Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Emicida: Para que amanhã não seja só um ontem

Foto: Jef Delgado/Divulgação Netflix

O documentário AmarElo: É Tudo Pra Ontem, produzido e protagonizado pelo cantor, compositor e escritor Emicida começa com um ditado iorubá: “Exú matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. Em outro momento, um trecho de uma canção de Belchior chamada “Sujeito de Sorte” integra uma das músicas interpretadas no documentário, e faz outro jogo entre passado e presente: “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Por fim, essa dinâmica entre presente, passado e futuro também consta no subtítulo da produção: “É tudo pra ontem”. Essas relações temporais se cruzam diversas vezes ao longo do filme, estimulando reflexões sobre a história e a condição das pessoas negras no Brasil hoje. A partir da realização de um show no imponente Theatro Municipal de São Paulo, o documentário afirma um protagonismo negro poucas vezes observado na cultura de um país estruturalmente racista. Nomes como do escravo alforriado Tebas, que trabalhou como arquiteto na cidade de São Paulo no século XVIII, da sambista e política Leci Brandão, uma das poucas mulheres negras a ser deputada pelo estado, do talentoso músico Wilson das Neves, da filósofa e historiadora Lélia Gonzalez, do escritor Abdias Nascimento e da premiada atriz Ruth de Souza, entre outros, são lembrados por suas contribuições para a sociedade brasileira, além de servir para promover a valorização e empoderamento das pessoas e da cultura negra. E o melhor: numa afirmação alegre e distante dos ressentimentos e das “paixões tristes”, das quais falava Espinosa.

Trata-se de uma produção fundamental num país que ainda tem dificuldades em reconhecer sua violenta história, muitas vezes escondida por rótulos ideológicos como a “democracia racial”, mascarando os processos de desumanização sempre envolvidos em circunstâncias de racismo. É a relação entre passado, presente e futuro que explica esse estado de coisas que o documentário nos estimula a pensar. Para isso, é necessário que se compreenda e que se discutam as questões ligadas ao racismo estrutural do país. Tal compreensão envolve o conhecimento dos dados que mostram que, além de morrer e matar mais, a população negra também tem menor acesso à educação, à saúde e ao mercado de trabalho, situações que fazem com que suas condições e expectativa de vida também sejam impactadas, conforme o levantamento intitulado “Os obstáculos na trajetória de vida da população negra no Brasil”, realizado pelo Nexo Jornal na ocasião dos 130 anos da abolição da escravização. Durante mais de três séculos, essa prática econômica e social vigorou no país, onde pessoas eram traficadas e se tornavam “peças e propriedades”, sendo coisificadas em sua condição e sua vida. Mesmo com inúmeras revoltas, o sistema escravagista se manteve e foi abolido apenas em maio de 1888; no entanto, essa abolição não representou de fato liberdade e consideração de cidadania plena para os indivíduos recém-libertados.

Conforme a descrição da antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz em Sobre o autoritarismo brasileiro (2019), no Brasil o “presente é cheio de passado”, isto é, nossas atuais circunstâncias sociais e políticas foram estruturadas ao longo da nossa história, sem grandes rupturas e mudanças. E não poderia ser diferente no caso da “questão racial”. Mesmo que não existam raças humanas do ponto de vista biológico, nossas sociedades foram estruturadas a partir da consideração da existência social de raças. Enquanto o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre via uma harmonia nas relações raciais, que confluíam numa “democracia racial” pautada pela mestiçagem, Florestan Fernandes denunciou como critérios raciais estruturaram a sociedade brasileira de maneira socialmente excludente. E isso explica a condição social de dificuldade da grande maioria dos negros no Brasil. Mesmo sem haver leis ou formas de discriminação racial objetiva, o racismo vigente no Brasil é observável nas representações, ideologias, atitudes, comportamentos e subjetividades, circunstâncias que mostram seus efeitos nos indicadores sociais atuais. É como se o racismo estivesse “entranhado” na estrutura da sociedade brasileira, configurando assim o racismo estrutural.

Esse racismo estrutural difere de outras formas de racismo. O filósofo Sílvio Almeida distingue três concepções de racismo relacionadas entre si no livro O que é racismo estrutural?: (i) uma concepção individualista, onde os indivíduos mantém restrições e discriminações raciais — e que hoje é amplamente considerado como um erro moral e crime; (ii) uma concepção institucional, onde o racismo se manifesta como resultado do funcionamento das instituições, “que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça”; (iii) uma concepção estrutural, na qual o racismo decorre da própria estrutura social, do modo como se constituem as relações sociais, políticas e econômicas. Nessa última concepção, o racismo deixa de ser uma patologia social ou um desarranjo institucional, e passa a ser um componente histórico e político que possibilita a discriminação racial sistemática de indivíduos na atualidade, conforme as estatísticas sociais confirmam. Trata-se de um processo histórico, pois o racismo esteve presente na formação da sociedade brasileira, sustentando processos econômicos e organização social através de um período longo de escravização e segue até hoje. E trata-se também de um processo político, pois influencia a organização da sociedade e a distribuição do poder de forma desigual.

Nesse contexto, mesmo que sem a chancela científica, muitas visões sobre a inaptidão dos negros ainda permanecem no senso comum e na cultura, perpetuando práticas e situações excludentes e mantenedoras de desigualdades, atribuindo assim “lugares naturais” aos indivíduos. Tais visões constituem-se a partir de um rico e complexo imaginário social, sempre reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional. Um exemplo é o caso das empregadas domésticas das novelas ou na figura de criminosos e presidiários nas produções audiovisuais. Devido ao caráter estrutural, esse tipo de racismo se aprofunda em nossas formas de organização social e nas nossas subjetividades, na medida em que o naturalizamos e acreditamos “que sempre foi assim” e “que não se pode fazer nada”.

Tais concepções acabam por penetrar, fundir-se em nossas instituições e estruturas sociais, a ponto de parecer uma “ordem natural da realidade”, numa situação em que o preconceito é cada vez mais reforçado. Assim, acabamos por tratar como “natural” o que é estrutural, uma situação construída social e politicamente ao longo da história. O risco principal envolvido nessas circunstâncias racistas e discriminatórias é que tais práticas promovem a inferiorização e desumanização, com consequente limitações na atribuição de direitos e cidadania. Não se trata de “vitimismo” ou “coitadismo”, mas do reconhecimento de um processo de violência discriminatória que acaba sendo naturalizado e incorporado ao funcionamento das sociedades. Ao considerarmos certas situações como “naturais” e “normais”, como a marginalização de jovens negros e negras, ou a consideração comum de que sempre ocupam lugares sociais de subalternidade, entre outras práticas sociais, contribuímos para o processo de inferiorização e desumanização perigoso envolvido na prática discriminatória do racismo.

Mas o que pode ser feito? Como combater o impacto do racismo estrutural em nossas sociedades contemporâneas? Um passo fundamental envolve a necessidade de informação sobre o racismo, suas bases históricas e seus efeitos sociais. Partindo disso, é possível compreender as desigualdades e privilégios envolvidos das relações sociais, além de avaliar o quanto o racismo pode estar internalizado em nós mesmos. Outras ações envolvem o apoio a políticas educacionais afirmativas, com o objetivo de promoção da igualdade através dos processos de formação e de ampliação das oportunidades de trabalho e renda para populações discriminadas e historicamente desfavorecidas. Além disso, a crítica, o conhecimento e a informação são fundamentais para “desentranharmos” e combater o racismo que ainda assola as vidas de muitos brasileiros e brasileiras. Em AmarElo: É tudo pra ontem, Emicida oferece a sua contribuição para esse processo, fazendo uso das artes e da cultura, estimulando a reflexão e o combate à desumanização promovida pelo racismo, olhando para o passado, para o presente e para o futuro, evitando assim que o “amanhã não seja só um ontem”, como canta outra das suas impactantes canções. O AmarElo que nos é oferecido envolve essa compreensão do ontem e do hoje, superando o ressentimento e apostando numa afirmação empoderada, alegre e emancipatória para o futuro.

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Referências

AmarElo: É Tudo Pra Ontem. Direção de Fred Ouro Preto. Netflix, 89 minutos, 2020.

“Os obstáculos na trajetória de vida da população negra no Brasil”. Nexo Jornal. 12/05/2018.

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

SCHWARCZ, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

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José Costa é professor de Filosofia e Ciências Sociais do IFMG – Campus Ponte Nova.