Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Cabo Verde: entrevista com Silvino Lopes Évora

(Foto: Arquivo Pessoal)

Silvino Lopes Évora é um jornalista, escritor e professor universitário natural de Cabo Verde. Atualmente presidente da Associação Cabo-verdiana de Ciências da Comunicação (Mediacom) e do Conselho Científico da Universidade de Cabo Verde (UniCV), ele assumiu recentemente a vice-presidência da Federação Lusófona das Ciências da Comunicação (Lusocom).

Nascido na cidade de Tarrafal, na ilha de Santiago, além de trabalhos como escritor e poeta, Silvino possui uma intensa produção acadêmica na área da Economia Política da Comunicação, com pós-doutorado na Universidade Fernando Pessoa, em Portugal. Entre os livros publicados por ele estão Concentração dos Media e Liberdade de Imprensa (Minerva: 2011), acadêmico, e Rimas no Deserto (Chiado Books: 2009), de poesias.

Enio Moraes Júnior — A migração cabo-verdiana é um fenômeno que chama atenção, com marcas inclusive na literatura. De que forma esses fluxos migratórios influenciam a pauta do jornalismo nacional?

Silvino Lopes Évora – A imigração é um fenômeno natural que nós, cabo-verdianos, sentimos como natural. Com a independência, em 1975, Cabo Verde começou a implementar o seu próprio sistema midiático, que começou a ser dualista (estatal e religioso) e só mais tarde passou para um regime pluralista, com a proliferação da iniciativa privada no campo dos mass media. Portanto, os meios de comunicação social tiveram de acompanhar a dinâmica da vivência social do homem cabo-verdiano, cuja identidade se reconfigura, de forma permanente, nesse trânsito pelo espaço entre as ilhas e as diásporas. A vinculação do homem cabo-verdiano à ilha é tão forte que as partidas, regra geral, não significam idas sem volta. A relação com os familiares e amigos que ficaram, a necessidade de construir uma casa própria na sua ‘terra’ e outros elementos de vinculação ao território fizeram com que, ao longo dos tempos, os cabo-verdianos tivessem mantido essa relação com o país. Essa dinâmica tem sido acompanhada muito de perto pela comunicação social, na medida em que a própria ideia da diáspora como a décima primeira ilha (Cabo Verde tem dez ilhas) é sintomática de que, para o cabo-verdiano, viver no estrangeiro é uma espécie de ‘estar cá dentro lá fora’. Os meios de comunicação social não podem e nem devem ignorar esses elementos. Eles formam os substratos da noticiabilidade não só nos media sediados em Cabo Verde, como naqueles que se encontram estabelecidos nas nossas diásporas.

EMJ  —  Você tem bastante experiência como cientista social e conquistou um importante espaço acadêmico, sobretudo, nos países lusófonos. Qual o papel que a imprensa tem desempenhado na qualidade da democracia das nações de língua portuguesa?

SLE – A democracia é um patrimônio intangível que se encontra num processo de construção permanente. Olhando para as nações de língua portuguesa, é possível ver que existem várias velocidades na vinculação da imprensa à qualidade da democracia. O nível de escrutínio difere de país para país. Se, em Portugal e no Brasil, os meios de comunicação são mais incisivos no escrutínio dos poderes, encontramos países como Angola, Guiné-Bissau ou Timor Leste, em que essa contribuição é mais modesta. Cabo Verde ocupa uma posição intermediária. Moçambique também, mas com mais mordaças à Comunicação Social e às tentativas de escrutínio aos poderes. Portanto, se de uma forma geral existe essa consciência de que, na maioria das vezes, a qualidade da democracia está associada à qualidade da comunicação social e da liberdade de imprensa, podemos verificar que, grosso modo, nos países de língua portuguesa há um esforço da parte dos profissionais da comunicação em contribuir para enriquecimento do sistema democrático, sem que, efetivamente, se consiga alcançá-lo, em todos os territórios, com a mesma amplitude.

EMJ — Quais são os temas sociais mais relevantes e mais frequentes no mainstream do jornalismo nacional cabo-verdiano?

SLE – Regra geral, as preocupações que assumem protagonismo no processo de agendamento dos mass media cabo-verdianos se situam nos territórios da política, alcançando os combates e os jogos de poder dos partidos do arco da governação, o próprio processo da governação, as dinâmicas e as querelas do poder local (dos municípios). Os outros temas da vida social têm uma cobertura menor da parte dos media e, muitas vezes, surgem ligados às abordagens de questões políticas ou como ‘follow up’ de outras notícias, em raros casos de jornalismo de continuidade.

Nas matérias em que se encontram tentativas de ‘follow up’, quase sempre há interesses ideológicos e políticos que se vislumbram por trás do agendamento. Acontecem, na maioria das vezes, quando um ou outro órgão de comunicação social estende o processo de mediatização para além do anúncio primário de uma notícia, prolongando o interesse noticioso de um acontecimento e procurando catapultar a noticiabilidade para outros patamares. Porém, o grande pecado aqui é que, raramente, a permanência dos assuntos na agenda resulta de uma profunda investigação, com introdução de novos componentes do tema na agenda.

EMJ — Como funciona o jornalismo regional e local no país? Quais os temas mais recorrentes demandados pelas comunidades?

SLE – O jornalismo local e regional é assegurado, em Cabo Verde, essencialmente pelas rádios comunitárias e alguns meios de comunicação social digitais que surgiram com a internet. Ainda assim, devo destacar o surgimento de um canal de televisão de índole regional muito recente na paisagem audiovisual, a TCSM, alicerçado em Santa Maria, na ilha do Sal. Outrossim, há novas televisões – como a TVA e a TV Cidade – que precisam de um posicionamento social mais claro, para que se possa avaliar melhor a sua abrangência, ou seja, para que se saiba se são estações televisivas regionais ou nacionais.

No que diz respeito aos temas do jornalismo local e regional, destacam-se os de interesse comunitário, como a consciencialização das pessoas para atitudes positivas perante a vida, temas que enaltecem o empoderamento de comunidades carenciadas, assuntos que apontam para o combate às doenças e aos males sociais e questões associadas à vida dos municípios e das comunidades que esses meios de comunicação social dão cobertura. Também, as comunidades locais estabelecidas nas diferentes diásporas são temas que preocupam o jornalismo local cabo-verdiano, já que as redes sociais têm servido de elo entre esses órgãos de proximidade e as pessoas estabelecidas nas diferentes diásporas, que mantêm as ligações com as suas comunidades.

EMJ — Em um recente artigo sobre comunicação política, inteligência artificial e ciberesfera, você pondera que “a crescente digitação do espaço público conduziu a um incremento da mediação e da formulação das decisões de forma acelerada”. Como isso afeta a responsabilidade social da imprensa? 

SLE – A responsabilidade social dos media aumenta de forma considerável com o crescente processo de digitalização, quando mais operadores surgem no campo da mediação em massa e os jornalistas perdem o monopólio de forma avassaladora. O surgimento dos blogs e dos aparelhos celulares com câmeras de vídeo incorporadas conduziu-nos a um cenário que alguns conceituam como ‘jornalismo cidadão’ e que outros não gostaram da terminologia, entendendo que pode configurar um desprestígio à profissão jornalística. As redes sociais aceleraram esse processo, obrigando os meios de comunicação social a assumirem, nas suas práticas e distribuição de conteúdos, uma associação entre os mass media e os social media. Porém, no domínio dos social media, os operadores mediáticos não se encontram sozinhos, uma vez que os cidadãos que ocupam o ciberespaço recusaram o estatuto de leitores / consumidores passivos e passaram a programar a semântica do espaço público, ao lado dos detentores dos órgãos mediáticos. Esse fenômeno amplia a responsabilidade social dos media, que, para além de abranger os diferentes setores da vida social, também passam a incidir sobre a própria arquitetura dos conteúdos do campo midiático.

EMJ — As mídias sociais mudaram a forma de produção de notícias em todo o mundo. Quais são os aspetos positivos e negativos dessa mudança em Cabo Verde?

SLE – A convergência digital dá-se em todos os setores da vida social: na prestação dos serviços, no acesso a uma receita médica, na compra nos supermercados, no pagamento ao fisco, nas transações bancárias, na solicitação dos documentos pessoais de identificação e, inclusive, na frequência de um curso ou de uma palestra. Portanto, há diferentes confluências de mensagens em que os profissionais acreditados na profissão jornalística e cidadãos comuns concorrem na programação do sentido do espaço público. Cabo Verde não está fora desse ambiente internacional. O primeiro aspecto positivo das redes sociais que destacamos é a aproximação das vozes dissonantes, que passam a ter um espaço comum de se fazerem ouvir. A distribuição social do poder mediático vê diminuído o hiato entre os ‘donos do discurso público’ e os ‘consumidores passivos da opinião alheia’. Podemos encontrar, agora, fluxos e contrafluxos de mensagens, que transmitem diferentes correntes de opiniões. A isto, está associada uma outra vantagem fundamental: a democratização do acesso ao espaço público e da ordem de definição dos debates nos espaços coletivos partilhados. Todo esse movimento social aumentou a participação dos cabo-verdianos no espaço público, favoreceu a prática do contraditório, aprofundou o regime do escrutínio dos poderes e criou um panorama de maior responsabilização aos atores que operam no espaço público. A principal desvantagem que as redes sociais introduziram nas comunicações mediadas no ciberespaço é a aplicação do ‘descrédito’ às informações que circulam no ambiente digital, com uma crescente manipulação deliberada da opinião pública, procurando orientar o debate público e as opiniões públicas.  

EMJ — Como professor de jornalismo na UniCV, como você avalia o engajamento social na formação dos futuros profissionais da imprensa do país? O que você pode dizer sobre o futuro da nossa profissão em Cabo Verde? 

SLE – O futuro do jornalismo em Cabo Verde não depende exclusivamente do futuro da formação dos profissionais de comunicação social. Mas há outros fatores que, de uma forma indelével, acabam por determinar os caminhos que Cabo Verde percorrerá. A primeira questão é a mentalidade do povo cabo-verdiano que, na componente da cidadania e das ações cívicas, é bastante passivo. É necessário que o menos esclarecido dos cidadãos se sinta ‘o dono da coisa pública’. Também é preciso que esse sentimento se estenda a todos os cidadãos, grupos sociais, profissionais ou outros. Isso levaria a uma melhor fiscalização do exercício dos poderes. Ali sim estar-se-ia a desenhar uma sociedade alicerçada na crítica e na fiscalização permanente do exercício dos poderes públicos.

Outra questão importante é o campo da economia dos meios de comunicação social, que não está desconectada da própria economia do país e da região. A liberdade da comunicação social depende muito da liberdade econômica das empresas mediáticas. É necessário um fortalecimento do mercado, interno e externo (a nível da região), para que os produtos midiáticos produzam resultados que levem à assunção dos compromissos financeiros para o bom funcionamento das empresas mediáticas.

Ao lado das condições econômicas, políticas e sociais, alocamos a formação dos profissionais da comunicação social, que é um fator distintivo na definição da qualidade dos produtos mediáticos e do posicionamento da comunicação social no espaço público. Particularmente nesta matéria, há um trabalho que tem sido feito e que tem surtido efeito na sociedade cabo-verdiana, com o surgimento de novas gerações de jornalistas, que tendem a renovar a perspetiva sobre o exercício da profissão e que mostram uma maior abertura para uma análise crítica e aprofundada do exercício da profissão. 

Esta entrevista faz parte da série “Jornalismo no Mundo”, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor – Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.

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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: Enio OnLine.