Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Revista “piauí”: diferenças e semelhanças com a tradição do jornalismo brasileiro

(Foto: Reprodução – YouTube)


Fabiano Ormaneze é jornalista e professor em cursos de Comunicação e Letras, doutor em Linguística/Análise de Discurso pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Divulgação Científica e Cultural pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor/Unicamp), especialista em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL) e graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela PUC-Campinas. Também é professor na Escola de Extensão da Unicamp (Extecamp), no Centro Universitário Metrocamp e no Centro Universitário Anchieta. Já publicou dois livros: Vidas partidas: Histórias de luto materno (2006) e Do jornalismo literário ao científico: biografia, discurso e representação (2015).
Na entrevista abaixo, concedida por e-mail, Fabiano fala de sua pesquisa de doutorado, que teve como objeto a revista piauí. Ele discute a contribuição da análise do discurso francesa, baseada no pensamento do filósofo da linguagem Michel Pêcheux, para o
xercício de um jornalismo mais crítico. E também discorre sobre as contribuições da piauí para o jornalismo literário brasileiro.
Você utiliza o dispositivo teórico da análise do discurso de orientação francesa para discutir as relações entre gênero biográfico, perfis e jornalismo literário na revista piauí. Quais são as contribuições da análise do discurso para se pensar o jornalismo?
Um dos grandes equívocos que alguém pode cometer ao analisar o jornalismo é a busca de uma correspondência objetiva, referencial e única, entre fato e palavra. Na verdade, essa forma de olhar para o jornalismo é fruto de décadas de um trabalho desempenhado pelos próprios veículos para se firmarem como a verdade ou, então, como testemunhas de credibilidade e com versões irrefutáveis. É comum ouvir que o jornalismo é a história do presente ou que o jornal de hoje é a história de amanhã, apenas para citar duas das frases que, costumeiramente, circulam e até são difundidas em livros de caráter mais técnico e nos manuais de redação. A Análise de Discurso (AD), fundada por Michel Pêcheux há cinquenta anos, traz uma importante contribuição à reflexão sobre jornalismo, já que pensa a linguagem associada ao político e à história. Diante dessas frases, pergunta-se, por exemplo, que história é essa que está sendo contada e como, ao fazê-la de um modo e não de outro, produzem-se efeitos de sentidos sobre pessoas, fatos e sobre os próprios veículos de comunicação. A AD inquieta-se sobre o que foi silenciado ou apagado nesse tipo de dizer que circula como sendo “a verdade”. É uma perspectiva bastante crítica: enquanto um manual de redação diz que se deve escrever de determinada maneira, a AD questiona-o sobre que efeitos de sentido são esquecidos ou impedidos de ser produzidos. Numa época de tanta diversidade de opiniões, possibilitada pela internet, a AD ajuda-nos a pensar também sobre as bolhas, indicando que elementos são esses que, constituindo a ideologia, permitem que estejamos ligados a alguns sentidos sobre os fatos e não a outros. Em suma, é uma forma de compreender o jornalista e seu público como sujeitos.
Qual o lugar do jornalismo literário num contexto de combate à desinformação, em que a checagem correta parece valer mais do que a narrativa?
Histórica e conceitualmente, o jornalismo literário se caracteriza por uma apuração aprofundada, numa linguagem com preocupações estéticas e em narrativas que tenham como foco o ser humano, aquilo que se convencionou chamar de “humanização”. No lugar de ser uma ilustração, um mero personagem que fornece as “aspas”, o ser humano é o protagonista da narrativa jornalística. A proposta do jornalismo literário é, portanto, estética e de conteúdo. É uma prática muito antiga e que se mantém viva, do qual a revista piauí é um bom exemplo. No contexto do combate à desinformação, eu entendo que o jornalismo literário tenha papel importante, já que oferece checagem mais aprofundada e histórias de vida que produzem empatia e identificação com os leitores. Mas, por outro lado, essa questão precisa ser analisada de modo mais amplo. A qualidade do conteúdo precisa estar associada a uma melhoria na educação brasileira. De nada adianta termos conteúdo com profundidade se não houver leitor qualificado e crítico. Em outras palavras: a saída para a desinformação não está só no jornalismo, mas na educação. Além disso, não podemos incorrer noutro erro: pensar que observar o conteúdo é suficiente quando falamos de jornalismo. Como toda ação humana, ele está também condicionado à ideologia e, com a piauí, não é diferente. Não podemos deixar a reflexão sobre o jornalismo restrita à estética e à humanização, até porque esses conceitos também podem ser questionados: estética para quem? Humanização para quem? De que lugar de fala? O que isso tudo expõe e o que silencia?
Qual a importância da revista piauí para o jornalismo brasileiro? Você acha que ela vem cumprindo o que se propôs desde o seu lançamento?
Desde que nasceu, em 2006, piauí foi aclamada pela própria imprensa, por seus leitores e pela academia como exemplo de bom jornalismo. A ideia era de que estava nascendo um veículo que se dedicaria à produção com qualidade extrema. A própria relação estabelecida com o jornalismo literário vai nessa direção. Nesse sentido, a revista se mantém intrépida e coerente com sua proposta estética e de conteúdo. No entanto, o que eu discuto na tese de doutorado, a partir de análises de textos biográficos, é a maneira como, desse lugar de discurso literário, a revista não se diferencia do restante da imprensa em termos ideológicos. Dizemos que o discurso tem sempre três instâncias. Em dois deles, a circulação e a constituição, piauí se difere dos demais veículos, mas, do ponto de vista da formulação, reproduz ideologicamente imagens que se assemelham aos demais. Que piauí cumpre um papel estético e de conteúdo, é inegável. Já do ponto de vista de ser um discurso alternativo àquilo que se consolidou como hegemônico, é outra história.
Acesse a tese sobre a revista piauí.