Em um conhecido discurso, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie alerta para os perigos de se conhecer apenas a “história única” sobre diferentes povos. Narrativas dominantes são aquelas que associam continentes inteiros à pobreza, como é o caso da África, por exemplo. Em última instância, o efeito de estereótipos como esse desumaniza grupos inteiros. A história única pode até não ser sempre falsa, diz Adichie – mas certamente é incompleta.
Atentar para a riqueza de outras narrativas é também questionar valores tidos como supostamente universais. Esse é um problema urgente para a ética jornalística, defende a jornalista, professora e pesquisadora Fabiana Moraes, que leciona na Universidade Federal de Pernambuco.
Se a histórica única do continente africano remete à pobreza, é preciso ultrapassar, na cobertura jornalística sobre esse tema, a “ideia de eterna tutela”, diz Moraes. Significa tratar grupos vulneráveis como sujeitos “sem as velhas roupas de vítimas” – são diversificados, inteligentes, criativos, humanos. O jornalismo de subjetividade é um dos caminhos possíveis para essa reflexão, defende nossa entrevistada. Trata-se de “uma ferramenta, uma prática, um movimento de autorreflexão”.
Investir nesse método-teoria é apostar no potencial subjetivo dos jornalistas como agentes de sua própria fala. É refletir sobre os marcadores de raça e gênero que ainda assombram o conceito de objetividade, como desenvolve Moraes no artigo assinado com a pesquisadora Márcia Veiga. E é também assumir o caráter ativista da prática jornalística – ativismo, aqui, é entendido sem qualquer carga pejorativa, ao contrário dos olhares desconfiados que empresas jornalísticas e até mesmo o campo acadêmico lançam ao termo.
Como repórter, Fabiana Moraes já foi indicada e venceu diversos prêmios. É autora de cinco livros – o mais recente, de 2015, se chama O nascimento de Joicy e conta a história de vida da personagem homônima, uma transexual ex-agricultora.
Na entrevista a seguir, a professora discute o jornalismo de subjetividade em meio à pandemia, sua relação com a ética e como ela interpela valores morais de jornalistas.
“A dimensão ativista é algo que se dá a partir do próprio desenho da pauta.”
Recentemente, você criticou o “doisladismos” do jornalismo a partir de uma matéria da Folha – “Guerra entre ‘cloroquiners’ e ‘quarenteners’ reinventa polarização na pandemia”. Quais problemas você enxerga nessa abordagem? Ao se valer de títulos como esse, para qual leitor podemos supor que o jornal está falando?
Primeiro, essa polarização que o título traz não nasceu naturalmente, espontaneamente, mas antes fomentada e propagada pelos veículos de imprensa. Basta ver como estes construíram historicamente toda uma ideia sobre o que é ser “radical”, “militante” etc. Essa “reinvenção” do título se refere, no limite, à esquerda e direita. E onde está boa parte da imprensa – e especificamente aqui, a Folha – nesse lugar? Está no meio, no “equilíbrio”, esse lugar mítico que a imprensa tomou como seu. Radicais são sempre os outros. Essa perspectiva da “polarização” leva em seu bojo a ideia de pessoas que estão apaixonadas demais por suas ideias políticas e não conseguem tecer argumentos racionais, percebe? E quem vai definir quem é racional ou não aí? Justamente nossos colegas jornalistas “equilibrados”. É para leitores e leitoras que também são vistos a partir desse índice que o veículo se dirige.
Outra questão problemática, aliás, um tiro no próprio pé, é justapor uma recomendação básica para evitar a propagação do vírus (aquilo o que fazem os “quarenteners”) com aquilo o que foi disseminado, pela própria imprensa, como perigoso para boa parte da população (a cloroquina, defendida pelos “cloroquiners”). “Ah, mas era só o título. A matéria explica tudo isso”, algumas pessoas podem justificar. Bem, aqui eu reclamo como espanto-performance um hit das redes sociais: AMADOS? Se a prática de “passar os olhos” pelos jornais impressos era mais que comum quando estes reinavam absolutos, o que diremos da leitura mais que rápida realizada através de celulares?
Ano passado, a FGV divulgou que o Brasil tem 230 milhões de aparelhos de celular ativos – já computadores e tablets somam juntos 180 milhões. Títulos informam, títulos se reproduzem e são lidos como verdade.
O mesmo erro foi cometido durante a campanha presidencial de 2018 quando líamos títulos como “Vamos fuzilar a petralhada, diz Bolsonaro em campanha no Acre”. O título é uma mentira? Não. Mas ele pode levar a um entendimento de que a ação proposta pelo então candidato não é vista como problemática pela imprensa, que “apenas noticiou”.
Se a “intenção” da imprensa é mostrar o absurdo da situação, sabemos que, no final, foi por falar tranquilamente sobre violência (algo entendido como “espontaneidade” ou “brincadeira” por muitos) que o candidato também se elegeu – para mais tarde atacar como nunca a própria imprensa. Se o veículo “só noticia”, então podemos pensar que as notícias, as edições, podem ser feitas por robôs, não por pessoas que podem – e muitas vezes devem – interpretar o mundo no momento em que o publicizam. Jornalistas são filtros, seres pensantes. A negação disso é a negação do próprio jornalismo. Fomos forjados nas últimas décadas a não pensar, a só fazer, e isso nos levou a um cenário catastrófico.
Eu espero de verdade que os últimos acontecimentos nos levem, como pessoas que produzem representações – e não uma verdade absoluta – a entender a importância de nosso papel na sociedade. Essa reflexão atinge não só profissionais que estão nas redações, frilas, assessorias, mas também precisa ser feita pela academia, que não pode se colocar em um pedestal. Fazer e pensar são tarefas de uma mesma prática de transformação.
Você propõe o jornalismo de subjetividade como uma ferramenta que pode refinar o fazer jornalístico. Sabemos que a pandemia atinge a população brasileira de forma desigual e é atravessada por marcadores como classe, raça, gênero e orientação sexual. De forma prática, quais possibilidades você vislumbra para o enriquecimento da cobertura sobre o coronavírus a partir do conceito de jornalismo de subjetividade?
O jornalismo de subjetividade é uma ferramenta, uma prática, um movimento de autorreflexão, um caminho para deixarmos de lado, como jornalistas, uma cultura predatória sobre o mundo. É uma tentativa, com seus ganhos e seus limites. Mas me parece hoje um meio possível de avançarmos sobre um campo em ebulição, um campo que precisa reestabelecer seu velho contrato com o público.
O que o caracteriza? De maneira rápida, ultrapassar valores-notícia essencialmente hierárquicos sobre pessoas e lugares; buscar superar a perspectiva do fato extraordinário como noticiável e compreender que esse processo levou a uma “outremização” (no qual o jornalista é o “normal” que narra a vida “diferente” de comunidades, pessoas e grupos); assumir o posicionamento de quem fala, sem esconder uma fala situada – como tentam fazer justamente nossos colegas “imparciais”.
Estes são, rapidamente, alguns pontos dessa perspectiva subjetiva que não nega que o jornalismo se baseia no cotidiano e que se constrói pressupondo a objetividade. A diferença, aqui, é que não se nega o caráter subjetivo – algo, importante dizer, que ultrapassa o mero “eu”, visto que todo e qualquer subjetivo é também construído socialmente.
Com isso em mente, a cobertura sobre o coronavírus, de saída já um desafio imenso, visto que a atividade jornalística se dá fortemente no corpo a corpo, pode ser uma chance de repensarmos os lugares-comuns, as lentes, que utilizamos para falar sobre determinadas existências no mundo. Para exemplificar os jornais/sites de grande circulação, uma matéria que achei bastante interessante foi escrita por Mathias Alencastro na Folha no dia 12 de abril, quando ele já inicia o texto dizendo que o continente africano é sistematicamente mostrado como um local que precisa ser tutelado e ajudado (a matéria foi realizada após médicos franceses afirmarem que as primeiras vacinas contra o corona deveriam ser testadas na África). No entanto, que esse mesmo lugar possui especialistas de ponta que já passaram por experiências desafiadoras com vírus e são fundamentais para que alguns países africanos consigam combater com mais sucesso a disseminação.
Parece uma “bobagem”, mas vale a pergunta: quais as primeiras imagens/palavras que nos chegam quando pensamos em África? Tecnologia, especialistas e sucesso certamente não estarão, comumente, entre elas. A “culpa” disso é somente da mídia? É claro que não. Mas, para fazer nosso exercício de reflexão urgente, precisamos assumir que essa África distante, ameaçadora, selvagem, foi também vendida durante décadas pela imprensa para uma plateia ávida em permanecer no seu sofá civilizado enquanto consumia a vida “exótica” do outro. Sobre isso, vale também lembrar do excelente editorial da National Geographic no qual assumem, querendo ultrapassar essa forma de olhar, que a cobertura da publicação havia sido, até então (esperamos), racista.
No Brasil, a África sempre foi o Nordeste, os indígenas, pobres, “os outros”, lugares/grupos também percebidos como eternamente pobre e eternamente precisando de ajuda. Já há muito escrito e analisado a respeito, mas essa abordagem em parte acontece por conta dessa perspectiva jornalística que se vê universal enquanto fala de um outro diferente. Aí inclusive reside uma outra âncora da subjetividade: a prática de um jornalismo que se dá pelas semelhanças, não diferenças (total relação também com o editorial da National Geographic).
Nesse sentido, pensando a partir do contexto do coronavírus, uma cobertura mais integral vai se dar, por exemplo, se os grupos mais vulneráveis forem expostos sem as velhas roupas de vítimas, aquelas que precisam ser ajudadas. Mostrar suas ações, sua criatividade, suas inteligências, são maneiras de quebrar essa ideia de eterna tutela. Isso não quer dizer que a falta de saneamento, de água, de um lugar seguro para que esses grupos consigam viver com menos riscos, não vá ser visibilizado.
Mural, Agência Publica, Marco Zero Jornalismo, Intercept, El País Brasil, o site da piauí, são algumas das empresas/organizações que estão procurando realizar uma cobertura que ilumina esses aspectos. Também não se bastam em falas de especialistas e uma ou duas entrevistas com alguém “da comunidade”, mas trazendo os relatos diretos de entregadores de comida via aplicativo, médicas e enfermeiras que estão na linha de frente, ações cidadãs realizadas por pessoas de grupos vulneráveis. Perceba, no entanto, como ainda nos falta perna para cobrir o interior do Brasil e assim dar conta de um aspecto social mais plural. Mês passado, diversas enchentes tomaram conta do sertão pernambucano, já no contexto da pandemia, mas pouquíssimo a respeito foi noticiado.
“Eu espero de verdade que os últimos acontecimentos nos levem, como pessoas que produzem representações – e não uma verdade absoluta – a entender a importância de nosso papel na sociedade.”
Você também relaciona o jornalismo de subjetividade a uma questão ética e, inclusive, a uma postura ativista do jornalista – um termo que ainda é visto com desconfiança no meio acadêmico. De que forma o conceito nos ajuda a repensar valores que estariam canonizados na prática jornalística?
É uma questão profundamente ética, sim, a partir do momento no qual estou, a todo momento, em uma interação intensa com outras pessoas e realidades que me apresentam questões não só distintas, mas que muitas vezes se afastam bastante daquilo o que me tangencia como pessoa.
Eu lembro bastante do momento no qual acompanhei um grupo de adolescentes que eram exploradas sexualmente na zona norte de Recife para o especial Casa Grande e Senzala. Conviver com uma garota grávida que usava crack, que fazia sexo oral por 5 reais, que era espancada por homens vários, inclusive policiais que a buscavam para sexo, me causou muitos abalos. O que dizer a uma mulher gravida, adoecida pela vida sem vida, quando ela te pede um cigarro? “Olha, as pesquisas mostram que isso vai fazer mal ao seu bebê”? Veja: os policiais que deviam protegê-la a espancavam. A casa na qual ela morava não tinha banheiro, quarto, nada. Ela fazia cocô e xixi pela rua. Há alguma chance de essa garota me ouvir, com meus pressupostos possíveis graças a uma série de acessos que acumulei ao longo da vida? É claro que não.
Essas questões te interpelam o tempo todo em campo e te seguem na escrita. Elas colocam teus valores morais para brigar. É nesse contexto que a subjetividade, que preconiza esse movimento de autorreflexão contínuo, tensiona a questão da ética e faz com que jornalistas se percebam como seres dinâmicos. O ativismo, e é ótimo que você toque nesse ponto, é a grande Geni da imprensa, que se comporta como se não tivesse ideologia, orientação, perspectiva. Isso é coisa dos outros, de jornalistas e empresas menores. Novamente, temos a perspectiva universalista da “grande imprensa”. Esta, porém, lança mão de ações, conceitos, orientações, que podem ser pensadas em uma dimensão ativista.
Para ficar em exemplos recentes e correlatos: se o Intercept é “ativista” ao divulgar as mensagens presentes na Vaza Jato, como chamar o áudio vazado pelo JN no qual Dilma Roussef e Lula conversam? Por qual razão entendemos que ativismo está relacionado a um campo progressista, e nunca conservador?
Ações ativistas são pertinentes a todos os espectros ideológicos. Um exemplo: quando o JN decide fazer uma matéria sobre a distribuição de comida pelo centro de Recife para pessoas em situação de rua, afetadas pela pandemia, por que não citar que o MST participa ativamente da ação? O G1 (mesma empresa de comunicação) do Paraná mostrou a doação de toneladas de alimentos por parte do movimento social. Em contrapartida, no JN, há um quadro chamado Solidariedade S/A. É importante citar ações solidárias, mas não sejamos ingênuos: tais ações também rendem bons frutos para a imagem das empresas, assim como também muitas vezes tais doações representam muito pouco frente ao lucro das mesmas, vide os bancos.
Suprimir o MST como doador de alimentos, algo que suaviza a imagem do movimento frente ao grande público, é uma escolha editorial do JN, que, ainda assim, se autointitula de imparcial. Toda prática jornalística é posicionada e ideológica. Abrir essa verdade para leitoras e leitores é torna-los mais partícipes do processo de construção jornalística, e não há problemas nisso.
Escrevi muitas reportagens subjetivas + objetivas + ativistas. Fale com elas (sobre travestis de Recife); Os Sertões (sobre o sertão contemporâneo), O Nascimento de Joicy (sobre uma mulher que aos 51 anos realizou cirurgia para a construção de uma neovagina); Ternura e delito na carne (tatuagens de presidiários e suas histórias). Com objetividade/subjetividade, com muita apuração, observação, entrevistas, pesquisa, essas reportagens foram escritas. Também a citada Casa Grande e Senzala. A dimensão ativista é algo que se dá a partir do próprio desenho da pauta. É a pauta que vai definir inicialmente se a abordagem vai procurar avançar do senso comum ao senso crítico, aqui para pensar no Gramsci estudado por Sylvia Moretzsohn; é a pauta que vai fundamentar uma reportagem que quer se afastar de pressupostos sexistas, racistas, classistas.
Pra pensar: um dos projetos vencedores do Pulitzer este ano, de autoria da jornalista Nikole Hannah-Jones, mostra a história dos EUA contada a partir da chegada do primeiro navio negreiro, e de como o ideal de democracia no país só é plenamente possível graças aos negros e negras que, com o movimento dos direitos civis, deram outra dimensão à palavra liberdade. Aqui, muito facilmente, essa reportagem seria “ativista” demais para nossos veículos de grande circulação.
A situação trágica da pandemia também envolve o contato delicado com o outro, especialmente pessoas enlutadas. Há trabalhos jornalísticos que estão conseguindo promover uma abertura para a alteridade nessa cobertura? Quais iniciativas você destacaria?
O projeto Inumeráveis, escrito também por jornalistas, mas não só, é uma ação importante, necessária. A Marco Zero tem realizado reportagens importantes, como a dos bancários que estão adoecendo nas Caixas.
A Publica tem historicamente feito boas reportagens sobre os presídios (“A ‘pior prisão do Rio de Janeiro’ em tempos de coronavírus” e “Gestantes e mães com bebês enfrentam pandemia dentro das prisões paulistas”). A Ponte, com suas parcerias necessárias para pensar justamente nos locais pouco visibilizados nacionalmente, é outra frente jornalística importante.
Acredito que a própria tragédia trazida pelo coronavírus vá também provocar, em diferentes graus, reflexões sobre o trabalho como jornalístico e sobre as consequências desse trabalho. Há uma realidade de demissões terrível e isso inclui profissionais da imprensa. Há uma superexposição das desigualdades no mundo inteiro, e de certa maneira, o sonho dourado neoliberal mostrou sua ineficácia frente a um problema de saúde pública tão severo.
As empresas de jornalismo, em sua maioria, são formadas por pessoas assalariadas que são profundamente tocadas por essas questões. Tudo isso, acredito, faz com que o reconhecimento de si e do outro/da outra seja mais possível. Não sei se nosso apego a cânones desgastados, assim como um campo profissional precarizado, irá fazer com que esse movimento seja, de fato, realizado em profundidade.
Texto originalmente publicado em objETHOS.
***
Dairan Paul é doutorando em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisador do objETHOS.