Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O xamanismo como inspiração para novas formas de pensar o jornalismo

(Lara Linhalis Guimarães. Foto: Arquivo Pessoal)

Lara Linhalis Guimarães é professora de Jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto. É integrante do grupo de pesquisa Quintais: Cultura da Mídia, Arte e Política e do Laboratório de Jornalismo e Narrativas Audiovisuais, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao jornalista Pedro Varoni, Lara fala sobre suas pesquisas, que propõem o diálogo entre as práticas xamânicas de matriz indígena e o exercício do jornalismo.

Essas inquietações foram despertadas durante o doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando se dedicou a pesquisar o midiativismo das manifestações de 2013. As chamadas “jornadas de junho” foram o epicentro de mudanças políticas que impactaram o jornalismo. A grande mídia cobriu as manifestações de longe, apartada do acontecimento. De outro lado, assistimos à imersão total na ação daqueles que fizeram as transmissões ao vivo, de dentro das manifestações em 2013. Essa dicotomia fez a pesquisadora pensar num deslocamento: nem tão de dentro, nem tão de fora.

A resposta para esse impasse veio num curso de aperfeiçoamento em cultura e histórias do povo indígena na Universidade Federal de Juiz de Fora. Lara era tutora do curso e conheceu Ailton Krenak, liderança indígena e escritor. Através dele, aproximou-se do perspectivismo ameríndio, teoria do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. A partir daí, passou a refletir sobre uma analogia entre os deslocamentos perspectivísticos próprios do xamanismo e a tradução de mundo almejada pelos jornalistas.

Mas não espere dessas reflexões manuais para um novo jornalismo. Trata-se, antes, do convite a pensar novos modos de mediação – o repórter xamã é um personagem conceitual, no sentido atribuído pelos filósofos Deleuze e Guattari. Afinal, como escreve Lara em um dos seus textos, “o nascimento de uma nova ontologia é questão de sobrevivência: do mundo e do jornalismo”.

O contexto contemporâneo tem imposto desafios epistemológicos ao jornalismo. Ainda é possível defender as ideias de imparcialidade e objetividade atualmente?
Primeiro, precisamos pensar como aquilo que se convencionou chamar de “o” jornalismo – o hegemônico, aquele legitimado na prática profissional, ao menos como modelo a ser seguido – abriga dessas ideias e se esse jornalismo dá conta da multiplicidade de mundos que se proliferam e são postos em tensão no contexto contemporâneo. Esse jornalismo – o legitimado – é filho da modernidade, logo, de uma visão cientificista de mundo: aquela que separa natureza de cultura, fato de versão, realidade objetiva de representação. Por essa via, caberia ao jornalista a tarefa árdua de buscar sempre ver os acontecimentos de uma perspectiva distanciada, ou atuar “do lado de fora” dos fatos, exercendo uma postura imparcial a respeito, ao menos como meta. Esse ideal de conhecimento está baseado na crença de que conhecer é objetivar, ou seja, despir os fatos de suas subjetividades, a fim de conhecê-los melhor. A questão que se coloca é: o que esse jornalismo, com base nesse ideal, tem produzido em termos de conhecimento sobre o(s) mundo(s) contemporâneo(s)? Vejo pouca coisa potente e assumo o risco da generalização quando digo isso. Assim como vejo pouco promissor o que convencionou-se chamar de jornalismo ativista: aquele que prega a inserção radical na ação, ou a valoração por si só positiva das subjetividades, uma vez que a presunção de verdade prevalece (agora “do lado de dentro” dos acontecimentos). Penso ser urgente ativar o pronome indefinido quando tratamos de jornalismo – um jornalismo -, pois assim, ao menos potencialmente, abrimos espaço para pensar – e encontrar – outros jornalismos possíveis, que se sustentem a partir de outros ideais de conhecimento, outras formas de tradução ou maneiras de contar histórias. Uma pista seria buscar, em suma, outras ontologias – outros modos de ser e estar no mundo – para inventar um jornalismo (não “o” jornalismo) que abrigue a diferença, ao invés de silenciá-la, que faça dialogar perspectivas, atuando, de fato, os ou as jornalistas como mediadores de mundos. Se o jornalismo, aquele do artigo definido masculino, não fizer isso (se ele não se mover pelo terreno da inconstância do ser, virando “um”, “uma”, nem que seja pra voltar a ser “o”), penso, em tom melancólico mesmo, que haverá um momento em que os discursos, no geral, serão produzidos apenas para o espelho – para os mesmos, para quem pensa igual, vive igual. E aí vem o risco de proliferação de narrativas totalitárias, e, como já temos visto, da ascensão da intolerância em diversos níveis, e essas narrativas terão mais impacto na vida das pessoas do que nossas histórias contadas a partir de técnicas de verificação precisas. Há que se buscar outras maneiras de conversar e suspeito que, para isso, o filho da modernidade tenha que sair da casa onde nasceu.

As manifestações de 2013 trouxeram à tona a necessidade do jornalismo brasileiro ser mais plural, a partir da ideia da multiparcialidade defendida por coletivos como o Mídia Ninja. O que se viu na sequência foi um modelo de jornalismo ativista, convivendo com a mídia conservadora mainstream. Há um terceiro caminho para além dessa dualidade que tem marcado a vida social e a imprensa brasileira?
O que eu verifiquei a partir da minha pesquisa de campo junto a coletivos de midiativismo no Rio de Janeiro – especialmente junto ao grupo que se autodenominou como Mídia Ninja, vinculado ao coletivo Fora do Eixo -, é que a ideia de inserção radical na ação, à primeira vista muito potente quando a gente pensa no modo como a mídia tradicional vinha cobrindo as manifestações (do alto dos edifícios, dos helicópteros ou numa performance falseada de um ou outro repórter no meio dos manifestantes), trazia consigo a mesma presunção de acesso privilegiado ao mundo, ao acontecimento, que as narrativas produzidas pela mídia tradicional. A questão é que essa presunção não evoluiu para uma conversa entre diferentes perspectivas. O que se viu foi a proliferação de contra-narrativas, valoradas positivamente por afirmar algo “contra” um discurso hegemônico. De fato, a existência e a visibilidade dessas contra-narrativas já eram por si sós um ato de resistência, naquele momento. Lembro-me bem de vários entrevistados que relataram que decidiram transmitir ao vivo os protestos porque o que eles viam na televisão ou liam nos jornais não correspondiam ao que eles vivenciavam enquanto manifestantes. Entretanto, narrativas e contra-narrativas se encaixam bem em esquemas maniqueístas, para o bem e para o mal. Naquele momento da minha pesquisa, comecei a flertar com correntes contemporâneas da antropologia, que buscavam trilhar o seguinte caminho no que diz respeito ao conhecimento sobre a humanidade: para entender sobre nós – inclusive sobre a própria ideia de humanidade, que é também uma construção – precisamos ir até nossos outros! E quem são nossos outros? Aqueles que sustentam suas vidas a partir de outros modos de ser e estar no mundo, de outras ontologias. Naquele momento, também comecei a acessar indígenas que se propunham a dar visibilidade aos seus modos de pensar o mundo, como Davi Kopenawa, Kaká Werá, Álvaro Tukano e especialmente Ailton Krenak, importante liderança indígena, jornalista e profundo conhecedor da cosmologia ameríndia. Por esse caminho, iniciei a tessitura do que, à primeira vista, me pareceu um potente devaneio: criar uma analogia entre o tornar-se outro, próprio dos xamãs em seus deslocamentos perspectívicos, e o movimento de tradução de mundos almejado pelos jornalistas. Os xamãs, ou pajés, a grosso modo, são aqueles que conseguem fazer dialogar espécies diferentes de seres – plantas, animais, espíritos, aquilo que a gente chama de fenômenos da natureza ou ainda o que a gente entende como seres inanimados, como montanhas, pedras, objetos, etc. Para que esse tipo de tradução seja possível, a alteridade – a diferença – torna-se constitutiva do eu, num movimento em que tanto o xamã quanto a espécie com a qual se quer dialogar entram em um processo de transformação mútua. Cada um passa a “funcionar” como o outro, a partir de um ideal de conhecimento em que, como acredita o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, conhecer é subjetivar, personificar, auferir o máximo de intencionalidades daquele – ou daquilo – que se propõe a conhecer. Esse devir-outro, ou “ver como”, distancia-se do dualismo lado de fora/lado de dentro, o qual observei no âmbito das manifestações de junho de 2013 e no eco ruidoso desses protestos ao longo da Copa de Mundo de 2014. Seria um movimento de tradução que é, ao mesmo tempo, lado de dentro e lado de fora. E, a partir daí, comecei a buscar inspiração no xamanismo para pensar a tradução de mundos realizada pelos jornalistas. O momento agora é de traição da analogia inicial a qual me propus, para pensar novas combinações com vistas a potencializar o “ver como” dos jornalistas.

O seu trabalho propõe como modelo um diálogo do jornalismo com a teoria do perspectivismo ameríndio do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. É possível resumir essa proposta?
É importante dizer, de antemão, que a pretensão de esboçar um novo modelo de jornalismo a partir do xamanismo é menos importante, a meu ver, do que pensar o jornalismo a partir do xamanismo. Ou, mais precisamente, pensar um jornalismo a partir da ideia de xamanismo que construí, muito especialmente, a partir de Davi Kopenawa e Viveiros de Castro. É este antropólogo, por exemplo, que vai entender os xamãs como os mestres do esquematismo cósmico. A partir do estudo desses povos é que Viveiros de Castro fez surgir o conceito de perspectivismo ameríndio. O conceito abriga a crença, partilhada por povos indígenas amazônicos, de que o mundo é habitado por diferentes tipos de seres (humanos e não-humanos) que são sujeitos, ou seja, têm capacidade de agência sobre o mundo, são pessoas (mesmo que pessoas não-humanas), agem com base em intencionalidade e reflexividade. Nesse conceito está também a ideia de que cada um desses seres se vê como humano, vendo todos os outros, então, como não-humanos. Isso porque, em algumas cosmologias não ocidentais, prevalece a ideia de que há uma humanidade moral comum a todos os seres (uma só alma, uma só cultura), os quais se diferenciam então pelo corpo (pela “natureza”). Ser humano, assim, seria uma posição ocupada somente em relação a um outro, o que nos faz mirar a ideia de humanidade como capacidade, não como condição essencial. E põe no horizonte, ainda, a multiplicidade potencial de condições de existência. Pois bem. O deslocamento xamânico ameríndio almejaria, então, a interlocução transespecífica, aquela entre diferentes espécies de seres, vendo os não-humanos como eles se veem, ou seja, como humanos. O xamã seria aquele autorizado a cruzar essas perspectivas múltiplas (os diferentes corpos, as diferentes naturezas), desenvolvendo sua diplomacia, a sua arte política, entre variadas espécies de seres que habitam a zona de uma humanidade moral (uma só cultura). A tradução levada a cabo pelos xamãs almejaria o quem das coisas, para então chegar ao por que (ou aos porquês). Isso em razão de o xamanismo cultivar um ideal epistemológico, como já mencionei anteriormente, em que conhecer é personificar. Uma boa interpretação xamânica, assim, é aquela que, segundo Viveiros de Castro, consegue revelar um máximo de intencionalidades em cada evento. Pois bem, interessa então navegar (e uso esse verbo intencionalmente, porque minha ação é justamente essa) pelo movimento de tornar-se outro próprio do xamanismo, a fim de inspirar o que chamei inicialmente de jornalismo de perspectivas, mas pouco importa o nome. Para a antropóloga Aparecida Villaça, que analisou a relação entre xamanismo e contato interétnico a partir da etnografia wari’ (um grupo de língua Txapakura da Amazônia Meridional), o movimento de tradução dos xamãs é análogo a um jogo de espelhos, em que imagens são refletidas ao infinito. Talvez aí esteja a chave para pensar o movimento de tradução no jornalismo. Veja bem, ela diz, em um texto publicado no ano 2000: “O que ocorre é uma dupla inversão: um homem destaca-se do grupo tornando-se animal e adotando um ponto de vista humano (wari’) para que o resto do grupo, permanecendo humano (Wari’), possa adotar o ponto de vista animal”. O que me ocorre é a potência desse jogo de espelhos para pensar o modo como o jornalismo – especialmente os ou as jornalistas – acessa e faz conversar mundos tão diferentes. Também me leva a pensar que tipos de narrativas são mais potentes para que a “aldeia” do ou da jornalista – ou seja, seu público – possa adotar um outro ponto de vista sem deixar de ser quem se é, de modo que essas narrativas atuem impelindo a diferença, ao invés de se assentarem na busca por um sentido único, consensual, sobre as coisas do mundo. Tudo isso ainda são esporos jogados ao vento de alto de montanha (rumo incerto), não há pretensão de delinear qualquer modus operandi aos jornalistas que queiram se tornar um pouco xamãs, um pouco jornalistas. Talvez o caso agora seja pôr em cena a força do jornalista-xamã como personagem conceitual, no sentido que dão ao termo Gilles Deleuze e Félix Guattari, no livro O que é filosofia?: não uma personificação abstrata, tampouco uma alegoria, mas o sujeito através do qual o pensamento se movimenta, inclusive em suas inconstâncias. É interessante pontuar que, nesse mesmo livro, os autores dizem que “na enunciação filosófica, não se faz algo dizendo-o, mas faz-se o movimento pensando-o, por intermédio de um personagem conceitual”. É ele, digamos, quem vai operar, realizar os conceitos. Por isso eu frisei, no início desta resposta, que não estou interessada, não mais, em modelos, mas em modos outros de pensar o jornalismo.

Como o jornalista pode se colocar no ponto de vista do outro e, ao mesmo tempo, ter um distanciamento para fazer o seu trabalho?
Uma pista emerge da ideia de que uma boa tradução é aquela, como eu disse, que revela o máximo de intencionalidades, buscando, primeiro, o quem das coisas (personificar para conhecer). A imagem do jogo de espelhos, já mencionada, também faz emergir questionamentos potentes: o que ou quem eu vejo quando estou diante de um entrevistado, de uma entrevistada? O que reverbera de mim (e da cultura organizacional, profissional, etc) nas questões que proponho? As respostas são ecos das minhas perguntas, estão aprisionadas em quais constrangimentos (um outro jogo de espelhos), são expressões de quais desejos contidos? O que eu quero ver no espelho e o que eu poderia ver caso pensasse de outra forma? Outro movimento potente é aquele inspirado em Roy Wagner, antropólogo que, na década de 1970, lançou o livro A invenção da cultura. Ele vai dizer que a cultura é inventada, é precipitada, a partir do choque cultural, do encontro com a diferença. Antes disso, segundo ele, não há cultura, porque, dizendo a partir de uma metáfora, não há espelho a partir do qual vemos a nós mesmos. E esse espelho é o outro: um outro modo de pensar, de agir, de se comportar, diferente do nosso, o qual torna visível então nosso modo de pensar, de agir, de se comportar – nossa “cultura”. Pois bem. Esse movimento implica tanto a visibilidade quanto a plausibilidade, segundo Wagner: primeiro nossa cultura se torna visível a partir do encontro com um outro modo de agir no mundo e aí buscamos analogias para entender o outro a partir dos nossos próprios termos; depois, começamos a considerar plausível um outro modo de agir no mundo, diferente do nosso. O lance é que esse processo – que nada mais é do que um movimento de tradução -, para que não fiquemos ao nível das analogias, deve deslizar pelo caminho da traição – de si e do outro. Visibilidade, plausibilidade e traição são peças que podem ser acessadas na formulação de algo inspirador ao trabalho dos jornalistas. A traição seria o momento em que acionaríamos a lógica da predação – constituir-se a partir de um outro -, lógica essa a partir da qual se movem tantas relações entre seres nas cosmologias ameríndias, inclusive a conversa que o xamã estabelece em sua tarefa de traduzir mundos. Algum jornalista poderia me perguntar: como o trabalho jornalístico pode ser conduzido a partir dessa tríade? E eu retornaria, a ele ou ela, uma pergunta similar: inspirado(a) por esse “pensar”, como você poderia conduzir a maneira como dá visibilidade aos acontecimentos do mundo, emprega técnicas para que sejam compreensíveis ao seu público e cuida para que os “termos” dos acontecimentos (o quem das coisas) não sejam somente reflexos dos seus termos – para que outros modos de pensar e de agir sejam visíveis e plausíveis para seu público? Obviamente, minha pesquisa não tem a pretensão de funcionar como manual de conduta aos repórteres de rua. Quem poderá fazer precipitar algo potente a partir dessa inspiração são aqueles que atuam ou pretendem atuar na prática profissional, considerando a necessidade de que essas discussões sejam postas em trânsito tanto nos mercados quanto na academia, especialmente na universidade pública, locais de formação de jornalistas e jornalismos.

É possível citar alguns exemplos de trabalhos jornalísticos em que você percebe evidências do repórter-xamã?
Ao longo do meu trabalho de campo no doutorado, imaginei inicialmente que os streamers, aquelas e aqueles que transmitiam ao vivo de dentro das manifestações, seriam protótipos do que você nomeia repórter-xamã. Escrevi um artigo sobre isso, publicado na Galáxia, revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Depois, acabei percorrendo outras evidências, fiz um movimento de retorno ao new journalism – essa nomenclatura que a gente usa quando queremos falar dos escritores e das escritoras norte-americanos(as) que, por volta dos anos 1960, buscavam utilizar técnicas da literatura na apuração e composição das narrativas jornalísticas, a exemplo de Gay Talese e Truman Capote. Aqui no Brasil, me trouxe pistas dessa “incorporação” – talvez lugar-comum quando se pensa em reportagem em profundidade – a jornalista Eliane Brum, por fazer jornalismo baseada mais na escuta do que na fala, ao menos assim me parece. Mais recentemente, conheci Fabiana Moraes, que, em seu O nascimento de Joicy, trouxe à tona a complexa relação que estabeleceu com sua personagem na feitura da série de reportagens publicada em 2011 no Jornal do Commercio. Neste livro de Fabiana, inclusive, ela cunha o termo “jornalismo de subjetividade”, bastante potente. De todo modo, não sei se é o caso apoiarmo-nos, agora, fervorosamente em nomes que, um pouco mais ou um pouco menos, se adequam à ideia de um jornalismo de perspectivas por incorporar uma certa faceta do repórter-xamã – estaríamos fadados, talvez, a permanecer ao nível das analogias. E o que eu quero é avançar na traição. Também fatalmente deixaria mais de uma penca de gente boa fora de vista. Talvez seja o caso pensar, primeiro, que tipos de posturas fazem parte da caracterização desse personagem conceitual e quais narrativas essas posturas podem gerar, potencialmente (o que ele pensa, como ele age e como ele diz o que pensa). No que diz respeito às narrativas, aquelas que chegarão ao público e que tem a pretensão de apresentar a esse público uma perspectiva outra (retomando o jogo de espelhos, mencionado anteriormente), há pistas na linguagem transmídia, por dar relevo à vida como rede; na utilização do diálogo realista; na descrição cena a cena; nas mudanças de ponto de vista, transitando o repórter por entre as “cabeças” dos personagens; nas expressões metafóricas, na construção de alegorias como estratégia de leitura das coisas do mundo. Enfim, narrativas que sejam mais “abertas”, menos indiciais, em que o equívoco fundante de toda conversa seja posto em cena, e não silenciado. E isso tudo me reconduz ao modo como Ailton Krenak, nas conversas que tivemos presencialmente, me “explicava” sobre este ou aquele tema que discutíamos: através de pequenas histórias. E foi assim que, numa manhã de 2015, conversamos sobre jornalismo, sem falar exatamente de jornalismo. Há um texto que publiquei, em 2017, a partir desse encontro, chamado Nada mais próprio que o outro. Tudo isso são pistas a serem seguidas.

Como aplicar a ideia do jornalismo perspectivista para mudanças no ensino e práticas profissionais?
Diria que, no que diz respeito ao ensino, o que evoca, de antemão, a ideia de um jornalismo perspectivista é menos um modelo a ser ensinado e mais uma provocação para que docentes e estudantes possam imaginar o jornalismo como vários, portando uma coleção infinda de “óculos”, fazendo referência a Bourdieu, com os quais se pode admirar uma paisagem que se perde no horizonte, um cenário que já não é mais o mesmo depois de um pequeno suspiro apenas. E isso é muito difícil quando se tem uma pressão constante por adequação dos currículos dos cursos, da conduta e dos desejos dos professores e professoras, bem como das expectativas dos alunos e das alunas às exigências de um mercado que se quer um. É quase comovente, de tão ingênuo, quando ouço um estudante dizer algo do tipo: “mas para que isso irá me servir se ‘lá fora’ se o que se exigirá de mim é outra coisa?”. E fico pensando no tanto de paisagem que se perde olhando um ponto fixo… Considerando também esse nosso contexto brasileiro, em que o ensino superior é regido por um ministério pouco preocupado com o pensamento que liberta, eco que é de um governo enlouquecido por sua imagem num espelho único, fica ainda mais difícil pensar em estímulos a pluralidades de modos de pensar, de formas de ver. Donna Haraway, em seu Manifesto ciborgue, defende que “uma visão única produz ilusões piores do que uma visão dupla ou do que a visão de um monstro de múltiplas cabeças”. Essa crença de Haraway nos faz ficar ainda mais alertas em relação ao que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie chama de perigo de uma história única, ou, dizendo de outra maneira, ao que é precipitado quando estamos aprisionados em certa perspectiva de mundo: o que se produz é uma ilusão porcamente distorcida de nós mesmos, onde o divergente precisa ser silenciado, humilhado, apagado. Mas é na micropolítica que nosso olhar pode voar, ainda. E, apesar dos incentivos cada vez mais amputados por represálias ideológicas em formato de cortes – travestidos no discurso oficial de “contingenciamentos” -, a universidade ainda é o lugar por excelência da pesquisa, e como a temos feito! Em se tratando de pensar o jornalismo em sua multiplicidade de perspectivas, em suas urgências e torrencialidades, cito o Grupo Quintais: Cultura da Mídia, Arte e Política, do Departamento de Jornalismo da Ufop-MG, onde leciono, que vem se debruçando justamente em construir reflexões sobre o mundo amparado por modos não hegemônicos de conhecer e de existir, o que por si só já é um ato de resistência. E esse é um tipo de conversa a que os alunos e alunas começam a ter acesso, a participar, a se interessar, em várias universidades do país e do mundo. Somos muitos. E são esses estudantes, creio fortemente, que farão existir um mercado no plural, imaginando e exercitando cotidianamente jornalismos de perspectivas.

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Pedro Varoni é jornalista.