como uma das boas fontes do submundo político brasiliense. ‘Tenho uma bomba para você’, disse-me Waldomiro. ‘Estou indo para a sua redação.’ Minutos depois, Waldomiro Diniz entrou na sucursal brasiliense de Veja, onde os trabalhos de encerramento da edição estavam avançados e trabalhávamos em um texto de capa sem maiores novidades ou revelações sobre os trabalhos da CPI. Dali a duas horas, no máximo três horas, a edição de Veja teria de baixar para a gráfica da Editora Abril, em São Paulo.
Waldomiro exibia um sorriso triunfal. ‘Pegamos Ibsen’, disse-me. Em seguida, exibiu sete boletos de depósitos bancários, já dolarizados por ele, e que, segundo me dizia, provavam a transferência de US$ 1 milhão de uma conta bancária de Ibsen Pinheiro de uma agência da Caixa Econômica para uma agência do Banrisul. ‘Ele não tem salário para ter tanto dinheiro. Isso é a prova da corrupção’, asseverou Waldomiro. Irresponsável, mas maravilhado com a possibilidade de cravar um furo na edição de Veja do fim de semana seguinte, embarquei na versão e na dolarização. Não chequei as informações. Comuniquei aos editores em São Paulo que estava mudando o tom da reportagem que concluía e passava a ser mais afirmativo contra Ibsen. Liguei para o ex-presidente da Câmara – afinal, ouvir o outro lado é praxe muitas vezes cumprida com burocracia. Ele me negou a história, negou-me os depósitos e os valores, mas eu preferi acreditar nos documentos que tinha em mãos – afinal, registrar o outro lado burocraticamente também é praxe no jornalismo. A nova informação autorizou uma chamada de capa mais enfática contra o ex-deputado – ‘Até tu, Ibsen?’. A principal revista semanal de informação do País, que ia ficar exposta nas bancas por uma semana, era um libelo acusatório contra o presidente da Câmara dos Deputados que liderara a votação do impeachment ao ex-presidente Fernando Collor de Mello um ano antes.
Escrevi o texto e enviei os documentos bancários por fax para São Paulo. Com a reportagem lida, modificada e aprovada pelos diversos escalões editoriais de Veja, cheguei à minha casa por volta das 2h da madrugada do sábado. Pouco antes das 8h fui acordado por toques insistentes da campainha do apartamento onde morava. Era Silvânia Dal Bosco, colega na redação de Veja. ‘O Paulo Moreira quer falar com você. Deu um problema grave lá em São Paulo… na edição da matéria do Ibsen’, disse-me Silvânia. ‘Ele está tentando ligar para cá, para a sua casa, mas só dá ocupado.’ O meu filho tinha deixado o telefone fora do gancho. Liguei para Paulo Moreira, então editor-executivo de Veja. Tenso, Paulo disse-me que Adam Sun, chinês implacável que por muitos anos zelou pela qualidade das informações publicadas em Veja na condição de chefe da equipe de checagem da revista, descobrira que a dolarização estava errada. ‘Lula, essa soma não dá US$ 1 milhão. Dá US$ 1 mil’, gritou-me Adam do outro lado da linha. Eu gelei. ‘Paulo, tem jeito?’, perguntei. ‘Não’, cravou-me ele, friamente. ‘Já rodamos 1 milhão e 200 mil capas. E jogar fora 1 milhão e 200 mil capas é um prejuízo impagável (hoje cerca de R$ 100 mil). Podemos, ainda, mexer no texto dentro da revista – mas isso vai atrasar a remessa para o Rio de Janeiro e para o interior de São Paulo’, advertiu-me ele. ‘Vê se consegue, em dez minutos, alguém para sustentar em on essa dolarização de US$ 1 milhão’, sugeriu.
Não pensei em Ibsen Pinheiro ou na injustiça que estava ajudando a dar curso com aquela reportagem calçada em uma falsa prova. Pensei em mim, no meu emprego, em como salvar uma reportagem fadada a produzir uma tragédia. Telefonei para o presidente da CPI do PC, o então deputado Benito Gama, e consegui pegá-lo acordado àquela hora. Narrei-lhe o ocorrido. Ele tinha conhecimento da versão acerca dos tais depósitos de US$ 1 milhão. ‘Não há chance de isso estar errado. É US$ 1 milhão e Ibsen terá de responder por isso’, asseverou Benito. ‘Deputado, isso é on (ou seja, no jargão jornalístico, eu perguntava se a informação podia ser publicada assinalando-se a sua origem)? Olhe que a reportagem de Veja, que está errada, vai se escudar nesse on seu’, perguntei mais uma vez. ‘É on. Agora, deixe-me fazer o meu cooper’, tranquilizou-me Benito. Passei a frase por telefone a Paulo Moreira, que mexeu na edição da revista, e a Veja circulou com o libelo acusatório contra Ibsen.
Foi uma tragédia pessoal para Ibsen Pinheiro. Ele não me procurou nos dez dias seguintes. ‘Não tinha coragem de querer saber o por quê de terem dado curso àquela mentira. E logo um repórter com o qual eu tinha excelente relação’, disse-me anos depois. Eu sabia que a reportagem estava errada, a CPI também. Por ter detectado o erro e por ter trabalhado para corrigi-lo no texto interno da revista, a despeito de não ter salvado a capa, já impressa, o checador Adam Sun ganhou um prêmio de US$ 1 mil conferido pelo diretor de redação de Veja, Mario Sérgio Conti. Prêmios como aquele, obtidos mesmo sem concursos ou disputas, só eram dados depois que conseguíamos bons furos de reportagem. Fora a primeira vez que um prêmio como aquele acabara nas mãos de um checador. O texto de Veja repercutiu nos jornais por dois dias, a dolarização incorreta foi protocolarmente corrigida pela CPI na semana seguinte, mas Ibsen fora arrastado definitivamente para o centro das investigações. Seus advogados de defesa contrataram uma auditoria da Trevisan & Associados para esquadrinhar todos os ingressos e todas as saídas de suas contas bancárias no período de cinco anos. Nenhuma movimentação financeira anormal foi detectada, mas a CPI desconheceu tal auditoria argumentando que não a pedira nem a fiscalizara.
– Houve um momento, no meio de todo aquele furacão, em que eu tomei uma decisão: convenci-me que a melhor coisa que podia fazer por mim seria não morrer. Eu não poderia simplesmente ter um enfarte e morrer; dar um tiro na cabeça ou sucumbir a um câncer, se ele fosse diagnosticado em meu corpo. Tomei a decisão política de não morrer para ver até onde iria tudo aquilo, até onde eu resistiria e como seria o meu restabelecimento pessoal e público.
(…) A confissão desse processo de regresso a um estado de paz interior consigo mesmo foi feita por Ibsen em uma conversa que tivemos, na sala de seu apartamento em Porto Alegre, no ano de 2000. Estávamos ali eu, ele e sua mulher, Laila, companheira dos melhores dias e dos mais torturantes momentos. Olhei em volta, mirei alguns pratos de louça dourada sobre uma cômoda, uma almofada de crochê sobre uma cadeira de balanço, três ou quatro bibelôs dentro de uma cristaleira espartanamente arrumada. ‘Meu Deus’, pensei em silêncio. ‘Este apartamento está decorado à semelhança da casa de meus avós, de meus pais. Um dia eu fui capaz de escrever que esse homem, que essa mulher tinham se tornado milionários – e olha aqui: são plácidos avós, marcados pela vida, mas ainda sólidos.’ Não revelei, na hora, aquela sensação que me provocava desconforto, mas passei a me perguntar como poderia fazer um gesto que tentasse reparar as injustiças que, involuntariamente, mas cúmplice, ajudei a perpetrar. Meu maior patrimônio é a credibilidade de que gozo como jornalista profissional e, de alguns anos para cá, como consultor de comunicação. Escrever este relato, absolutamente fiel a tudo o que vivi, foi a melhor maneira que encontrei de repor a verdade – a verdade que testemunhei.’
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‘‘Decidi não morrer’’, copyright IstoÉ, 17/8/04
‘Aos 69 anos, o ex-presidente da Câmara dos Deputados conserva hábitos simples, como caminhar nas ruas de Porto Alegre. Mora no mesmo apartamento de um bairro de classe média, na capital gaúcha. Mas abandonou o gel para assentar os cabelos. O homem que ‘não quis ser cúmplice da própria destruição’ concedeu esta entrevista a ISTOÉ na quarta-feira 11.
ISTOÉ – A notícia sobre a movimentação de US$ 1 milhão foi decisiva para a sua cassação?
Ibsen Pinheiro – Antes de tudo, foi uma surpresa como esta suposta informação alcançou tal repercussão em veículos de grande circulação. Sempre soube que não havia esses recursos – nem em dólares, nem em cruzados, nem em cruzeiros. Naquele momento, não havia o necessário e indispensável espaço para a prudência, para a avaliação criteriosa, e, consequentemente, a irresponsabilidade tinha espaço para crescer. É só o que pode explicar como prosperou algo sem o menor apoio na verdade. Nenhuma acusação formal me foi feita, eu não tinha uma emenda fraudada no Orçamento, qualquer conduta desabonadora. A única coisa que me foi atribuída era ter uma movimentação bancária superior às minhas posses.
ISTOÉ – E os US$ 881 mil, de onde surgiram?
Ibsen – Na ocasião, não soube a que atribuir. Só quando o jornalista Luís Costa Pinto me deu o seu depoimento, antes de um almoço em Curitiba, é que eu tive a causa concreta. Antes, eu não podia atinar como surgira esse tipo de suposta informação.
ISTOÉ – E as demais acusações da época (US$ 35 mil recebidos de Genebaldo Correia e fotos com anões em uma ilha grega) ajudaram?
Ibsen – Voltaire tem uma definição muito interessante. Diz que a primeira infâmia contra alguém é rejeitada. A segunda arranha e a terceira destrói. No quadro que se criou, as imputações sem provas, sem nenhum conteúdo, produziam este efeito. Mas aquele quadro se criou. Uma foto junto com uma acusação de movimentação financeira desproporcional passava para o imaginário das pessoas que o ex-presidente da Câmara devia ser responsável por tudo de errado que acontecesse. Isso no imaginário das pessoas dispensava a necessidade de provas. Bastava a afirmação. Chegou a um ponto que não precisava nem afirmação, bastava a insinuação. Eu disse naquela ocasião algo que eu posso repetir hoje: nunca tive a graça de uma acusação. O próprio relatório da CPI dizia: ‘A denúncia inicial não restou provada.’ Nos processos políticos, o ônus da prova se inverte. É o acusado que precisa provar uma, duas, três, quatro vezes. Passei por processo marcado pela ligeireza, característico dos processos políticos.
ISTOÉ – O sr. levou à CPI documentação de uma auditoria referente ao erro do tal US$ 1 milhão?
Ibsen – Levei e me foi informado que ela seria desconsiderada, porque não tinha tido o acompanhamento da CPI. Uma auditoria de uma qualidade inquestionável, feita pela empresa Trevisan, uma das mais acreditadas do País. Me perguntaram depois: ‘Por que você não deu esclarecimentos?’ Eu dei, o que não havia era espaço para sua repercussão.
ISTOÉ – Quem desconsiderou a auditoria?
Ibsen – Não sei especificamente e não acho que isso tenha importância. Não tenho o espírito de cobrar contas. Passados dez anos, lanço para trás um olhar que não disfarça a amargura que senti, mas é um olhar também de quem soube vencer aquele quadro e atravessá-lo sem ódio. Aprendi que o ódio faz mal ao hospedeiro, nunca ao seu alvo. O ódio é um veneno que faz mal a quem o agasalha. Depois destes dez anos eu tive, primeiro, de me impor silêncio; segundo, retomar minha vida. Naquela manhã dramática do dia seguinte à cassação, quando me dava conta de que quem sente vergonha não é quem faz coisas vergonhosas. Sente vergonha quem tem vergonha. Aprendi também que a consciência que dói é a limpa. Consciência suja seguramente não dói. A limpa dói. Se você atravessa um episódio desse e consegue proteger-se da amargura, do ressentimento e do ódio, tem chance de sair dele melhor do que entrou.
ISTOÉ – O sr. conversou com o relator (Roberto Magalhães) sobre o erro?
Ibsen – Não, salvo para exibir a ele e ao presidente da CPI (Jarbas Passarinho) o passaporte que me foi exigido. Eu tomei duas decisões que alguns até hoje me dizem que foram fatais. Primeiro, não pedi o voto de nenhum deputado a meu favor. Não há um parlamentar que possa dizer que eu fui ao seu gabinete fazer um apelo pessoal. Eu tinha a seguinte convicção: eu posso ser cassado, posso ser destruído, mas não serei cúmplice da minha destruição. Então, não vou cometer a humilhação de pedir que violem suas convicções para votar por coleguismo ou por companheirismo. A segunda decisão que tomei: eu não vou renunciar. Eu achava que poderia ser destruído de fora para dentro, como fui destruído politicamente, mas eu não seria cúmplice da minha própria destruição. Não fui a nenhum gabinete pedir ‘me tirem dessa’. O que eu pedi foi da tribuna. Expus a verdade, mas os juízes eram meus pares e eu deveria acatar o resultado, guardar a amargura comigo e confiar que o tempo e os fatos subsequentes me reparariam.
ISTOÉ – Como foi sua volta ao Rio Grande do Sul. O sr. chorou, dormiu, pensava em quê?
Ibsen – Eu tenho uma dificuldade, da qual não me orgulho, que é não chorar de tristeza. A alegria me faz chorar. Uma vitória do meu time, da seleção, um gesto de humanidade que surge de uma fonte inesperada – às vezes, as lágrimas me cortam a voz. De tristeza não sei chorar, sei ficar triste. Viajei com minha mulher, Laila, a Porto Alegre para retomar a minha vida e me apresentar ao Ministério Público. No dia seguinte, pela manhã, me levantei quase sem ter dormido e, depois de tomar banho, fiz a barba, escolhi um terno e a gravata. Peguei minha pasta, caminhei pela rua da Praia, no centro da cidade, para me apresentar ao trabalho. Eu via no olho das pessoas alguns sentimentos. Majoritariamente curiosidade, depois comiseração e, em menor grau, solidariedade. Mas uma coisa, no primeiro momento, significou muito. Não vi deboche, não sofri nenhuma agressão. Tive a intuição de que as pessoas não compreendiam. Tomei uma atitude. Decidi não morrer. Porque a tristeza e a amargura matam. ‘Eu não vou morrer’, dizia.
ISTOÉ – O sr. conhecia Waldomiro Diniz na ocasião?
Ibsen – Nem de nome. Em torno da mesa do restaurante em Curitiba, enquanto esperávamos o ex-deputado Alceni Guerra para o almoço, soube o nome dele na conversa com Luís Costa Pinto. Ali o jornalista me relatou o episódio e, naquele ano, pedi que me desse esse depoimento para o meu livro. Ele o fez com grande integridade, com correção pessoal, por isso lhe sou reconhecido. Sobre Waldomiro, apenas ouvia referências que a CPI tinha um auxiliar ligado às lideranças do PT e que esse auxiliar, por ser bancário, tinha grande trânsito nas documentações bancárias e acesso às lideranças da CPI, mas não sabia nem o nome dele.
ISTOÉ – O sr. acha que houve má-fé de Waldomiro Diniz, que era o braço direito do então deputado José Dirceu. Qual seria o interesse do Dirceu?
Ibsen – Eu não sei se houve má-fé. Não sei se o pior é a má-fé ou a irresponsabilidade, a ligeireza. Às vezes, a má-fé, por ter compromissos com a realidade, tem limites que a irresponsabilidade não tem. Não acho que essas coisas se façam por uma conspiração. Elas se regulam por regras macro. Eu era a vítima ideal. Atingir um ex-presidente da Câmara, um ícone da Casa, significava dar uma dimensão ao episódio que de outra forma não seria alcançada, uma forma de dizer que toda a instituição se comprometeu sem que se precisasse fazer essa afirmação. Sendo eu um deputado de expressão pessoal, mas então sem força política, era a vitima perfeita. Tinha apenas um cargo honorífico, que era a presidência da Comissão de Relações Exteriores. Muito charme, nenhum poder. Pode ter havido algum ódio político. Eu tinha participado meses antes de um processo de grande conflito na Casa, o do impeachment do presidente da República. E também de um processo de cassação de deputado (Jabes Rebelo, cassado por denúncias de envolvimento com o tráfico). Conduzir processos dessa natureza não é exatamente o caminho para ser a miss simpatia de um concurso. Podem ter sido conjugados todos esses fatores. É mais compreensível que imaginar uma conspiração: ‘Vamos atingir esse cara, tirá-lo da carreira política.’ Não se faz vida política com esse maquiavelismo, a despeito de Maquiavel.
ISTOÉ – Mas o sr. sempre disse que tinha expectativa de poder sem tê-lo de fato, tinha sido lançado pré-candidato à Presidência da República.
Ibsen – Pode ter havido um viés político, sim. Sem que signifique que todos agiram imaginando que estavam diante de uma falsidade. Não vou a esse ponto. Até pessoas de boa-fé me atingiram e, eventualmente, votaram pela cassação. Nestes anos recebi muita solidariedade, como recebi quando vivi a própria crise. Muitas vezes fiquei reconhecido até aos que silenciaram. Não é fácil enfrentar uma barragem publicitária e correr o risco de ficar na frente para também ser atropelado. Aqueles que se aproveitaram para pequenas vinganças, eu nem sequer lhes corto o cumprimento. De certa forma é um prazer perceber a aflição que sentem quando lhes dirijo a palavra com serenidade.
ISTOÉ – Como o sr. recebeu o texto do jornalista Luís Costa Pinto?
Ibsen – Este documento me foi passado numa troca de e-mails, onde eu ponderava uma ou outra incorreção de fato ou de data, sem interferir no texto. Trocamos e-mails e este é o texto final dele depois de três ou quatro rodadas. Este texto tem como causa o livro que estou escrevendo sobre o processo todo. O jornalista Luís Costa Pinto, a meu pedido, depôs sobre o fato que ele me relatou em Curitiba. Com grande integridade, ele relata um fato e não poupa nem a si próprio. Ao final, acrescentou que depunha para o livro e autorizava a fazer o uso que me parecesse devido. Não é apenas um fato para a memória, é um fato jornalístico atual, até porque muitos dos atores, ou quase todos, estão vivos e atuantes.
ISTOÉ – Segundo o relato, o então deputado Benito Gama sustentou o erro de forma consciente.
Ibsen – Como parte atingida não sou o julgador mais sereno dessa conduta. Deixo o julgamento à própria consciência dele.
ISTOÉ – Quando sai o livro e quais outras revelações?
Ibsen – O editor está me cobrando. Gostaria de tê-lo terminado em tempo da Feira do Livro de Porto Alegre, em novembro, mas não será possível. Ficará para 2005. Eu gostei do titulo que o Luís Costa Pinto deu ao seu depoimento: ‘O homem que se recusou a morrer.’ Mas não pensei no título ainda, primeiro o conteúdo.
ISTOÉ – O sr. foi vítima de erro jornalístico. O trabalho da imprensa deve ser limitado?
Ibsen – O que mais me impressionou foi ter havido, antes da publicação, a percepção do erro e ter havido a persistência na informação inverídica. Mas fui jornalista quase toda a minha vida e acredito na liberdade de imprensa. Se a imprensa comete desvios de conduta, só a liberdade de imprensa é capaz de corrigi-los. Pior que o denuncismo é a censura. O denuncismo tem cura, a verdade aparece. Na imprensa censurada, o denuncismo é eterno. Os vícios que a imprensa pratica podem decorrer da liberdade de imprensa, mas não tenho dúvida que os vícios mais graves decorrem da censura. Vivi momentos da censura, como todos, no regime militar, e vimos do que a censura é capaz. Nas ditaduras, os efeitos desses vícios de conduta são eternos, são imutáveis. No regime da liberdade, sempre se tem, no mínimo, a esperança e, no máximo, a convicção de que a liberdade vai oxigenar os fatos e aqueles que não são verdadeiros não sobreviverão. Vejo com preocupação quando se pretende criar um Conselho Federal de Jornalistas, com a função de supostamente orientar e fiscalizar, mas, sem dúvida, ainda que a proposta seja de boa-fé, o conteúdo será do patrulhamento.
ISTOÉ – Gostaria de acrescentar algo?
Ibsen – Nenhum desses episódios que sofri tem o condão de me tornar amargo ou vingativo. Eu os atribuo à natureza do processo político: primeiro, destruir a imagem de seu alvo; segundo, emudecer-lhe a voz. Não que ele não fale, ele fala, mas ninguém o escuta. Dez anos depois, pode ser.’
Luís Costa Pinto
‘O Homem Que Se Recusou A Morrer’, copyright IstoÉ, 17/8/04
‘- Não gosto desse governo, mas é o único que temos. Logo, resignemo-nos.
Tomei um susto ao ouvir aquilo. Estava em Brasília havia menos de um mês. Fora transferido pela revista Veja da sucursal de Recife, que chefiava, para me integrar ao grupo de repórteres da sucursal brasiliense. Quando fui informado da promoção saí para comemorá-la, em São Paulo, com os jornalistas Laurentino Gomes, Caco de Paula e Xico Sá. Este último, que tivera uma experiência em Brasília, detestara a cidade. ‘Cara, o Congresso é um mistério. Passei três meses para descobrir onde ficavam os banheiros de lá. E se você não tiver fontes entre os parlamentares, está ferrado: os mais velhos o engolem’, explicara Xico. ‘Ouça muito e fale pouco.’
Quem me confessara a resignação ante o governo do então presidente Fernando Collor de Mello, já no primeiro encontro entre fonte e repórter, sem pedir reservas, fora o presidente da Câmara dos Deputados à época, Ibsen Pinheiro. A conversa que tivemos, que começara por futebol, passara por questões regionais e jornalísticas e terminara em política pura, havia gerado uma empatia instantânea entre mim e ele. Estabeleceu-se, a partir de então, uma relação de admiração que segue até hoje.
Dono de raciocínio rápido e lógico, auto-ironia refinada e poder de análise invejável, o ex-deputado Ibsen Pinheiro pontificava como uma das melhores fontes de informação na capital da República naquele início da década de 1990. Durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988, Ibsen liderara a bancada de deputados federais do PMDB. Foi a partir de sua atuação como líder que conseguiu migrar do chamado baixo clero parlamentar – grupo numeroso de deputados que tem pouco destaque na Casa a despeito de alguns terem construído respeitável biografia na ação junto às comissões temáticas do Parlamento – para o time de políticos com destaque nacional. Antes de tudo, Ibsen era uma fonte jornalística que não mentia. Perguntado acerca de temas sobre os quais não podia se manifestar, omitia-se. Jamais lançava balões de ensaio à imprensa ou tirava repórteres dos bons caminhos de apuração. ‘Já fui um de vocês’, dizia, com alguma nostalgia.
Em 1992, quando o governo Collor perdeu as condições de sustentação política no Congresso e definhava à mercê da Comissão Parlamentar de Inquérito que lhe expunhas as entranhas, Ibsen tornou-se um aliado seguro e secreto da corrente suprapartidária que pediria a cassação do presidente da República. ‘O que o povo quer, esta Casa termina querendo’, vaticinou o ex-presidente da Câmara dos Deputados ao receber, na primeira semana de setembro daquele ano, a formalização do pedido de impeachment presidencial no Salão Verde do Congresso.
A retórica começava a aprontar uma cilada para ele: o povo, representado em protestos nas ruas pela sociedade civil organizada, de fato queria o impeachment. O Parlamento, em sua maioria, ainda não. Existia certa margem de negociação capaz de evitar a perda de mandato de Collor, mas Ibsen foi peça chave na articulação que estreitou o raio de ação dos estrategistas palacianos. Escreviam-se, naquela ação surda do presidente da Câmara, as primeiras linhas do epílogo de sua vida parlamentar em Brasília – a cassação, em 18 de maio de 1994, por alegada colaboração com a ‘Máfia dos Anões do Orçamento’.
Numa sexta-feira do mês de setembro de 1993, o repórter Policarpo Jr., meu colega na redação brasiliense de Veja, obteve o furo de reportagem que mais tarde deu origem à CPI do Orçamento. Depois de insistir por uma semana, ele conseguiu uma entrevista exclusiva com José Carlos Alves dos Santos, ex-assessor da Comissão Parlamentar Mista de Orçamento do Congresso Nacional. José Carlos estava preso em uma delegacia de Brasília por suspeita de assassinato de sua mulher, Maria Elizabeth Lofrano. Na entrevista original, José Carlos mencionou o envolvimento de sete deputados e de um senador em um esquema de fraudes ao Orçamento Geral da União. Não falou no nome de Ibsen Pinheiro, que acabara de deixar a Presidência da Câmara e, semanas antes, fora lançado pré-candidato a Presidente da República numa festa do PMDB no Recife. Àquela altura, mais de um ano antes do pleito, a candidatura presidencial de Ibsen era uma miragem no cenário político – mas do centro à direita do espectro partidário não havia nenhum nome viável para disputar o pleito presidencial de 1994 com Luiz Inácio Lula da Silva, o favoritíssimo pré-candidato do PT. ‘Tenho certeza que o calvário de Ibsen começou ali, no momento em que ele deixou de ser uma aventura para começar a aglutinar apoios em torno de si’, disse-me certa vez Nelson Jobim.
Cerca de dois meses depois de iniciadas as investigações parlamentares acerca dos desmandos e da cobrança de propinas na Comissão de Orçamento do Congresso Nacional, o nome de Ibsen Pinheiro emergiu associado à Máfia de Anões que corrompia o erário. O primeiro documento revelado para incriminá-lo era um cheque do ex-deputado Genebaldo Correia (que renunciou ao mandato na esteira das investigações) depositado em sua conta bancária. Horas depois de divulgada a informação dando conta da existência desse cheque, a assessoria de Ibsen Pinheiro passou a afirmar que o cheque era referente a uma transação financeira com uma caminhonete. O valor do documento bancário era compatível com essa transação e o carro, de fato, fora transferido de um para outro – mas a obviedade do álibi não aplacou a ânsia de apuração jornalística sobre o fato. O segundo documento divulgado para estabelecer um elo entre o ex-presidente da Câmara e a Máfia dos Anões do Orçamento era uma fotografia tirada durante um jantar em uma ilha grega – mostrava Ibsen cercado por cinco dos sete anões do Orçamento.
Um tímido círculo de amigos – alguns deputados; outros, amigos da vida inteira – reuniu-se em torno de Ibsen para rechaçar as acusações. Nelson Jobim , Miro Teixeira, Sigmaringa Seixas, Henrique Eduardo Alves, entre os parlamentares, eram os mais chegados. Luiz Carlos Madeira, advogado e ministro do TSE, pontificava no grupo dos amigos de fora do Congresso.
– Eu era um prato cheio para servir à vingança fria. Tinha ampla exposição, mas não tinha nenhum poder político. Ou seja, eu já havia sido até lembrado para ser candidato a presidente da República, mas não tinha construído nenhum relacionamento político mais sólido dentro das estruturas partidárias ou com a mídia. Fui ingênuo.
O desabafo é do próprio Ibsen e foi feito mais de uma vez ao longo das inúmeras conversas que tivemos em torno do episódio de sua cassação. Como sempre, a análise insinua-se precisa.
O cheque de Genebaldo Correia e a foto da Grécia sustentaram uma semana de acusações nos jornais contra o ex-presidente da Câmara dos Deputados. Mesmo desarticulados, mas fiando-se na ausência de outras provas que maculassem ainda mais a biografia de alguém que fora interlocutor privilegiado da República por dois anos, os amigos de Ibsen conquistavam terreno na árdua tarefa de desmentir as acusações. No intestino da CPI do Orçamento, que caminhava para um desfecho melancólico pois só ia cassar deputados do chamado ‘baixo clero’ parlamentar, buscava-se uma revelação de impacto. Foi nesse ambiente que se perpetrou um dos grandes erros jornalísticos contemporâneos.
Às 20h de uma sexta-feira de novembro de 1993 telefonou-me o assessor parlamentar Waldomiro Diniz. Lotado na Subcomissão de Investigação Bancária da CPI do Orçamento, Waldomiro era o braço direito dos deputados José Dirceu e Aloizio Mercadante naquelas investigações. Hábil, esperto e articulado, forjara-se desde a CPI do Caso PC como uma das boas fontes do submundo político brasiliense. ‘Tenho uma bomba para você’, disse-me Waldomiro. ‘Estou indo para a sua redação .’ Minutos depois Waldomiro Diniz entrou na sucursal brasiliense de Veja, onde os trabalhos de encerramento da edição estavam avançados e trabalhávamos em um texto de capa sem maiores novidades ou revelações sobre os trabalhos da CPI. Dali a duas horas, no máximo três horas, a edição de Veja teria de baixar para a gráfica da Editora Abril, em São Paulo.
Waldomiro exibia um sorriso triunfal. ‘Pegamos Ibsen’, disse-me. Em seguida, exibiu sete boletos de depósitos bancários, já dolarizados por ele, e que, segundo me dizia, provavam a transferência de US$ 1 milhão de dólares de uma conta bancária de Ibsen Pinheiro de uma agência da Caixa Econômica para uma agência do Banrisul. ‘Ele não tem salário para ter tanto dinheiro. Isso é a prova da corrupção’, asseverou Waldomiro. Irresponsável, mas maravilhado com a possibilidade de cravar um furo na edição de Veja do fim de semana seguinte, embarquei na versão e na dolarização. Não chequei as informações. Comuniquei aos editores em São Paulo que estava mudando o tom da reportagem que concluía e passava a ser mais afirmativo contra Ibsen. Liguei para o ex-presidente da Câmara – afinal, ouvir o outro lado é praxe muitas vezes cumprida com burocracia. Ele me negou a história, negou-me os depósitos e os valores, mas eu preferi acreditar nos documentos que tinha em mãos – afinal, registrar o outro lado burocraticamente também é praxe no jornalismo
A nova informação autorizou uma chamada de capa mais enfática contra o ex-deputado – ‘Até tu, Ibsen?’. A principal revista semanal de informação do país, que ia ficar exposta nas bancas por uma semana, era um libelo acusatório contra o presidente da Câmara dos Deputados que liderara a votação do impeachment ao ex-presidente Fernando Collor de Mello um ano antes.
Escrevi o texto e enviei os documentos bancários por fax para São Paulo. Com a reportagem lida, modificada e aprovada pelos diversos escalões editoriais de Veja, cheguei à minha casa por volta das 2h da madrugada do sábado. Pouco antes das 8h fui acordado por toques insistentes da campainha do apartamento onde morava. Era Silvânia Dal Bosco, colega na redação de Veja. ‘O Paulo Moreira quer falar com você. Deu um problema grave lá em São Paulo… na edição da matéria do Ibsen’, disse-me Silvânia. ‘Ele está tentando ligar para cá, para a sua casa, mas só dá ocupado .’ O meu filho tinha deixado o telefone fora do gancho. Liguei para Paulo Moreira, então editor-executivo de Veja. Tenso, Paulo disse-me que Adam Sun, chinês implacável que por muitos anos zelou pela qualidade das informações publicadas em Veja na condição de chefe da equipe de checagem da revista, descobrira que a dolarização estava errada. ‘Lula, essa soma não dá US$ 1 milhão de dólares. Dá US$ 1 mil dólares’, gritou-me Adam do outro lado da linha. Eu gelei. ‘Paulo, tem jeito?’, perguntei. ‘Não’, cravou-me ele, friamente. ‘Já rodamos 1 milhão e 200 mil capas. E jogar fora 1 milhão e 200 mil capas é um prejuízo impagável. Podemos, ainda, mexer no texto dentro da revista – mas isso vai atrasar a remessa para o Rio de Janeiro e para o interior de São Paulo’, advertiu-me ele. ‘Vê se consegue, em 10 minutos, alguém para sustentar em on essa dolarização de US$ 1 milhão’, sugeriu.
Não pensei em Ibsen Pinheiro ou na injustiça que estava ajudando a dar curso com aquela reportagem calçada em uma falsa prova. Pensei em mim, no meu emprego, em como salvar uma reportagem fadada a produzir uma tragédia. Telefonei para o presidente da CPI do PC, o então deputado Benito Gama, e consegui pega-lo acordado àquela hora. Narrei-lhe o ocorrido. Ele tinha conhecimento da versão acerca dos tais depósitos de US$ 1 milhão. ‘Não há chance de isso estar errado. É US$ 1 milhão e Ibsen terá de responder por isso’, asseverou Benito. ‘Deputado, isso é on (ou seja, no jargão jornalístico, eu perguntava se a informação podia ser publicada assinalando-se a sua origem)? Olhe que a reportagem de Veja, que está errada, vai se escudar nesse on seu’, perguntei mais uma vez. ‘É on. Agora, deixe-me fazer o meu cooper’, tranqüilizou-me Benito. Passei a frase por telefone a Paulo Moreira, que mexeu na edição da revista já na gráfica, e a Veja circulou com o libelo acusatório contra Ibsen.
Foi uma tragédia pessoal para Ibsen Pinheiro. Ele não me procurou nos 10 dias seguintes. ‘Não tinha coragem de querer saber o por quê de terem dado curso àquela mentira. E logo um repórter com o qual eu tinha excelente relação’, disse-me anos depois. Eu sabia que a reportagem estava errada, a CPI também. Por ter detectado o erro e por ter trabalhado para corrigi-lo no texto interno da revista, a despeito de não ter salvado a capa, já impressa, o checador Adam Sun ganhou um prêmio de US$ 1 mil conferido pelo diretor de redação de Veja, Mário Sérgio Conti. Prêmios como aquele, obtidos mesmo sem concursos ou disputas, só eram dados depois que conseguíamos bons furos de reportagem. Fora a primeira vez que um prêmio como aquele acabara nas mãos de um checador. O texto de Veja repercutiu nos jornais por dois dias, a dolarização incorreta foi protocolarmente corrigida pela CPI na semana seguinte, mas Ibsen fora arrastado definitivamente para o centro das investigações. Seus advogados de defesa contrataram uma auditoria da Trevisan & Associados para esquadrinhar todos os ingressos e todas as saídas de suas contas bancárias no período de cinco anos. Nenhuma movimentação financeira anormal foi detectada, mas a CPI desconheceu tal auditoria argumentando que não a pedira nem a fiscalizara.
– Houve um momento, no meio de todo aquele furacão, em que eu tomei uma decisão: convenci-me que a melhor coisa que podia fazer por mim seria não morrer. Eu não poderia simplesmente ter um enfarte e morrer; dar um tiro na cabeça ou sucumbir a um câncer, se ele fosse diagnosticado em meu corpo. Tomei a decisão política de não morrer para ver até onde iria tudo aquilo, até onde eu resistiria e como seria o meu restabelecimento pessoal e público.
Essas memórias do turbilhão pessoal foram-me confessadas por Ibsen Pinheiro sete anos depois de seu calvário pessoal. A conversa, travada em um restaurante de Curitiba, teve por testemunha o ex-deputado e ex-ministro da Saúde Alceni Guerra, personagem involuntário de um massacre semelhante à sua honorabilidade e à sua biografia.
Ibsen Pinheiro sobreviveu à tormenta. Recusou-se a ver a si mesmo no meio do cenário devastado. Horas depois de ter sido cassado por 293 votos no plenário da Câmara dos Deputados, pouco mais da metade dos integrantes da Casa, Ibsen deixou o apartamento funcional de parlamentar no qual morava em Brasília e voou para Porto Alegre. Não conseguiu dormir. Levantou-se às 6h da manhã seguinte e foi barbear-se. Olhou-se no espelho e perguntou-se: ‘Até onde vou?’ Envergou o terno, pôs uma pasta 007 nas mãos e dirigiu-se à sede da Promotoria do Estado do Rio Grande do Sul. Queria reassumir de imediato, naquele dia, o posto de promotor de Justiça para o qual passara por concurso público mais de duas décadas atrás.’Tire férias’, aconselhou-o o superior hierárquico. ‘Não. Quero trabalhar. Quero viver de novo’, resignou-se Ibsen, que passou a ser lotado como promotor-assessor da Procuradoria-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul.
– Nunca tive vergonha de mim. Sempre tive fama de ser arrogante e, naqueles tempos, passei a me impor uma postura que soava ainda mais antipática: sabia que precisava andar de cabeça erguida. Não podia abaixar o olhar. Não podia sentir-me derrotado. Os dias, as semanas, os meses foram passando e, nas ruas de Porto Alegre, de São Borja ou de Tramandaí, jamais fui hostilizado. Dois ou três anos depois, voltei a ser saudado por um ou outro. A reparação pública não havia se formalizado, mas eu estava em paz comigo.
A confissão desse processo de regresso a um estado de paz interior consigo mesmo foi feita por Ibsen em uma conversa que tivemos, na sala de seu apartamento em Porto Alegre, no ano de 2000. Estávamos ali eu, ele e sua mulher, Laila, companheira dos melhores dias e dos mais torturantes momentos. Olhei em volta, mirei alguns pratos de louça dourada sobre uma cômoda, uma almofada de crochê sobre uma cadeira de balanço, três ou quatro bibelôs dentro de uma cristaleira espartanamente arrumada. ‘ Meu Deus’, pensei em silêncio. ‘Este apartamento está decorado à semelhança da casa de meus avós, de meus pais. Um dia eu fui capaz de escrever que esse homem, que essa mulher, tinham se tornado milionários – e olha aqui: são plácidos avós, marcados pela vida, mas ainda sólidos.’ Não revelei, na hora, aquela sensação que me provocava desconforto, mas passei a me perguntar como poderia fazer um gesto que tentasse reparar as injustiças que, involuntariamente, mas cúmplice, ajudei a perpetrar. Meu maior patrimônio é a credibilidade de que gozo como jornalista profissional e, de alguns anos para cá, como consultor de comunicação. Escrever este relato, absolutamente fiel a tudo o que vivi, foi a melhor maneira que encontrei de repor a verdade – a verdade que testemunhei. (*) Luís Costa Pinto é jornalista. Foi editor e chefe da sucursal de Veja no Recife e em Brasília, foi repórter de O Globo e da Folha de S. Paulo, foi editor de Época e editor-executivo do Correio Braziliense. É consultor de comunicação e de marketing político.’