Publicado originalmente no Medium
A carreira profissional do jornalista Paulo Markun se confunde com a história da televisão paulistana. Na profissão desde 1971, trabalhou em quase todas as emissoras de televisão de São Paulo, da TV Cultura à Rede Globo, passando por Bandeirantes, Manchete, Record, TV Brasil, TV Gazeta, Abril Vídeo, assumindo vários cargos, de repórter a presidente.
Autor de quinze livros e tendo dirigido mais de sessenta documentários, Markun continua produzindo programas, filmes e séries, como O Começo do Avesso, sobre as manifestações de junho de 2013, que está realizando para o CineBrasil TV. Recentemente deu início ao blog Em Tempo, na Folha de S.Paulo, sobre terceira idade. Apesar de seu renome, admite que a situação está difícil para todos. “Cada dia o mercado formal do jornalismo tradicional em grandes redações está mais difícil, ainda mais para um cara que tem 66 anos, como eu. Continuo insistindo nesses projetos autorais”.
Dentre as várias experiências, entretanto, afirma que algumas foram mais satisfatórias. “Certamente, o trabalho mais gratificante, mais compensador, foram os dez anos em que fiquei no Roda Viva, o mais antigo e mais relevante programa de entrevista da TV brasileira”.
Questionado sobre o cenário do telejornalismo diante da internet, Markun diz que, se por um lado existem atualmente múltiplos atores e criações feitas com tecnologias mais acessíveis e custos muito baixos, por outro as produções para a internet enfrentam problemas de conteúdo e financiamento. “Os crowdfundings não chegam a garantir recursos suficientes porque as pessoas não querem pagar”.
Markun reflete também que talvez o jornalismo esteja voltando a adotar uma postura mais opinativa, como no século XIX, quando as publicações eram mais panfletárias. Para ele, “a internet não se apresenta para reflexões mais aprofundadas e a circulação de opiniões é cada vez mais segmentada. Não há espaços de debates na internet”, defende.
Por fim, aconselha os novos jornalistas que estão se formando: “Desenvolvam narrativas próprias. Existem áreas de atividade social, políticas, nichos da sociedade que valem a pena investir como campo de atividade com custos baixos e novos formatos”.
Você já passou por quase todas as TVs de São Paulo, com exceção do SBT e RedeTV! e também exerceu vários cargos, de repórter a presidente da TV Cultura. Quais diferenças fundamentais percebeu entre as emissoras?
Eu trabalhei em três tipos de emissoras. As emissoras públicas (TV Cultura e TV Brasil), onde os jornalistas e produtores têm mais liberdade de abordar certos temas porque a pressão da audiência não é tão grave quanto nas emissoras comerciais. Ao mesmo tempo, nas públicas você tem um resultado muito pouco compensador por questões financeiras e de audiência. Às vezes, você faz um projeto muito interessante e pouca gente assiste. Eu incluiria nesse segmento também o SESCTV e o CineBrasil TV.
O segundo grupo é o das TVs comerciais: Globo, Record, Bandeirantes… trabalhei na Record antes da igreja (Universal), no tempo do Paulo Machado de Carvalho. São canais que estão dentro de uma lógica de mercado, comercial, sinal aberto, portanto têm que falar para todo mundo e se sustentam se tiver audiência.
E o terceiro grupo é o que foram a TV Manchete e a Abril Vídeo. Eram canais que, embora tivessem o espectro aberto, tinham uma segmentação cultural e econômica do seu público mais qualificada. Tanto um quanto o outro existiram numa época quando não havia canal a cabo, então você tinha um público mais elitizado, ou mais sofisticado intelectualmente, e o canal vivia nesse segmento.
Dentro dos cargos que você exerceu, de repórter — a linha de frente do jornalismo — até cargos administrativos, como presidente da Fundação Padre Anchieta, em que posições você se sentiu mais confortável e o que você trouxe de um cargo para o outro?
A reportagem é indiscutivelmente o carro-chefe do jornalismo em qualquer circunstância. Nada substitui a observação, o contato direto com o fato e a narrativa que você pode construir ouvindo as pessoas, verificando as coisas que estão acontecendo e mesmo sendo testemunha.
Talvez a experiência de reportagem dê… tenho minhas dúvidas hoje em dia… para quem assume um papel de administração, uma certa facilidade de sintetizar coisas complicadas em curto espaço de tempo. Isso do ponto de vista executivo é importante. Quando eu digo que tenho as minhas dúvidas, é porque considero que a minha experiência como gestor de uma TV não foi bem sucedida. Posso atribuir isso, obviamente, a inúmeros fatores, boa parte dos quais não são da minha responsabilidade exclusiva.
A gestão de uma TV, notadamente de uma TV pública, tem um componente político muito presente, muito complicado, muito dominante. Outras questões, como se você vai fazer um programa mais popular ou menos popular, se vai falar de jornalismo ou programa infantil, se vai falar para o público inteiro ou para apenas um segmento, se vai ser mais ousado ou menos… tudo isso está subordinado a injunções políticas, porque a TV pública vive de recursos estatais, governamentais, e o governo tem uma lógica na qual a TV pública não se encaixa no Brasil.
Mas as emissoras comerciais também têm problemas. Muitas delas pertencem a grupos familiares e também ficam reféns dos anunciantes. Se você tem que olhar primeiro para a satisfação do anunciante, você acaba fazendo certas concessões que não deveria. É uma discussão muito complicada e que não tem solução. Não há uma fórmula bem-sucedida.
Nunca o Brasil teve uma TV pública muito relevante. Houve exceções em momentos específicos, particularmente na TV Cultura lá atrás, quando não havia TV a cabo e quando os recursos públicos eram mais generosamente colocados na emissora. Não se deve creditar o êxito que houve no passado apenas ao talento indiscutível dos participantes, mas é o cenário que estava colocado.
Isso tudo eu estou dizendo porque não adianta você ter uma experiência de gestor, seja ela de jornalista ou não, ou do melhor MBA do mundo. Quem for cuidar de um projeto como esse enfrentará problemas e, portanto, vai ter que se envolver nas questões políticas para que, eventualmente, um governante acredite na TV pública como um instrumento de conscientização da sociedade. Aí também tem toda uma discussão complicada que envolve o quanto essa TV vai estar a serviço de determinado governo.
Você diria que, no Brasil, nós temos TV estatal, mas não TV pública?
É muito fácil alguém que passou três anos na gestão e não deixou nenhum legado concreto, como é o meu caso, virar crítico do processo como um todo e achar que tem a solução. E indiscutivelmente a TV pública vive uma crise muito grande, não só no Brasil.
Nos EUA, isso acontece também. A PBS (Public Broadcast System) é cada dia mais uma TV que fala para velhos. Ela é sustentada em parte por recursos que vêm do orçamento norte-americano, votado pelo Congresso, e em parte de contribuições voluntárias, e teve uma crise imensa. Agora, se você pega os grandes documentários que são feitos nos EUA sobre temas históricos, importantes, boa parte é feita pela PBS: produtores independentes com recursos da PBS.
O que acontece no caso brasileiro, principalmente nos estados? Quando uma TV pública reduz o seu orçamento, enxuga a sua máquina, que às vezes é muito grande, o dinheiro volta para o orçamento. Ele não fica ali pra fazer produção independente. O que hoje sustenta e assegura uma certa vivacidade da produção independente brasileira é a legislação de inserção de 1 a 2 bilhões de reais por ano para audiovisual vindos do dinheiro que as teles pagam como imposto (Fistel).
Falando sobre conteúdo, dentro dos inúmeros trabalhos que você fez, quais você mais teve prazer em fazer ou considerou mais relevantes?
Certamente, o resultado mais compensador, mais gratificante, foram os 10 anos em que fiquei no Roda Viva, o mais antigo e relevante programa de entrevistas da televisão brasileira, muito possivelmente, e minha passagem por lá só terminou porque virei presidente da TV e cheguei à conclusão de que era impossível conciliar a presidência com a apresentação do programa.
Mas fiz alguns documentários, como um chamado Sete faces de uma guerra, sobre a luta do Brasil contra a Aids, ou O dia que nunca existiu, que é a história do dia em que a Câmara dos Deputados negou a autorização para processar um deputado, Márcio Moreira Alves, e gerou, nesse processo, um enfrentamento com a ditadura que levou ao fechamento do Congresso e à edição do AI-5.
E também a série Retrovisor, que foram entrevistas com personagens da história do Brasil interpretados por atores. Também os projetos que fiz para o Sesc (Arquiteturas), basicamente sobre maneiras de morar do brasileiro. Cinco temporadas já. Só nesse aí são 52 documentários.
Atualmente, como você se vê como jornalista? Você se considera freelancer ou está vinculado a alguma empresa?
Cada dia o mercado formal do jornalismo tradicional em grandes redações está mais difícil, ainda mais para um cara que tem 66 anos, como eu. Continuo insistindo nesses projetos autorais.
O próximo projeto é sobre as manifestações de 2013. Chama-se O começo do avesso – Junho de 2013. É o momento em que nasce todo esse processo que vai desembocar no impeachment da Dilma e na crise do governo Temer. Muitas novas lideranças políticas, de esquerda e direita, se destacaram naquelas manifestações e a gente vai fazer, para o Cine Brasil TV também, uma série sobre esse episódio.
Em relação ao futuro da televisão, hoje a Netflix e plataformas que proporcionam conteúdos customizados estão aumentando seus públicos e a audiência das TVs abertas está diminuindo. Como você enxerga o cenário futuro da televisão, tanto aberta quanto fechada?
Eu não tenho uma bola de cristal para saber. Quanto mais velho você fica, mais você percebe que bolas de cristal não funcionam.
O que é óbvio é o seguinte: as minhas netas mais velhas, que já têm 15 anos, não veem televisão de nenhum tipo. Elas veem YouTube no celular e assistem muito conteúdo audiovisual no celular, conteúdo esse que é produzido por indivíduos sem uma estrutura profissional, comercial, sofisticada e que fazem um enorme sucesso. Mais que a Netflix, porque a Netflix ainda atinge mais o mercado convencional, mas o que está acontecendo no YouTube deve ser certamente preocupante para quem trabalha no modelo tradicional das TVs.
Ao mesmo tempo, não está claro como vai ser esse novo cenário. Se de um lado ele permite múltiplas produções e os criadores terem o seu espaço, darem o seu recado, de outro eu penso: “o que uma menina que hoje tem 15 anos vai assistir quando tiver 25?”. Como ela vai consumir conteúdo audiovisual? Que tipo de conteúdo vai ser esse? Quem vai produzir? De onde vai vir o dinheiro para financiar isso?
Isso não poderia ser feito no YouTube?
Quem paga? Como você consegue recursos para pagar o ator, fazer o figurino… não há nenhuma possibilidade. Esses modelos de autofinanciamento, crowdfunding, etc, eles não chegam a garantir recursos para isso porque as pessoas não querem pagar. Então é muito difícil.
O YouTube monetiza o conteúdo dependendo do número da sua audiência.
Mesmo assim, eu acho que 200 mil acessos no YouTube não dá para pagar o leite das crianças. Mas é um caminho e muitas pessoas estão tentando isso.
Assim… essas pessoas que eu estou citando são da minha geração, ou próximas dela, que foram formadas e que acumularam capital de conhecimento fora do YouTube. Não é por aí que o negócio está girando. É em torno das gerações mais jovens, com comunicadores mais jovens que falam para públicos mais jovens e que alcançam milhões de visualizações, de seguidores etc. e em relação aos quais eu não consigo ter uma relação que não seja crítica porque não é a minha praia, não fala para mim, não tem nada a ver com o meu mundo. Eu não consigo nem entender porque as pessoas acham interessante aquilo.
Da mesma maneira, quando eu tinha 15 anos e ouvia um disco dos Beatles ou ia na banca comprar uma revista em quadrinhos, os meus pais achavam incompreensível. Normal e natural isso.
Porém, o que eu estou querendo raciocinar é que se construiu toda uma indústria muito poderosa do audiovisual, da televisão, do cinema, que está totalmente posta em xeque, como já foram postas em xeque outras indústrias, algumas delas simplesmente destruídas. A música é um bom exemplo disso. O rádio também, como emissor de música. É isso que está acontecendo, mas saber para onde está indo é muito difícil.
Para finalizar, estamos falando de jovens e vou focar nos jovens jornalistas. Hoje, os novos jornalistas tentam entrar no mercado em um contexto de demissões nas grandes redações. Que conselhos você daria para esses profissionais que estão se formando?
A principal recomendação é pensar “fora da casinha”. Os jovens jornalistas sonham em ocupar a vaga do William Bonner ou do Pedro Bial, ou, na melhor das hipóteses, ir pro programa do Caco Barcellos, Profissão Repórter.
Essas vagas estão ocupadas e dificilmente serão desocupadas para um jovem. Enquanto isso, você tem uma série de segmentos, de microuniversos na sociedade, que demandam e permitem o desenvolvimento de narrativas próprias. A gente tem que ir atrás de coisas que não são óbvias.
Eu tenho certeza que existem vários campos para serem explorados, sejam eles áreas de atividades sociais, políticas, de ONGs, de grupos que a sociedade moderna estabelece e que valem a pena investir como campo de atividade pensando em formas de comunicação.
A tecnologia moderna permite isso a um custo muito baixo. Para você ter uma câmera de vídeo, hoje, muitas vezes basta um celular. A questão é: que história você vai contar? Para quem? Quem vai pagar e garantir que você tenha uma receita para praticar isso como profissão?
Você pode produzir o conteúdo e oferecer para uma audiência muito grande. Agora, se você vai atender os interesses dessa gente, dizer o que as pessoas querem ouvir, aí é outra questão, mais complexa. Hoje, você tem mais facilidades tecnológicas a custos mais baixos e, ao mesmo tempo, nenhuma censura. Não há proibição para tratar de determinados assuntos.
O caminho, então, seria explorar nichos e não mais tentar alcançar a grande massa de público?
Ainda hoje o veículo jornalístico de maior alcance é o Jornal Nacional. Apesar de todas as transformações que aconteceram no mundo da audiência, com a internet, se algo vai para o Jornal Nacional, tem uma repercussão impressionante. Eu pergunto: será que algum grupo de jovens se exporia a pensar em fazer um “Jornal Nacional do B”? De que maneira seria possível fazer isso? É uma discussão complicada.
Alguns anos atrás, meu filho e eu montamos um projeto que reeditava o primeiro jornal “moderno”, digamos assim, que se chamava Jornal de Debates, que surgiu na época da Revolução Francesa e existiu na França até depois da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, foi criado em 1946, depois recriado nos anos 1970 e a gente fez uma tentativa de recriá-lo na internet.
Qual era a ideia? Uma tribuna livre de discussão de temas da atualidade. Chegou a ter alguma repercussão no início dos anos 2000 na internet, mas nunca se sustentou financeiramente e nem teve o alcance que deveria, porque a internet não é algo para reflexões mais aprofundadas. Tanto é que toda vez que você escreve mais do que cinco linhas no Facebook, você carimba como “textão”, como se fosse possível resumir em 140 caracteres todas as ideias e opiniões.
Isso prova que nem sempre esse novo universo da tecnologia resolve as coisas. Certas questões não são atendidas, como ter um espaço de reflexão aprofundada, de discussão e debate, que hoje seria super importante. A internet não proporciona. Ela não impede, mas não há.
E se eu quero saber, neste momento, quem é que tem hoje um debate intelectual aprofundado sobre a crise que nós estamos vivendo? Você pode encontrar isso na internet de forma esparsa, um artigo aqui, uma tese ali, mas não em um lugar onde você pudesse encontrar com maior facilidade essa discussão.
Me parece que as mídias estão entrando em “bolhas”, sendo rotuladas como de “direita” ou “esquerda”, e as pessoas não estão mais discutindo racionalmente.
Pesquisas mostram que a circulação de opiniões é cada vez mais segmentada. Já foi assim. Se você pega o período do início do Império e questões como a defesa da independência, a escravidão, o debate sobre a República, havia publicações especializadas e militantes de um lado e do outro, financiados pelo governo da época ou por opositores. O jornalismo era isso. No começo do século XX é que começam essas publicações mais genéricas para alcançar um grande público.
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Raul Galhardi é jornalista e mestre em modelos de negócios jornalísticos pela ESPM-SP.