Mais de 550 casos de varíola dos macacos foram registrados em mais de 30 países, conforme a OMS (Organização Mundial da Saúde). Como aconteceu na covid-19, esse surto tem provocado o surgimento de teorias errôneas de que o surto foi planejado e criado por alguém propositalmente.
As teorias de conspiração e a desinformação que aparecem nas redes sociais tratam sobre a origem e o motivo do surto da varíola dos macacos com o uso de truques retóricos, muitas vezes reciclados a partir daqueles utilizadas na Covid-19. Um dos principais alvos de desinformação envolvendo vacinas e Covid-19 foi o fundador da Microsoft, Bill Gates; agora, com a varíola dos macacos (monkeypox), não é diferente.
Outro tipo de desinformação em circulação trata da suposição (falsa) de que o vírus monkeypox teria sido encontrado majoritariamente em gays, bissexuais e homens que fazem sexo com homens (HSH). Há um risco evidente de que a desinformação estigmatize alguns grupos e amplifique a homofobia.
A convite do Observatório da Imprensa, Mellanie Fontes-Dutra discorre sobre a varíola dos macacos e a desinformação que o surto dela envolve. Fontes-Dutra é biomédica, neurocientista, professora na Unisinos e divulgadora de ciências na Rede Análise e Todos Pelas Vacinas. Confira a entrevista completa:
Nicole De March – Bill Gates disse que a próxima pandemia seria da varíola humana; essa afirmação vem sendo usada por conspiracionistas para alegar que Gates criou a varíola dos macacos. De fato, onde e como surgiu a varíola dos macacos?
Mellanie Fontes-Dutra – A varíola dos macacos (monkeypox) foi descoberta inicialmente em 1958; desde então, ocorreram surtos desse vírus em alguns países do mundo. Na sua maior parte, as infecções ocorridas nesse período foram relatadas na República Democrática do Congo. Atualmente, essas infecções continuam sendo relatadas especialmente em alguns países da África.
Antes desses surtos de agora, houve outros: nos Estados Unidos, em 2013 e na Nigéria, em 2018. Este não é um vírus novo; nós não estamos falando de algo que surgiu agora, com este surto na Europa. Estamos falando de algo que foi descoberto já no final dos anos 50, e que vem circulando na população desde então. Pode não ter ganhado tanta notoriedade já que não tinha atingido países de maior renda; em alguns países, como os que mencionei na África, é um vírus que provoca infecções ainda na atualidade e que acaba se concentrando nessas regiões.
N.D.M. – Existiria algum risco de termos uma pandemia da varíola dos macacos?
M.F. – É difícil a gente fazer uma previsão como esta, já que existem vários fatores que precisamos levar em consideração quando estamos falando de uma doença potencial pandêmica, ou em menor escala, epidêmica. O primeiro fator é que, para a ocorrência, a população precisa ser suscetível a este agente infeccioso, para que ele possa encontrar a oportunidade de fazer infecção e se espalhar. O segundo, é que para que essas oportunidades de infecção aconteçam é necessário que a população tenha uma certa mobilidade para que esses encontros ocorram. E há um terceiro fator: o agente infeccioso precisa ter características que viabilizem sua transmissão de humano para humano, para que desta forma fomente ainda mais estas cadeias de transmissão. Além destes, existem outros fatores relacionados, como por exemplo a nossa capacidade de vigilância em tentar predizer ou evitar esse surto e tudo mais.
Mas a grande questão é que quando estamos falando do vírus monkeypox, estamos falando de um vírus de DNA que é mais estável do que um vírus de RNA, como o SARS-CoV-2, o novo coronavírus. Quando digo mais estável, quero dizer que a varíola dos macacos é um vírus que não sofre tantas mutações no seu material genético, como a gente observa no vírus da covid-19. Então, a capacidade de adaptação vai ser mais lenta. Tanto que os dados de sequenciamento do material genético revelam que os casos de monkeypox apontam que esse vírus está bastante relacionado com o observado nos poucos casos detectados em Israel, Nigéria, Cingapura e UK, entre 2017 e 2019. Apesar de ter sido detectado um número significativo de mutações comparado com o que se espera para a taxa de mutações do monkeypox, ainda assim não é algo que apresenta uma preocupação por ser tão diferente.
Temos um potencial imenso de poder evitar que esse surto se torne algo maior, uma vez que a transmissão humano para humano não é tão facilitada como a da varíola humana. Além disso, estamos lidando com um vírus de DNA: a vacina contra varíola humana, que existe, confere proteção adicional contra o monkeypox. Mas, claro: é necessário que se tenha uma estratégia bem elaborada, para evitar um maior espalhamento ao fazer o manejo dos casos confirmados no país. E isso, tanto a nível de Brasil quanto a nível mundial; também é preciso entender que não é porque uma doença é negligenciada ou porque ela acontece num país distante do nosso, que ela não é importante para o mundo. Essa situação de ter vírus e outros agentes infecciosos circulando em alta quantidade em populações no mundo, independente de quais sejam, é um problema de saúde global. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), esse vírus é de risco moderado, uma vez que temos todas essas estratégias para controlar, mas ao mesmo tempo, observando esse crescimento, temos que ficar atentos para fazer o controle da melhor forma possível.
N. D. M. – Qual seria a explicação para os casos estarem ocorrendo com pessoas que não passaram pelo continente africano e que não parecem estar relacionadas umas às outras?
M.F. – Os dados de sequenciamento do material genético revelam que os casos de monkeypox fora da África são relacionados, sugerindo que esse vírus poderia estar circulando na população já tem um tempo, e essa visualização pode ter permanecido subnotificada por não termos um grande número de casos.
N.D. M. – A cobertura midiática do surto, principalmente nas redes sociais, tem focado no ponto que a varíola dos macacos afeta apenas homens que tem sexo com homens (HSH). Essa narrativa é falsa, e lembra muito também o que aconteceu na crise de AIDS. Por que esse tipo de associação é perigosa?
M.F. – Toda essa questão da estigmatização é um problema imenso. Além do fato de a estigmatização trazer consequências horríveis para essas populações, com associações que não fazem o menor sentido, isso acaba também enviesando a percepção pública do problema. Se a transmissão sexual de fato se mostrar como um caminho importante para transmissão desse agente infeccioso, isso não estará restrito só a homens que fazem sexo com homens ou bissexuais ou qualquer orientação sexual: isso terá uma implicância importante para todas as pessoas que fazem sexo. É a mesma coisa que ocorreu com a AIDS: diziam que era algo da população gay, quando na verdade, qualquer pessoa que tiver relação sexual, independente ser uma relação hetero, bi ou de qualquer tipo com uma outra pessoa sem camisinha, vai estar exposta ao vírus, se essa pessoa estiver positiva, se ela estiver transmitindo, se há o agente infeccioso.
E essa estigmatização tem efeitos em populações que já são alvo de preconceito e que ainda tem mais essa carga, mais essa questão, de uma doença que é desconhecida até então por parte de muitas pessoas. Toda essa falta de entendimento traz ansiedades e apreensões e essas desinformações podem acabar ganhando um espaço justamente por conta desse desconhecido popular.
Quando comecei a produzir conteúdo sobre varíola dos macacos, eu ressaltei para as pessoas terem cautela ao falarem sobre isso, de ter ocorrido mais com homens que fazem sexo com homens (HSH), e também para terem entendimento sobre o que isso significa. Não é porque os primeiros casos foram em determinadas populações que a doença só acometerá essas populações, que ela seja uma doença dessas pessoas. Temos que olhar para momentos do passado onde foram cometidos erros terríveis, como no caso da AIDS, e termos cuidado para não repetir os mesmos erros.
N.D. M. – Por que esses casos têm ocorrido mais com homens que fazem sexo com homens?
M.F. – Uma vez que já estamos em transmissão comunitária em alguns locais, não podemos dizer que a transmissão estaria restrita a um grupo populacional por conta de sua orientação sexual, e devemos buscar descobrir quais os padrões das transmissões atuais. Antes, podíamos rastrear cada caso, mas agora em Londres, por exemplo, não é mais possível, já que é transmissão comunitária. Nesse caso, não é possível rastrear com tanta exatidão e se parte do princípio que o vírus já está circulando na população. Levando isso em conta, é importante ter esse cuidado para não generalizar e estigmatizar populações. Devemos tomar cuidado em especial com gotículas e contato próximo e prolongado com possíveis infectados. Esse tipo de associação incentiva medidas ineficazes, estigmatizando populações e causando desinformação.
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Nicole De March é mestre e doutora em Física (UFRGS). Pós-doutoranda do LABTTS (DPCT-IG/Unicamp) e membro do Grupo de Estudos de Desinformação em Redes Sociais (EDReS).