Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela Universidade Federal de São João Del Rei e professor do Instituto Federal do Espirito Santo, campus de Vitória. Mineiro de Barbacena, Ladeira é especialista nas relações entre mídia e o processo de ensino e aprendizagem de geografia na educação básica. Desde 2011, já publicou centenas de textos no portal do Observatório da Imprensa, sempre na temática das relações entre mídia e poder no Brasil. Parte desses textos foi reunida no livro “10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático” (Editora CRV, 2020), que está sendo lançado esse mês. Na entrevista abaixo, concedida por e-mail ao jornalista Pedro Varoni, Ladeira fala sobre o livro e o exercício da crítica do jornalismo a partir das lentes da geografia.
Pedro Varoni — O seu livro contempla dez anos de colaborações para o Observatório da Imprensa. Como se deu o primeiro contato e o que o levou a escrever o primeiro artigo?
Francisco Fernandes Ladeira — Gosto de escrever desde criança. E sempre tive o hábito de ler: primeiro enciclopédias e jornais, depois livros. Ingressei na escola básica no pós-regime militar, mas a matriz curricular ainda era influenciada pela ditadura, basicamente pautada nas disciplinas de Matemática e Português. As aulas em que produzíamos redações eram as únicas que me interessavam de fato. Fui um aluno mediano, mas as professoras elogiavam meus textos.
Eu tinha dúvida entre Geografia e Jornalismo para prestar vestibular. Optei pela primeira opção.
Em 2011, ano de meu primeiro artigo no Observatório da Imprensa, comecei a publicar textos em um blog de um amigo e em um site de minha cidade natal, Barbacena (MG). Na época, eu acompanhava o Observatório da Imprensa na TV (apresentado pelo saudoso Dines) e também lia os artigos no site. Como eu havia escrito um texto sobre as relações entre mídia e jogadores de futebol, percebi que seria uma oportunidade de tentar publicar um texto no Observatório.
No site havia a opção “envie seu artigo”. Enviei. Lembro de ter feito uma observação sobre eu não ser jornalista, mas que acompanhava as produções midiáticos com um olhar crítico e gostaria de escrever sobre essa temática.
Pois bem, o artigo foi aceito. Menos de um mês depois, escrevi outro artigo. Desde então, colaboro com o site frequentemente, são quase duzentas publicações. Como tenho contato frequente com vários tipos de mídia, e costumo abordar diferentes assuntos, o livro não é apenas sobre questões mais intrincadas como política, economia e relações internacionais. Há capítulos com temas mais “leves”, como novas mídias, esportes e entretenimento.
PV — Quais são as regularidades discursivas nesses dez anos de colaboração para o Observatório da Imprensa? Quais os temas e as questões recorrentes?
FFL — A atuação da grande mídia como uma espécie de partido político das forças conservadores de nossa sociedade é uma questão bastante recorrente em meus textos.
Ao contrário dos discursos que apontam uma suposta neutralidade jornalística, os principais grupos de comunicação do país servem aos interesses da elite econômica. Nessa linha, há a criminalização de movimentos sociais, apoio às privatizações, editoriais favoráveis aos cortes de direitos básicos da população e as manipulações sobre greves (são ressaltados apenas os transtornos para os cidadãos, raramente são mencionadas as reivindicações dos trabalhadores).
Durante o governo Dilma Rousseff, medidas como a chamada “PEC das Domésticas” e o programa Mais Médicos foram duramente atacadas pela imprensa. Também não há como deixar de mencionar a seletividade midiática em matérias sobre casos de corrupção, resguardando determinadas legendas, e atacando outras, sobretudo aquelas ligadas à esquerda política. Em vários artigos citei essa lógica “dois pesos, duas medidas”. Não por acaso, Paulo Henrique Amorim cunhou o acrônimo PIG – Partido da Imprensa Golpista.
A partir das jornadas de junho de 2013, a radicalização da sociedade foi bastante destacada em meus textos. Para engrossar as mobilizações contra o PT, extremismos de todo tipo foram incentivados a sair do armário (o que contou com o apoio da grande mídia). Como se sabe, estes extremismos estão cada vez mais fortes. Em um artigo de 2017, eu citei que, se retirássemos as datas dos noticiários atuais, diríamos se tratar de acontecimentos da Idade Média, do período escravocrata ou da ditadura militar. Essas regressões civilizacionais têm pautado meus artigos recentes.
PV — O que essas regularidades indicam na sua opinião?
FFL — Não é admissível que um país com a complexidade do Brasil ainda tenha essa vergonhosa concentração de emissoras de televisão (que são concessões públicas) em propriedade de poucas famílias, praticamente sem divergências ideológicas entre si.
Uma democracia política requer, inexoravelmente, uma democracia midiática. O chamado “coronelismo eletrônico” – relacionado aos meios de comunicação – é tão nefasto para o país como foi o clássico coronelismo dos grandes proprietários rurais na primeira metade do século passado.
A pluralidade de pontos de vista sobre uma determinada questão é fundamental para que os cidadãos possam melhor se posicionar frente à realidade. E o que vemos atualmente nos principais jornais de circulação nacional são manchetes e editoriais praticamente idênticos.
É evidente que temos a internet, os blogs e as redes sociais, meios teoricamente mais plurais. Mas a televisão, sobretudo a Rede Globo, ainda é um importante elemento para pautar a agenda pública do país. Concordemos ou não, o que é noticiado no Jornal Nacional, no dia seguinte é assunto em rodas de conversa em todo o Brasil.
PV — A complexidade dos ecossistemas de mídia na sociedade contemporânea demanda novos desafios ao exercício da crítica de mídia. Quais são eles na sua opinião?
FFL — McLuhan dizia que o surgimento de um meio de comunicação não afeta somente o funcionamento da sociedade, gerando novas formas de organização da vida cotidiana; também provoca mudanças consideráveis nas outras mídias já existentes.
Nesse sentido, as chamadas “mídias tradicionais” mudaram consideravelmente após o advento da internet. E não digo apenas em relação a questões básicas, como um grupo de comunicação ter seu website, sua página nas principais redes sociais ou um canal no Youtube.
Jornais impressos, revistas e canais de televisão têm produzido textos mais concisos para se adaptarem à linguagem dinâmica da internet. Como a mídia virtual passou a apresentar as notícias em primeira mão, cabe à televisão se concentrar na repercussão dos diferentes acontecimentos e, diante dessa lógica, jornais impressos têm-se voltado cada vez mais para matérias opinativas sobre os principais acontecimentos.
Hoje, qualquer um de nós é, potencialmente, produtor de conteúdos e não mais mero receptor de notícias distribuídas por poucos grupos de comunicação.
Porém, é preciso cautela para analisar essa realidade. É fato que o espaço virtual, de alguma forma, abalou as estruturas da mídia hegemônica. É muito difícil para as principais emissoras do país ocultarem do grande público um fato qualquer se ele teve bastante repercussão nas redes sociais.
As primeiras manifestações que culminaram nas jornadas de junho de 2013 não foram destacadas pela grande imprensa. Porém, com o assunto sendo cada vez mais comentado no Facebook, a mídia teve que noticiar. Ao seu modo, é claro, mas não pôde ficar indiferente.
Também é importante não confundir o papel das redes sociais. Lembro que em 2011, durante um comentário para o Jornal da Globo, Arnaldo Jabor se referiu à Primavera Árabe como a “Revolução do Facebook”, o que, evidentemente, transfere a análise sobre as motivações políticas do movimento para uma abordagem meramente instrumental.
Com a enxurrada de notícias que temos contato diariamente, articulistas midiáticos e públicos, devido à impossibilidade de filtrar todo esse conteúdo informacional, têm apresentado análises imediatistas e com pouca profundidade. Costumo dizer que temos uma geração de “leitores de posts”; indivíduos que, a partir da mera leitura do título de um determinado texto, já se consideram aptos a emitir seus posicionamentos.
No momento, temos as discussões sobre as chamadas fake news e os projetos para coibir e punir quem divulga esse tipo de notícia inverídica.
Ao contrário de muitos, percebo essa questão com bastante receio. É preocupante o fato de parlamentares de esquerda estarem bastante empenhados na criminalização de quem divulga fake news.
Hoje, o alvo é a extrema-direita bolsonarista, mas quem garante que, em curto/médio prazo, esses projetos de lei, caso aprovados, não sejam utilizados justamente para perseguir blogueiros e a imprensa progressista, sob alegação de estarem produzindo fake news? Quem terá a prerrogativa de definir se uma notícia é falsa ou verdadeira? São questionamentos que devem ser feitos com maior sobriedade e sem as pressões do calor dos fatos, principalmente levando em consideração que a esquerda brasileira é especialista em comprar Cavalos de Troia, ou seja, em apoiar medidas que, no futuro, acabam se voltando contra a própria esquerda.
Qualquer tipo de medida que cerceie a liberdade de expressão na internet pode ser um passo para a censura na rede mundial de computadores, o que devolveria para os grandes grupos de comunicação o monopólio de produção de notícias.
PV — O artigo que finaliza o livro, publicado no Observatório em janeiro de 2020, pergunta se a distopia venceu a utopia. Considerando o contexto atual, já no meio do ano, com uma pandemia global, protestos em várias partes do mundo contra o racismo, ataques à democracia no Brasil, é possível encontrar novas proposições para a pergunta?
FFL — Sem dúvida, temos um contexto ainda mais distópico em relação ao que tínhamos quando eu escrevi o texto. Isso em apenas seis meses.
Vivemos uma das piores crises sanitárias da história (que chegou justamente após anos de sucateamento da saúde pública pelas medidas neoliberais), todo tipo de obscurantismo saindo do armário e a extrema-direita avançando a passos largos, tanto em mobilizações populares quanto no poder institucional. Como cantava Cazuza: “meus inimigos estão no poder”.
Não se trata de uma realidade necessariamente nova, pois, conforme a história nos mostra, em momentos de grave crise econômica, o grande capital, com o intuito de continuar garantido os seus lucros, não se intimida em apoiar a ascensão ao poder de políticos abertamente fascistas.
No caso do Brasil, temos uma distopia ainda mais agravante. Um presidente que nega a gravidade da pandemia da Covid-19, não toma medidas para amenizar o sofrimento da população, incentiva aglomerações e apregoa pela reabertura total da economia, quando ainda nem chegamos ao pico de contaminações. Sem falar que o fantasma de um novo golpe militar está nos rodeando.
O artigo citado nessa pergunta afirma que vivemos no Brasil um misto de vigilância constante (estilo 1984), perda progressiva das individualidades (como em Admirável mundo novo) e caminhando para uma ditadura religiosa (assim como em O conto da aia) e um governo totalitário (estilo Fahrenheit 451).
Desde então, a situação só piorou. Como eu disse, muitos já não se intimidam em demonstrar seus posicionamentos mais obscuros. Grupos como os “300 do Brasil” ameaçam abertamente as instituições, utilizando metodologias de ação típicas da Ku Klux Klan, deputados declaram que vão “meter bala em comunistas”, bandeiras de grupos extremistas tremulam tranquilamente em manifestações país afora e pastores oferecem curas espirituais para a Covid-19.
Por outro lado, as utopias ainda estão se manifestando. As pessoas não aceitam mais passivamente os assassinatos de negros por policiais (como foi o caso recente de George Floyd), torcidas organizadas estão se levantando contra o fascismo crescente em nosso país e no Equador há protestos contra o governo neoliberal de Lenin Moreno.
Como todo período conturbado, temos movimentações revolucionárias e contrarrevolucionárias. Em suma, podemos dizer que a distopia está vencendo a utopia, mas o jogo ainda não terminou.
PV — É muito comum que a crítica de mídia seja desempenhada pelos próprios jornalistas. Quais as diferenças dela ser exercida por pesquisadores de outros campos, como é o seu caso?
FFL — A ciência geográfica tem grande relação com o jornalismo, sobretudo em temáticas inerentes à geopolítica, área que pesquisei em minha dissertação de mestrado.
No livro Discursos Geopolíticos da Mídia – Jornalismo e Imaginário na América Latina, a professora da Universidade Federal do ABC, Margareth Steinberger, afirma que a nova ordem geopolítica mundial é uma “Ordem Internacional Midiática”. Isso significa que, em grande medida, as relações internacionais são construídas por meio de práticas discursivas dos órgãos de imprensa. Um acontecimento que não esteja “documentado” na mídia praticamente não “existe” sob o ponto de vista geopolítico.
Se não formos cuidadosos, poderemos perceber a ordem geopolítica não como realmente é, em toda sua complexidade, mas pelas simplificações das narrativas midiáticas; produzidas, majoritariamente, pelas agências de notícias internacionais, que estão a serviço das políticas externas das grandes potências globais.
Portanto, para um indivíduo como eu – que leciona, pesquisa e escreve sobre geopolítica – compreender minimamente o funcionamento do maquinário midiático é fundamental.
Mas aí entra uma questão: no curso de Geografia não temos disciplinas ligadas ao jornalismo (deveríamos ter). Em 2015, cursei uma matéria isolada no mestrado de Letras da Universidade Federal de São João Del-Rei que abordava a mídia. Percebi claramente as diferenças entre visões de leigos e de especialistas no tocante à análise do discurso jornalístico.
Em contrapartida, na graduação, jornalistas também não se aprofundam em temáticas geopolíticas. Nesse sentido, os conhecimentos geográficos são bastante relevantes para a crítica dos noticiários internacionais.
Quando estou em eventos ligados às áreas de Jornalismo e Letras, a princípio as pessoas estranham a presença de um professor de Geografia. Do mesmo modo, muitos historiadores ainda não se acostumaram a ideia de jornalistas escreverem livros sobre história. Acredito que os diferentes campos do saber podem dialogar perfeitamente. Um pesquisador – desde que não banalize o conhecimento e leve a sério suas análises – pode produzir trabalhos sobre outras áreas.
PV — O Observatório da Imprensa resulta de um projeto pioneiro no Brasil num tempo em que a sociedade não era tão digitalizada e nem midiatizada. Como você avalia a importância desse espaço no Brasil contemporâneo?
FFL — É interessante constatar como o Observatório da Imprensa, ao longo de duas décadas e meia, sempre esteve em consonância com as principais mudanças no setor comunicacional. Trata-se de um projeto que desmistificou para o grande público aquela concepção falaciosa de uma mídia neutra, sem ligações com grupos econômicos e a serviço dos interesses da sociedade. Também tem sido importante para entendermos sobre os mecanismos de manipulação midiática, as armadilhas discursivas e as linhas editoriais dos maiores órgãos de comunicação do país.
Atualmente, além de veículo de crítica sobre a atuação da grande mídia, o Observatório é um espaço de debates sobre os diferentes conteúdos disponibilizados na internet, fator imprescindível numa época em que muitos indivíduos ainda não compreenderam satisfatoriamente os riscos e possibilidades da sociedade digitalizada.
Apesar de apartidário, o Observatório não se abstém em debater criticamente as principais questões políticas contemporâneas. Após o 11 de setembro, advertiu que a cobertura midiática, pautada na exibição constante de imagens trágicas, pouco mencionou os condicionantes geopolíticos daquele fato que a cultura ocidental classificou como “o maior ataque terrorista da história”.
Durante as jornadas de junho de 2013, os articulistas do Observatório foram pioneiros em denunciar a guinada conservadora que aquele movimento tomava. Também foi fundamental para analisar o papel da mídia nos acontecimentos que desencadearam na queda de Dilma Rousseff e na ascensão da extrema-direita.
Nos últimos dois anos, percebo um Observatório da Imprensa bastante combativo, denunciando todos os desmandos e regressões do governo federal. Considero que o leitor assíduo do Observatório está bem informado sobre fenômenos presentes nos meios de comunicação como o bolsonarismo, os protestos antirracistas, as guerras híbridas e as crises política, econômica e sanitária.
O clássico bordão de Alberto Dines (que também é epígrafe de meu livro) resume bem o papel desse espaço no Brasil contemporâneo: “Acompanhando o Observatório da Imprensa, você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”.
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Serviço:
Dez anos do Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático, por Francisco Fernandes Ladeira.
Informações
E-mail: ffernandesladeira@yahoo.com.br