Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Da estratégia de caramujo de Machado de Assis ao racismo estrutural: black money e a imprensa de resistência

(Foto: Divulgacão)

A técnica jornalística, a atitude e a escrita de Machado de Assis são reconhecidas por todos da área, mas poucos sabem de sua “estratégia de caramujo” enquanto homem negro em uma sociedade sem democracia racial. O trabalho de tipógrafo, revisor, crítico teatral e cronista nos jornais do século XIX deram a Joaquim Maria Machado de Assis segurança e tempo para exercer o que mais gostava: escrever com criticidade. No entanto, tudo isso não apaga sua origem negra (pai e avós paternos), sua negritude e sua luta antirracismo. Sendo o modo como escreve, o lugar de onde fotografa com palavras a realidade (realismo machadiano) e a escolha estratégica de vida as fontes de toda sua genialidade. Tal genialidade não é a que devemos cobrar dos nossos jornalistas atuais, porém não podemos tolerar deles, ainda mais de homens brancos, atitudes racistas como a do âncora do Bom Dia São Paulo, Rodrigo Bocardi, na última sexta feira (07).

A “estratégia de caramujo” – adotada e declarada, aos leitores atentos, em uma crônica da semana de 13 de maio de 1893 (cinco anos depois da abolição da escravatura) – mostra um escritor negro que escolhe andar pelas frestas, pelas ambiguidades das relações sociais da burguesia brasileira; e não mudou muito o modo como o racismo no Brasil é velado, mas existente. Machado de Assis escolhe ser “o mais encolhido dos caramujos” (como retratam os críticos Eduardo de Assis Duarte e Lilia Moritz Schwarcz, em seus respectivos estudos), pois, em sociedades pré-abolição e pós-abolição vividas pelo “bruxo do Cosme Velho”, a estratégia de escrever sobre a podridão burguesa por dentro da própria burguesia é marca de um gênio que criou representações como Brás Cubas, Bentinho, Capitu, o agregado José Dias, Rubião, Quincas Borba, Cândido Neves, Tia Mônica, os Pádua, entre outros tantos personagens de uma época mergulhada em uma ideologia de consumo burguês, eurocêntrico e branco.

Machado denunciava o sistema de dentro. A “estratégia de caramujo” de Machado é, portanto, uma singularidade de um gênio produzida por nossas maiores chagas: a escravidão e o racismo, velado ou não. Contudo, Joaquim Maria não se dobraria ao ambiente, mas sim criaria uma casca, um casulo protetor, como o de um caramujo, de onde poderia mover-se lentamente, por letras, por palavras, poderia fazer suas críticas, deixando um rastro no chão, quase imperceptível para quem tinha olhos distraídos; mas bastaria olhar mais de fora, por uma espécie de exotopia, para ver claramente a estratégia de um “bruxo caramujo” e seu rastro, como podemos agora ver, ler e nos deliciar. Logo, a “estratégia de caramujo” declarada pelo autor foi seu modo de denunciar o racismo em suas entranhas mais perversas, inconscientes e veladas. Racismo tão agudo e estrutural que tentou embranquecê-lo em fotos em campanhas publicitárias e em livros, ao longo das décadas. A “estratégia de caramujo” é, portanto, mais uma forma de denúncia machadiana à podridão burguesa e, principalmente, ao racismo.
Passados mais de 110 anos da morte (1908) do mestre e escritor negro, Machado de Assis, e mais de 130 anos da abolição da escravatura (1888), o racismo ainda é nossa maior marca de desigualdade na sociedade mais desigual do mundo, segundo último relatório do PNUD/ONU de 2019. Embora sejamos, 54% da população, movimentemos mais de R$ 1,71 trilhões anualmente e sejamos 51% dos empreendedores, 75% dos negros estão nos 10% mais pobres e ainda é gritante a diferença média de 40% a menos no salário dos negros em relação aos brancos; além disso, a cada 23 minutos um negro é assassinado no país, em uma proporção quase quatro vezes maior do que o risco corrido pelos brancos. Mais assustador ainda é saber que 80% dos mortos por policiais no Rio de Janeiro, em 2019, eram nossos negros. São dados de um sintoma, são dados de uma patologia social vinculada à desigualdade: o racismo estrutural.

Não é preciso ir muito longe no tempo e no espaço para termos outro exemplo de racismo estrutural. Rodrigo Bocardi, jornalista da Globo, ao se justificar no Twitter, na sexta-feira (07), dizendo que alguém com a origem dele não pode ser racista, dá abertura para que o próprio autoelogio seja uma atitude racista: “Alguém como eu não pode ter preconceito. Eu não tenho. Nunca tive. Nunca terei”.

Mas o que houve para o apresentador ir até o Twitter? Na sexta, em reportagem sobre mobilidade urbana, um dos maiores problemas da cidade de São Paulo, um jovem negro com camiseta esportiva de um clube de elite foi entrevistado pelo repórter de rua da Globo. Na tentativa de fazer um diálogo amistoso entre o estúdio e o entrevistado, o âncora fez uma indagação fora do contexto da reportagem, perguntando se ele era pegador de bolinhas no Clube Pinheiros. Uma pergunta impregnada de senso comum e estereotipagem. A resposta do jovem Leonel, negro entrevistado, foi um misto de desapontamento e assertividade no olhar e na voz: “Não, não, não. Sou atleta do Pinheiros. Jogo polo aquático”. Depois disso e da desconstrução do estereótipo contido na pergunta do âncora, veio uma enxurrada de críticas ao apresentador, ao vivo e pelas mensagens das redes interativas. A saída encontrada pelo jornalista, branco, foi dada no Twitter. Muitos veem preconceito na pergunta de Bocardi; outros, nem tanto. Mas o que não se pode negar é a existência do racismo, nem se pode dizer de forma categórica, dogmática e axiomática que “Nunca tive. Nunca terei (atitude preconceituosa)”, pois afirmar de tal forma já é um ato de falta de um questionamento mais profundo, histórico e honesto.

Por outro lado: as saídas, a inclusão e o jornalismo preto

Não vivemos mais nos tempos machadianos: o jornalismo mudou, pois a sociedade está em transformação. As denúncias que outrora eram veladas, em invólucros de escritor caramujo, agora estão mais evidentes, pois é assim que revelamos os sintomas e podemos tratá-los coletivamente. Não escondendo a ferida, que poderá virar tumor, mas pedindo ajuda ou mesmo apontando o dedo para ela. Está sendo assim que o jornalismo dessa segunda década do século XXI no Brasil vem se manifestando: pela voz de quem tem sua singularidade e existência colocadas em xeque por questões patológicas e pseudocientíficas ainda do século XIX. Está sendo assim que o jornalismo preto vem cada vez mais aparecendo (e deve), seja no Alma Preta Jornalismo e no Letra Preta, da revista piauí, ou por influências fortes de grupos de estudos nas universidades, como o Geledés, organizado e coordenado por mulheres negras, como a filósofa e doutora em educação Sueli Carneiro, ou por forte atuação de grupos, hubs e startups como o Black Money, fundado em 2017, que tem na liderança uma brasileira negra, chamada Nina Silva, eleita pela revista Forbes uma das mulheres mais poderosas do Brasil e que ficou entre as 100 figuras afrodescendentes mais influentes com menos de 40 anos no ranking da Most Influential People of Africa Descent, instituição ligada à Organização das Nações Unidas (ONU). O Black Money prioriza o consumo entre os negros fazendo circular capital entre eles; a ideia é dar autonomia à comunidade negra na era digital e fortalecer o ecossistema de negócios geridos por essa população. É esta, portanto, a ideia mais objetiva, segundo alguns articuladores, de enfrentamento ao racismo estrutural no Brasil, pois ataca a raiz do problema: o capital burguês, que aos poucos vai ganhando cor, melanina e aspectos de democracia, realmente liberal e racial. Une, portanto, a luta contra o racismo a uma luta de inclusão ao sistema.

Machado de Assis não errou em nada. Não podemos acusá-lo, anacronicamente, de não ter feito jornalismo preto nem abolicionista; por isso, não errou. Fez de seu modo uma denúncia antirracista e profundamente antissistêmica. Exímio que era, mostrou-nos, e mostra sempre, quais os problemas da alma burguesa, quais seus defeitos, sua podridão de comportamento, suas patologias e jogos sociais. Mostrou-nos como um caramujo-escritor, deixando o rastro na terra, deixando o rastro em palavras e crítica, fez seu sinal de alertar sobre a sociedade que se apoia em pseudociências (como o racismo). Genial, Machado ironizou seu tempo e os modos de vida que o circundavam. Em outra perspectiva, o Black Money nos mostra como usar de estratégias do sistema os modos de modificar o próprio sistema pela inclusão do negro. É uma saída. Uma outra saída. Antirracista, mas não antissistêmica.

Mais de um século depois, não há como ser jornalista, escritor, brasileiro, da mesma forma, sem denunciar e sem ler os rastros que o “bruxo do Cosme Velho” tanto fez questão que nós lêssemos com o passar do tempo. E nem há saída à sociedade sem jornalismo preto e a força de movimentos como o Black Money. Muito menos há como seguir fazendo jornalismo, sendo homem branco, sem sair do seu lugar de privilégio ou sequer parar para se desculpar com os que ofendeu, como ainda não fez Rodrigo Bocardi na TV, embora já tenha pedido desculpas para o público seleto e mais crítico do Twitter. É hora da escuta! Foi-se o tempo da “estratégia de caramujo”, mas sempre será tempo de Machado de Assis!

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Fabrício César de Oliveira, irmão de quatro mulheres negras, professor, tradutor, escritor, mestre e doutor em Linguística e Filosofia da Linguagem pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), é leitor de Machado de Assis.