Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Enquanto Bolsonaro bebe leite, os EUA estão em chamas!

(Foto: Reprodução Twitter)

“Get Out!” (2017), filme com maior número de indicações ao Oscar de 2018, ganhou o sugestivo título de “Corra!”, no português brasileiro, e é classificado como filme de terror ou suspense não à toa, já que sua temática trata de algo extremo e historicamente aterrorizante: o racismo. E o racismo mata, mata muito. Ou, nas palavras de BB King, um ícone do Blues negro estadunidense,  quando perguntado sobre a sociedade americana viver sob a ameaça constante do terrorismo depois do 11 de setembro, disse com lucidez cortante: “mas eu, como negro, sempre vivi debaixo de terror”.

Falando ainda de cultura norte-americana, “Corra!”(2017) deu a Jordan Peele apenas a 5ª indicação, na história do Oscar, de melhor diretor a um negro. O filme não ganhou o prêmio, mas foi laureado por outro, o “Oscar de Melhor Roteiro Original“. E esta foi a primeira vez na história que o prêmio foi concedido a um roteirista e diretor negro, o mesmo Jordan Peele. Em pleno século XXI. E tudo isso (a demora no tempo apesar do histórico de resistência) só nos leva a pensar sobre as várias camadas do racismo na cultura estadunidense, o legado da escravidão em suas raízes e seus efeitos no tratamento e na dificuldade de premiar homens e mulheres negras ou de origem diversa da branca.

Não há como falar de racismo e nem sequer desafiá-lo sem resolvermos as questões com o passado. Não há como falar de racismo sem resolvermos nossas questões com a escravidão. Nietzsche diria em uma frase curta, aforística e poderosa que “Os mortos enterram os vivos”, pois, em nosso tempo, quando não cumprimos a liturgia básica de enterrar ou nos despedirmos de nossos mortos, de resolver as questões do passado, logo os mortos voltam a nos assombrar. Portanto, precisamos enterrar nossos mortos. A metáfora de Nietzsche poderia ser usada em qualquer thriller de terror, como o filme “Corra!”, porém fala de nossa cultura, do imediatismo e do consumismo, em que vidas humanas são números, estatísticas e nossos mortos, ainda mais em plena pandemia (mais de 100 mil óbitos nos EUA e 30 mil no Brasil, por enquanto), não podem ser enterrados com as honras e as devidas despedidas litúrgicas. Criamos uma cultura de mortos vivos, onde a lógica é: nascer, comprar, pagar boletos e morrer. Apenas como um número. Mais um. Ou menos um.

Sintoma, este, de “Necropolítica”, diria o filósofo camaronês Achille Mbembe, para conceituar como o Estado decide quem pode viver e quem deve morrer. Aqui está um dos grandes problemas dos governos dos EUA e do Brasil, pois já decidiram há tempos que quem deve morrer, em sua maioria, são pessoas negras, menos rentáveis. Logo, afirmamos, são Estados racistas, tanto o brasileiro quanto o estadunidense! Por isso tudo, o presente (ou passado) anda nos enterrando vivos, seja metaforicamente, como no filme “Corra!”, seja nas inumeráveis mortes, execuções e homicídios por questões raciais nos EUA e no Brasil.

Sem resolver nossas questões com a escravidão, não resolveremos as razões de um povo que acreditou por um tempo no mito da “democracia racial”, categorizado por Gilberto Freyre em uma época (1933) em que defender a miscigenação era considerado ato inovador e corajoso frente ao avanço nazifascista na Europa. O que hoje é facilmente refutado pelos números violentos da nossa realidade.

Segundo o Atlas da Violência do Brasil de 2019, 75,5% dos homicídios no país são de negros. Houve e há 2,7 vezes mais chances de um negro ser assassinado no Brasil do que um homem branco, de 2007 a 2017, além disso, a taxa de homicídios de afrodescendentes cresceu 33, 1%. E estes números pioram quando analisamos a violência contra a mulher negra, que cresceu 29,9% na última década. São dados de Necropolítica evidente. Racismo estrutural claro. Democracia racial corrompida por dados, evidências, pólvora, sangue ou lobotomia (como no filme ganhador do Oscar, de Jordan Peele).

Ambas sociedades americanas, a brasileira e a estadunidense, têm semelhanças nas questões raciais, mas têm também históricos de revoltas bem distintos, a ponto de uma execução de uma vereadora, negra, lésbica, mãe solo e criada na favela, no Rio de Janeiro, em 14 de março de 2018, não ter gerado as mesmas e efusivas revoltas como pela morte do segurança e ex-rapper, George Floyd, em Minneapolis, em maio de 2020 (talvez porque o ocorrido tenha sido filmado e este é um elemento importante da civilização global e interconectada em que vivemos. Além disso, como no filme de Peele, o celular tem uma função importante de denuncismo).

A execução de Marielle Franco é um marco muito grave na história do Brasil, assim como o assassinato do pastor Martin Luther King Jr., 50 anos antes, nos EUA. São casos distintos, mas de proporções gravíssimas. Historicamente gravíssimas. No entanto, aqui no hemisfério sul, as características da escravidão, embora tenham semelhanças com os americanos do norte, apresentam efeitos distintos. Um exemplo é o chamado “racismo velado”, mas que na verdade é escancarado e explícito nas estatísticas. Talvez o que nos diferencie, então, seja o histórico de resistência, pois nos EUA a luta contra o racismo é muito mais marcada, isso desde a década de 50 do século passado; acrescenta-se a isso, aquilo que diria Florestan Fernandes para explicar ou explicitar nossas nódoas psicanalíticas e desculpas estruturais: “Temos preconceito de quem tem preconceito”, o que ajuda a ocultar corpos, silenciar violências, apagar racismos, varrendo para baixo do tapete nossos mortos pretos; ajuda a não nos envergonhar e com isso não aprendemos a enterrar nossos mortos; ajuda, portanto, a criar um tabu na psicologia social, que é racista.

Mortes são sempre algo que deveríamos entender melhor, quando é natural, quando vem depois de um viver pleno ou fechando o ciclo de uma existência bem vivida. Contudo, quando a morte ocorre por meio de mãos humanas, por asfixia, por armas, por ódio, por preconceito, por ignorância, por maldade, por racismo, por enforcamento, por paulada, por facada, por operação de policiais mal treinados, por assinaturas de decretos, notamos que tudo isso é estrutural, é macro político. É necropolítica. Nestes casos, todas as mortes de negros são mortes políticas. Todas! Pois cada palavra, escolha ou ideologia é de natureza intrinsicamente social, portanto, política. Ainda mais nestes dois países americanos, no Brasil e nos EUA, as mortes de negros são execuções políticas.

A morte de George Floyd nos traz à tona revoltas, traz à tona nomes de crianças, jovens, mulheres e tantos outros homens que foram mortos pelo estado de coisas que o racismo cria. Por um segundo, George Floyd é Marielle Franco, João Pedro, Agatha Félix, João Vitor, Ahmaud Arbery, David Nascimento, Martin Luther King Jr., Malcolm X, Trayvon Martin e, drasticamente, tantos outros. Mas George Floyd não era nenhum deles, pois cada vida é distinta, em escolhas, gestos, contextos, família, criação, em assinatura de vida e nome.

A morte de George Floyd anda enchendo de chamas (literalmente) as ruas de inúmeras cidades dos EUA, de indignação, conflitos e tensão, pois é uma morte diferente, como toda morte de uma vida deve ser tratada (até a Casa Branca foi ocupada por protestos). Mas é uma morte que colocou “fogo” na luta contra o racismo! Onde isso irá parar? Talvez quando aprendermos a resolver nossas questões com a escravidão, quando aprendermos a mexer com a água da história e com coragem fazer apagar todo esse fogo com diálogo, escuta, assistencialismos, ações afirmativas e muito respeito ao outro. A morte de George Floyd traz à tona tudo isso e uma das melhores representações no cinema, em arte, do que está acontecendo atualmente é o filme “Corra!” (2017), já que há um claro contraste entre uma família branca e seus criados negros, detalhe ainda mais acentuado com a chegada de Chris Washington, o namorado negro de Rose, a meiga, branca e sedutora e filha do casal de médicos Armitage.

(Foto: Reprodução YouTube)

No filme, os detalhes fazem toda a diferença e assim é na vida. Há traços da psicologia social racial estadunidense em cada olhar, ou na cor de roupa dos convidados da família Armitage (contraste entre azul – do partido democrata – e vermelho – do partido republicano), ou a importância de uso do celular, em cenas precisas, como instrumento para denunciar abusos racistas ou estranhamentos com certas atitudes da casa dos Armitage. No entanto, uma das cenas mais simbólicas se dá quando Rose Armitage está em seu quarto, em pose plena, navegando pela internet, com os quadros fotográficos de seus amigos e ex-namorados (todos negros) ao fundo do cenário, enquanto come cereais coloridos e bebe de canudinho um copo de leite bem branco, em simbologia (no dia 29 de maio, em uma Live, o presidente brasileiro, Jair Messias Bolsonaro, brindou com um copo de leite à produção no Brasil). Aqui vale ressaltar, que “copo de leite” tem uma relação com ideais do nazismo, é usado como símbolo pela supremacia branca (“Alt-right”), eugenia pseudocientífica e arianismo, além disso associa, por meio de um dado científico, que homens brancos adultos podem beber mais leite, pois não têm a chamada “tolerância a lactose” que a maioria do adultos do mundo adquirem. Ou seja, não é apenas uma forma sutil de auto promoção, pois a cena em questão do filme “Corra!”, ressalta valores de um passado que não morre, pois não é enterrado. Aí, mais uma vez, o terror em que vivemos é um mergulho em uma vala comum, onde estão os mortos vivos, na qual deveríamos colocar apenas os que morreram e não os que foram mortos.

Há uma grande diferença nos detalhes da vida e de como lidamos com a morte, ainda mais quando a morte é de um negro. Mais um. Executado. Morto. Assassinado. Tudo por escolhas que fazemos em vida. Escolhas políticas. Necropolítica.

O filme de Jordan Peele diz mais. Diz coisas que não cabem aqui, neste artigo. Mas que precisam ser vistas, revistas, refletidas, ditas e profundamente enterradas pelos vivos de todas as culturas democráticas. Se não, quem não conseguirá respirar (“I can’t breathe”, últimas palavras de George Floyd em vida) será nosso futuro!

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Referências:

Indicações ao OSCAR de CORRA!

Atlas da Violência 2019

Bolsonaro tomando Leite em Live

Trailer Filme CORRA!

Ensaio de Achille Mbembe

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Fabrício César de Oliveira, é negro, escritor, poeta, tradutor e doutor em Linguística e Filosofia da Linguagem pela Universidade Federal de São Carlos.