Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Representações de gênero e comunicação política: entrevista com a pesquisadora francesa Marlène Coulomb-Gully

Marlène Coulomb-Gully é docente nos cursos de Ciências da Informação e da Comunicação da Universidade de Toulouse II – Le Mirail, França, e pesquisadora em comunicação política e representações de gênero na mídia. É graduada em Letras Modernas e doutora em Ciências da informação e da comunicação, com tese sobre “A representação política no jornal televisual: estudo dos posicionamentos televisivos durante a campanha presidencial de 1988”. Além de orientar trabalhos de pesquisas de mestrado e doutorado no domínio da comunicação, a professora é uma das maiores referências europeias nos estudos de mídia, comunicação, gênero e política, tendo uma vasta referência publicada em forma de entrevistas, artigos científicos e jornalísticos, ensaios e livros. Suas obras mais recentes são Femmes en politique: pour en finir avec les seconds rôles e 8 femmes sur un plateau – Télévision, journalisme et politique, ambos publicados em 2016.

Também é líder do grupo de pesquisa Médiapolis, do LERASS (laboratório de estudos e pesquisas aplicadas em ciências sociais), desde 1998, e atual diretora da revista acadêmica interdisciplinar Les Mots de. Coulomb-Gully é membro do Conselho Superior para a Igualdade entre Mulheres e Homens. Entre os meses de agosto e setembro, a professora esteve como visitante na Universidade de Montevidéu, no Uruguai, e, de passagem por Foz do Iguaçu (PR), em visita à cidade e à Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), gentilmente concedeu-nos uma entrevista onde abordou seus principais temas e objetos de interesse, bem como o papel dos discursos na construção do imaginário sexista na mídia e na política. A íntegra da entrevista está disponível no canal Youtube da Unila: https://bit.ly/2PePwM0, no quadro #Charla.

Primeiramente, gostaria de lhe agradecer pela gentileza de vir à UNILA e conceder essa entrevista, possibilitando-nos falar de questões que nos são bastante caras: mídia e política. Eu começo então lhe perguntando: quais são seus temas e problemas de pesquisa atualmente na França?
Bem, como você disse em sua introdução, eu me interesso de modo geral pela questão do gênero, das mídias e das mulheres políticas. A questão do gênero eu não preciso definir. Creio que todo mundo já sabe do que se trata. Vamos chamar de gênero as relações sociais de sexo, e as mídias são evidentemente todos os dispositivos de comunicação que nos rodeiam. Então, a gente pode se perguntar: quando nós nos interessamos pelos gêneros, por que nos interessamos pelas mídias? A relação entres essas duas coisas não são nada óbvias. Então, antes de tudo, é preciso ter em mente que o gênero é uma representação. Existem diferenças de sexo, isso é uma coisa, é um fato, não vamos voltar atrás. Mas, sobre essas diferenças, são construídas muitas representações. O gênero finalmente é isso, é a fábrica social que gira em torno da representação. Há uma teórica muito importante para nós, Teresa de Lauretis, que diz o seguinte: se o gênero é uma representação, a representação do gênero é sua construção. Então é importante observar como as mídias, que estão no centro do sistema de representação, fabrica identidades de gênero para as mulheres, mas também para os homens.

Ainda uma palavrinha para encerrar o tema da representação das mídias. Eu utilizo o termo mídia com o sentido que Michel Foucault dá a esse termo, ou seja: Foucault fala de mídias como tecnologias de poder. Assim, a mídia faz parte das instituições (como a escola, a família etc.) que constroem normas. Então, as mídias fabricam normas enquanto fingem não ser o seu reflexo. Essa fabricação das normas pelas mídias, e em particular normas de gênero, é o que me interessa em minha pesquisa, e, de modo secundário, a questão da construção do gênero no nível de mulheres políticas. Mas a estrutura geral do meu trabalho é a relação entre as representações de gênero e as mídias.

Movido por essa explanação, por que se deve ainda hoje discutir, refletir, problematizar esse tema na universidade ou em outros espaços e instituições?
Então… talvez para simplificar, e para que seja compreensível para todos, quero dar alguns exemplos para que me entendam melhor. Por que nos parece extremamente importante na universidade, mas também na sociedade em geral, para entender essa articulação entre as representações de gênero e as mídias? Há um monte de estudos científicos pelo mundo, no Brasil, pela América Latina, pela América do Norte, na Europa, na França, que mostram, por exemplo, que quando olhamos para as notícias, há 75% de homens e 25% de mulheres. E quando analisamos todas essas informações… todos os especialistas que levantamos, especialistas em política, especialistas no mundo dos negócios, no mundo das finanças, no mundo científico, 80% são homens. Ora, as notícias são dadas como um estado de reflexo da realidade. A pergunta que a gente deve se fazer é: na realidade da vida cotidiana, a gente tem efetivamente 75% de homens e 25% de mulheres, e 80% de homens especialistas e somente 20% de mulheres? Não. Claro que não! Hoje, as mulheres estudam muito mais do que os homens no caso da França; elas são mais numerosas nas seleções do exame Bacalauréat, nos cursos de graduação, a fazer um mestrado, a terminar um doutorado; então, o nível de especialização de mulheres em todos esses domínios é muito importante. Porém, quando observamos as notícias, esses dados não aparecem. O que eu tenho dito é que as mídias são estruturadas por um inconsciente sexista.

Poderíamos dizer que isso é um produto do inconsciente…
As mídias são um produto inconsciente desse sexismo que estrutura a sociedade. A imagem que elas vão dar da sociedade não é esse espelho no qual elas pretendem refletir, mas é uma construção que participa desse sexismo. Logo, por um lado isso não é justo e, por outro, como isso torna as mulheres invisíveis, ainda contribui para transformá-las em indivíduos dominados. É por essa razão que é muito importante desconstruir tudo isso e tentar compreender de onde essa questão surge: o paternalismo, o machismo da sociedade. E desconstruir deve permitir superar e promover uma imagem justa das mulheres, em geral, das mulheres políticas, especialmente na mídia.

Na universidade, eu tenho trabalhado com diferentes objetos de pesquisa, porém na área de análise do discurso, no terreno das práticas discursivas, como diria Michel Foucault. Então, considerando as lutas das mulheres a partir dos anos 1950 e 1960 em diante, o que mudou nos últimos 50/60 anos em relação às mulheres na política e em posição de poder?
As práticas discursivas em particular se baseiam primeiramente na questão da língua. Em francês, é preciso saber que nossa língua é estruturada pelo masculino. No século XVII, houve várias considerações gramaticais que diziam que “o gênero masculino era mais nobre que o feminino”. E a língua, que até então era bastante aberta ao feminino, se fechou e diminuiu o feminino no discurso no nível sintático, no nível morfológico, lexical e em outras formas. Por exemplo: quando se tem um nome masculino e um feminino, deve-se fazer a concordância com o masculino. Nossa língua já é portadora de uma estrutura desigual… isso no nível sintático, por exemplo. Mas no nível lexical também. Bem, se voltarmos à questão do político em particular, mostro dois pequenos exemplos: em francês, um gouvernant é um homem político, mas esse termo no feminino, uma gouvernante, é alguém que cuida das crianças. Um homem público é alguém que cuida dos negócios, do Estado; uma mulher pública é uma prostituta. Logo, a gente nota que a própria língua é trabalhada, ela constrói e, ao mesmo tempo, ela é o reflexo desse imaginário sexista e perpetua tal imaginário sexista. Então, quando nós notamos no nível discursivo a maneira como a mídia fala dos homens e das mulheres da política, nos damos conta de que ela própria também perpetua essa maneira diferente de tratamento entre os gêneros.

Por exemplo: se diz de uma mulher política que ela é autoritária; ser autoritário não é bom. Mas se diz de um político que ele tem autoridade. Quando um homem muda de ideia, alguém diz “ah, mas ele está ouvindo”, e ele vai mudar de ideia porque entende que é importante levar em consideração a opinião dos outros. Uma mulher política que muda de ideia é vista como inconstante. Vemos que a mídia finalmente perpetua esse imaginário sexista. E então, no nível discursivo, no plano do imaginário que é veiculado, é muito importante tomar consciência de tudo isso… para discutir com os jornalistas, porque se diz que a mídia parece uma entidade extremamente abstrata, mas a mídia é produzida por homens e mulheres. Por isso, é importante trabalhar com jornalistas, e também é o que eu me esforço para fazer na universidade com cursos de especialização e pós-graduação onde discutimos com jornalistas sobre tudo isso.

Para terminar, gostaria de lhe fazer mais uma pergunta: qual é o papel do conselho do qual a senhora é membro no observatório da mídia e da comunicação política? O que a senhora faz nesse conselho?
O órgão se chama Haut Conseil à l’Egalité entre les Femmes et les Hommes (HCEfh) [conselho superior para a igualdade entre mulheres e homens]. Esse conselho foi criado depois da chegada do presidente François Hollande ao poder, em 2012. Ele reuniu, ao mesmo tempo, personalidades políticas, membros de associação e da sociedade civil que, em campo, trabalhavam sobre a igualdade em todos os níveis e depois um pequeno número de pesquisadores. Portanto, trata-se de reunir políticos, pesquisadores e membros de associações que trabalham com as desigualdades entre mulheres e homens para tentar especificamente fazer pesquisas e propostas de leis que permitam avançar com base na igualdade. Primeiro, o que é interessante é essa multiplicidade de olhares no conselho superior e, depois, essa ação que temos diretamente na sociedade. E é realmente um lugar apaixonante, onde tentamos fazer avançar as coisas.

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Jocenilson Ribeiro é doutor em linguística e professor na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, onde lidera o imaGine – grupo de pesquisa e estudos em análise do discurso.