Julian Assange não será extraditado aos Estados Unidos, mas ainda está detido de acordo com um veredicto de Londres em 4 de janeiro devido à divulgação, por WikiLeaks, de cerca de 251.287 cabogramas diplomáticos, mais de 400.000 relatórios secretos do exército dos EUA da Guerra do Iraque e 90.000 e da Guerra no Afeganistão, revelando incontáveis baixas de civis pelos militares dos EUA, a corrupção desenfreada dos EUA em todo o mundo espionando, boicotando governos democráticos, bem como políticas sujas em vários países.
Segundo o veredicto da juíza britânica que pronunciou a sentença no início deste ano, seria injusto e opressor extraditar o fundador de WikiLeaks.
“Assange sofre de um transtorno depressivo recorrente. (…) Possui pensamentos suicidas e seria‘ obstinado ’em uma tentativa de acabar com sua vida,” sentenciou Vanessa Baraitser na corte da capital inglesa.
Um dos principais motivos da prisão de Assange, por supostamente ter danificado a segurança dos EUA.
“A única questão de segurança nacional que se coloca é a proteção do poder do Estado da exposição à cidadania”, diz Noam Chomsky na entrevista a seguir, concedida de sua residência em Tucson, Arizona, ao jornalista brasileiro Edu Montesanti.
Edu Montesanti — A juíza Vanessa Baraitser finalmente decidiu não extraditar Julian Assange para os Estados Unidos, devido a problemas mentais: grande vitória para o jornalista australiano. Por outro lado, ao longo do processo a juíza condenou o trabalho de WikiLeaks de forma muito dura. Ela também disse que está “satisfeita com a existência de fundamentos substanciais para acreditar que se o senhor Assange for libertado hoje [da prisão de Belmarsh, em Londres], ele não se apresentaria ao tribunal para enfrentar o processo de apelação”. O senhor apontou em uma mensagem privada para mim, professor doutor Noam Chomsky, minutos após a decisão judicial dizendo que sim, havia o veredito sido uma grande vitória para Assange, mas não para a imprensa livre: “Vitória pessoal para ele, o que é ótimo. Mas outro duro golpe à liberdade de imprensa devido à natureza do veredito”, o senhor respondeu à minha mensagem, na qual eu comemorava com o senhor a decisão do tribunal de Londres. O fundador do WikiLeaks continua preso. Por favor, comente a decisão do tribunal e o que esperar em relação ao futuro do Julian.
Professor Doutor Noam Chomsky — A decisão do tribunal foi uma vergonha e, por causa dos precedentes, é perigosa. Houve um raio de luz: Assange não será enviado para apodrecer pelo resto da vida em uma prisão nos Estados Unidos.
Não me surpreenderia, entretanto, se soubéssemos algum dia que a juíza Baraitser tomou essa decisão como um favor a Biden, que será poupado do constrangimento de um escândalo internacional sobre uma sentença de prisão perpétua para Assange.
Além disso, a decisão permite considerar Assange um doente mental, de modo que o que ele divulgou ao público pode ser julgado como produção de uma mente doente.
O resto da decisão de Baraitser foi uma capitulação completa aos EUA. Cada cobrança do governo dos EUA é aceita sem comentários, por mais absurdos que sejam. As refutações detalhadas nos depoimentos de defesa são totalmente ignoradas.
Talvez possamos atribuir esses procedimentos judiciais ao “relacionamento especial”, o eufemismo utilizado para o declínio da Grã-Bretanha como líder mundial transformada em vassalo de seu sucessor, neste terrível papel que desempenha.
Edu Montesanti — Os promotores dos EUA indicaram que apelarão contra a decisão, e o Departamento de Justiça dos EUA afirmou que ficou “extremamente decepcionado” com a decisão da juíza britânica, acrescentando: “Continuaremos buscando a extradição do senhor Assange para os Estados Unidos”. O que esperar do governo Biden em relação ao caso Assange? Não é perturbador o fato de que o presidente eleito Biden foi vice de Barack Obama, cuja administração, apesar de ter se recusado a processar Assange, foi a que mais perseguiu denunciantes na história dos EUA?
Professor Doutor Noam Chomsky — Meu palpite é que, secretamente, o Departamento de Justiça ficou bastante satisfeito com a decisão e pode encontrar algum pretexto para deixar Assange de lado – talvez concordando com o julgamento de que ele sofre de problemas psiquiátricos.
O histórico de Obama a esse respeito foi vergonhoso. A Lei de Espionagem foi promulgada durante a Primeira Guerra Mundial para punir espiões. Não foi testado no tribunal e poderia, muito bem, ser considerado inconstitucional se fosse.
Obama inovou ao usá-lo mais do que todos os governos anteriores combinados, não contra espiões, mas contra “vazadores” que estavam liberando material classificado para publicação.
Em teoria, o material é classificado por “motivos de segurança”, mas a inspeção do rico registro de material desclassificado mostra que a “segurança” em questão é muito comumente a segurança do poder do Estado de seu inimigo doméstico, a sociedade local.
Essas criaturas irritantes devem ser mantidas no escuro sobre o que está sendo feito em seu nome, embora não de acordo com seu interesse.
Os fatos básicos não escaparam aos estudos. Quarenta anos atrás, o ilustre cientista político e conselheiro do governo americano, Samuel Huntington, Professor de Ciência do Governo em Harvard, escreveu que “os arquitetos do poder nos Estados Unidos devem criar uma força que pode ser sentida, mas não vista. O poder permanece forte quando permanece no escuro; exposto à luz solar, começa a evaporar”.
Obviamente, Obama entendeu bem esse princípio. Talvez ele tenha aprendido isso em seu tempo como estudante em Harvard.
O senhor costuma dizer que o caso de Assange não é uma questão de segurança nacional dos EUA, como alegado pelo regime de Washington, mas possui, isto sim, motivação política. Por favor detalhe sua opinião a esse respeito.
A única questão de segurança nacional que surge é a proteção do poder estatal da exposição aos cidadãos.
A perseguição a Assange por esta “violação de segurança” é motivada politicamente, virtualmente por definição.
Edu Montesanti — O senhor disse que “Julian Assange não deveria ser objeto de audiência do grande júri, mas sim receber uma medalha. Ele está contribuindo com a democracia”. Como o senhor avalia o fato de que a mídia americana e mundial, há muito, esqueceu-se completamente de WikiLeaks? Por que o senhor acha que isso está acontecendo, uma total ausência na mídia, tanto a tradicional quanto a auto-proclamada alternativa em muitos casos, das revelações mais importantes na história do jornalismo mundial em relação a questões muito sérias, sobre os altos escalões da política dos EUA? O senhor escreveu certa vez: “Ao demonizar o mensageiro, os governos procuram envenenar a mensagem” e, “na melhor das hipóteses, debate público sobre as questões reais será desvirtuado; na pior das hipóteses, a opinião pública será manipulada a favor do establishment”. Quanto a mídia mundial, principalmente a americana, tem cooperado para colocar em prática essas duas questões apontadas pelo senhor?
Professor Doutor Noam Chomsky — A mídia americana, como a de outros países, ficou feliz em usar materiais fornecidos por WikiLeaks, mas deu as costas a Assange e aderiu — muitas vezes liderou — aos ataques destinados a desacreditá-lo.
A mídia britânica, em geral, tem sido ainda mais covarde e, às vezes, descia à mera vulgaridade. Isso inclui a tolerância da mídia em relação à tortura de Assange ao longo dos anos, que não preciso revisar. Essa perseguição brutal, é um escândalo internacional.
O crime de Assange é ter realizado o trabalho de um jornalista sério: fornecer ao público informações críticas, às quais o governo dos Estados Unidos não querem que as sociedades tenham acesso.
Não menos vergonhoso, é o fato de que muitos dos que usam avidamente suas revelações não estão se levantando para defendê-lo.
A integridade básica de uma imprensa livre e independente está sob ataque, neste desempenho vergonhoso.