A década que passou viu mudanças profundas nos circuitos de informação, com transformações nos hábitos de consumo de notícias e o surgimento de novas redes de comunicação. Nesse cenário, como navegar em um debate público mediado por algoritmos a atacado por redes de desinformação? Para tratar desse assunto, o Observatório da Imprensa conversou com Magaly Prado.
Magaly Prado é jornalista, professora, e pesquisadora convidada do Instituto de Estudos Avançados (IEA), da Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC, é autora de Fake News e Inteligência Artificial: O poder dos algoritmos na guerra da desinformação, em que trata da relação entre inteligência artificial e desinformação. A obra é publicada pela Almedina Brasil. É também autora dos livros Webjornalismo (2011), História do Rádio no Brasil (2012) e Ciberativismo e Noticiário (2015), entre outros.
Observatório da Imprensa – Para começar, gostaria de tratar de seu novo livro, em que fala da relação entre desinformação, inteligência artificial e os aspectos técnicos e práticos por trás dessas mudanças no ecossistema informacional. Como isso funciona?
Magaly Prado – Difícil falar em poucas palavras. O livro tem quase 500 páginas. Foi resultado do meu estágio de pós-doutorado, também no IEA. Na verdade, foi no Departamento de Informação e Cultura da Escola da Comunicações e Artes (ECA), mas minha bolsa estava ligada ao IEA. Conforme fui estudando, fui construindo os capítulos e amarrando todos os temas e tópicos. Me concentrei na questão de como funciona o algoritmo por trás dessa disseminação desenfreada das mensagens falsas no ciberespaço. É óbvio, todos vão dizer que a mentira sempre existiu, assim como a desinformação, antes das redes. Mas sabemos que o ciberespaço amplifica, acelera tudo. E isso se dá, inclusive, por conta dos robôs, dos bots, das máquinas que vão amplificar essa indústria de mensagens falsas.
Não gosto de usar o termo “fake news” – apesar do título do meu livro. Prefiro “mensagens falsas”. Não uso “informação falsa”, porque acho que informação é algo muito rico. Gosto menos ainda de “notícias falsas”, porque “notícia” tem todo um trabalho ético por trás, de apuração, e, em geral, só é publicada após ser checada (e, às vezes, rechecada).
Logicamente, pode acontecer de um jornalista profissional escrever uma fake news, uma mensagem falsa. Mas isso não é a regra. Normalmente, são pessoas com algum interesse por trás, que então formulam uma mensagem fraudulenta para atacar alguém, uma instituição, ou um conceito. E tentam assim fazer a cabeça das pessoas, modular seu pensamento e, consequentemente, seu comportamento.
É interessante a senhora abordar a questão dos algoritmos, essa automatização. Essa é uma mediação que passou, muito rapidamente, de um processo humano, com editores, toda a burocracia dos jornais, para ser realizado por máquinas “inteligentes”. Segundo sua pesquisa, a ocasional desinformação causada por essa automatização teria a ver com interesses políticos e econômicos? Ou seria algo mais a ver com falhas técnicas?
Sabemos que existem algoritmos de inteligência artificial e algoritmos que não utilizam inteligência artificial. Mesmo que eu tivesse expertise em programação, seria muito complicado entender como esses algoritmos operam, porque são linhas de código que mudam o tempo todo. Quem poderia entender melhor é quem escreveu aquele algoritmo.
Entendemos que esse conjunto de algoritmos faz raspagens dos dados que vamos fornecendo para, em seguida, poder direcionar seu funcionamento. Vamos supor que eu seja um político, ou uma pessoa que quer incutir na mente das pessoas que a vacina não faz bem. Isso será encomendado a programadores e, assim, é atingido um público determinado, específico. Por exemplo, se quero influenciar pessoas a votarem no meu candidato, seja de qual partido for, vou atrás de pessoas que estão indecisas ou vulneráveis, descontentes com determinada política vigente. Porque a pessoa que decidiu seu voto é difícil de cooptar. Então, o que vai ser feito? Serão direcionadas a essa pessoa as benfeitorias do meu candidato e o pior do concorrente, às vezes até mentiras grosseiras mesmo, para influenciar.
Se observarmos, a publicidade sempre trabalhou com isso, com recortar determinados públicos para poder atingi-los. E, agora, isso existe em uma escala muito maior, com a algoritmização e às vezes, até com microdirecionamento para conseguir realizar a modulação desejada.
A senhora vê essa indústria da desinformação como algo a rivalizar com a indústria da comunicação tradicional, da imprensa mainstream? Vê algum tipo de disputa de espaço, ou até econômica, entre as duas?
Infelizmente, sim. Porque, por um lado, há uma imitação. Grande parte do processo dessa indústria da desinformação é imitar veículos de comunicação. Se, por acaso, o YouTube derrubar esse canal porque alguém denunciou, como as leis regulatórias querem impor, o responsável volta no dia seguinte com outro nome, com outra pessoa apresentando, mas continua propagando essa desordem informacional. Ele apenas muda a cor, o visual, o layout, mas continua. É muito complicado.
Há sites que colocam um nome parecido com o da grande imprensa, exatamente para confundir. Por exemplo, se temos a Folha de S.Paulo, surge uma “Folha da Cidade”. E a pessoa pode se perder. Muitas vezes, é algo que vem do desejo da própria pessoa. Ela tem uma crença e quer que aquilo seja verdade. Não só acredita, como também quer acreditar. E, por causa disso, compartilha, manda para os amigos. Isso cria uma bola de neve.
Mesmo que existam agências sérias de checagem, que fazem um trabalho árduo, é difícil dar conta. Porque são humanos trabalhando. Apesar da existência de softwares que detectam mentiras e fakes, está cada vez mais difícil, porque a tecnologia melhora a cada dia. Antes, alguém mais atento poderia perceber algo fora do lugar, como uma imagem borrada, ou uma falta de sincronia. Hoje, com a tecnologia avançada, é mais difícil. Trabalhar com uma voz sintética, ou manipular a voz de alguém fora de contexto, também é comum.
Com isso, tudo fica borrado, a imprensa perde credibilidade e fica mais difícil ela se estabelecer. Ela precisa de audiência para se sustentar. Precisamos, cada vez mais, da imprensa séria para mostrar a verdade factual. E quem melhor faz isso são os profissionais da imprensa.
A senhora falou de uma certa dificuldade do público ao navegar por esse ambiente, que há modificações muito rápidas. Áudio, vídeo, texto vindo de WhatsApp, sites, YouTube. Como vê a possibilidade da educação midiática enquanto construção institucional, como algo a ser ensinado em escolas, ou que venha a ser parte de uma política pública?
Com certeza. Essa educação midiática tem que começar com as crianças, desde cedo. Porque você não consegue, de uma hora pra outra, trazer um espírito crítico a esses jovens. Então, desde criança, eles têm que aprender a desconfiar. Precisam saber que nem tudo o que se diz é verdade, nem tudo o que vão ver no YouTube (um ambiente muito acessado por eles, assim como certas redes, como o TikTok) é verdadeiro. Muito pelo contrário. Eles têm que desconfiar, desenvolver um espírito crítico. Nas escolas, tem que haver comparações, tem que se mostrar o que é correto em um fato. É algo que precisa ser gradual.
Podemos dizer que a educação midiática é uma das soluções possíveis. Mas não só para as crianças. Acredito que as pessoas mais velhas, que não estavam acostumadas com a internet, com o ciberespaço, são igualmente crédulas. Por exemplo, muitas dessas pessoas mais velhas estão sendo enganadas pelo WhatsApp, pelo Facebook. Nesse caso, os filhos que podem intervir, alertar, provocar um espírito crítico nesses pais e avós. Essas pessoas são vulneráveis e mais facilmente atingidas.
Agora, a educação midiática é essencial, mas sozinha não resolve a curto prazo. Ela vai fazer diferença a médio e longo prazo, e precisa ser complementada por discussões na escola, em casa, na família e entre amigos. A educação tem que estar em todos os lugares. Além disso, precisamos de regulamentações para que as plataformas possam retirar conteúdos nocivos, como discursos de ódio. Isso deve ser feito com muito cuidado, para evitar censura.
A mentira sempre existiu, mas antes ela tinha um alcance limitado. Agora, com a inteligência artificial, ela pode ser amplificada de maneiras anteriormente inimagináveis. O desafio é enorme, e todo mundo precisa estar desconfiado o tempo todo.
Agora que entramos nesse caminho sem volta e as coisas estão mudando tão rapidamente, gostaria de finalizar falando sobre ações. Que dicas, sugestões a senhora daria ao público em geral?
Primeiro, devemos verificar de onde estamos obtendo nossas informações. Certificar que as fontes são de credibilidade, que têm um nome a zelar. Se a notícia parece dúbia, não compartilhe até ter certeza. Procure órgãos confiáveis, com endereços e contatos claros, como o Estadão ou a Folha. Se algo está no “Zap”, pergunte: quem enviou isso? Se não há fonte ou autoria clara, desconfie.
Seguir pessoas com credibilidade nas redes sociais também é importante. Não devemos seguir qualquer um. O velho ditado “diga-me com quem andas” se aplica aqui. Se você segue pessoas que só falam de teorias da conspiração, isso vai te influenciar negativamente.
Nas escolas, é importante mostrar aos adolescentes que nem tudo é “treta”. Claro, eles gostam de ver tretas na internet, mas é preciso explicar que isso não pode ser o foco. Existem outras coisas boas online, e é importante que saibam disso.
Infelizmente, não há uma solução fácil. Não quero ser negativa, mas a questão é que já estamos lidando com esse problema há muito tempo. Quando comecei a pesquisar, em 2018, se falava que o assunto estava batido, mas ele continua atual, ainda no centro das discussões. Agora, com regulações a caminho e eleições se aproximando, todos estão preocupados, pois é muito difícil detectar e remover desinformação.
Serviço:
Fake News e Inteligência Artificial: Poder dos Algoritmos na Guerra da Desinformação
Autora: Magaly Prado
424 páginas
Almedina Brasil
Essa é a versão editada de entrevista originalmente publicada no podcast Jornalismo, Direito e Liberdade (disponível no Spotify)
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Tiago C. Soares é jornalista e doutor em História Econômica pela USP. É integrante do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA-IEA/USP), e pesquisador bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência), pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).