Nos últimos dias, têm sido corriqueiro assistirmos nos noticiários cenas em que indivíduos de classe média tentam humilhar pessoas das classes baixas por causa de suas posições inferiores na pirâmide social.
Em Barueri, no famoso bairro de Alphaville, policiais militares foram ofendidos e ameaçados por um empresário. “Você é um bosta. É um m… de um PM que ganha mil reais por mês, eu ganho 300 mil reais por mês. Quero que você se f…, seu lixo do c…”, disse o empresário.
Nessa mesma linha, o Fantástico exibiu uma reportagem em que um casal discutia com um funcionário da prefeitura carioca que fiscalizava aglomerações em bares. Ao ser questionada por não cumprir o distanciamento social, não usar máscara e, se sentindo ofendida por seu marido ter sido chamado de “cidadão” pelo fiscal, a esposa retrucou: “Cidadão, não. Engenheiro civil, formado. Melhor do que você”.
Já em Santos, litoral paulista, um desembargador, ao ser multado por um guarda municipal por não usar máscara, rasgou a multa, jogou o papel no chão e, no melhor estilo “Você sabe com quem está falando?”, ligou para o Secretário de Segurança Pública do município para que ele “intimidasse” o guarda municipal.
Por fim, na última quinta-feira (6/8), todo o Brasil tomou conhecimento do caso de um motoboy que, por supostamente ter atrasado a entrega de um pedido, sofreu insultos racistas e foi xingado de “favelado”, “lixo” e “semianalfabeto” por um morador de um condomínio residencial de alto padrão, localizado em Valinhos, interior de São Paulo.
Um olhar menos atento sobre a realidade diria que se tratam de casos isolados, protagonizados por indivíduos que apresentam certos transtornos mentais, ou que suas falas foram descontextualizadas. No entanto, parafraseando Will Smith, o preconceito de classes no Brasil (intrinsecamente ligado à questão racial) não está piorando, ele está sendo filmado. Humilhar as classes consideradas socialmente inferiores não é uma prática esporádica dos setores privilegiados da população, é parte constituinte de sua própria identidade.
Para legitimar sua posição social, a classe média não deve apenas possuir determinados capitais econômicos e culturais (que lhes garantem o acesso a bens de consumo requisitados e às melhores ocupações no mercado de trabalho). É necessário, principalmente, reatualizar o DNA escravocrata da sociedade brasileira, através da constante humilhação das classes baixas.
Isso explica porque indivíduos de classe média, mesmo aumentando seu poder financeiro, odeiam os governos petistas por simplesmente colocar em prática algumas políticas públicas que trouxeram certas melhorias nas condições de vida da população pobre.
Rolezinhos em shoppings, negros nas universidades federais e pobres em aeroportos, entre outras presenças indesejadas, são questões que colocam em xeque os históricos privilégios da classe média.
Evidentemente, a grande mídia, como porta-voz da elite, e tendo em seu quadro de funcionários legítimos representantes da classe média, também faz parte desse processo de humilhação das classes baixas.
No entanto, diferentemente dos exemplos citados acima, os articulistas da imprensa hegemônica não vão insultar diretamente um entregador de aplicativo ou desacatar um funcionário de baixa patente das forças repressivas (embora, vez ou outra, algum jornalista deixe escapar o que realmente pensa, como foi o caso de Boris Casoy, ao se referir aos garis como “os mais baixos na escala do trabalho”).
Os ataques feitos pela grande mídia aos setores populares são bem mais sutis, não precisam mencionar sequer uma palavra de baixo calão, permitindo que, demagogicamente, seus articulistas se demonstrem “revoltados” com o tratamento indigno dispensado aos pobres em nosso país.
A mesma imprensa que denuncia o “desacato a autoridade” em Alphaville, apoia incondicionalmente a constante violência policial contra os moradores de “Alfavela”, por meio de programas sensacionalistas como Cidade Alerta, Brasil Urgente e Polícia 24 horas.
Também é oportuno lembrar como as intervenções militares em comunidades carentes das grandes metrópoles são glamourizadas com o intuito de criminalizar a pobreza em nosso país.
A mesma Rede Globo que filmou uma mulher que se julgava superior ao fiscal da prefeitura do Rio de Janeiro, ao longo das últimas décadas buscou naturalizar em suas telenovelas todo tipo de humilhação aos pobres, mantendo a dicotomia “Casa-Grande e Senzala” constantemente atualizada.
A mesma imprensa que condenou a “ação autoritária” do desembargador contra o guarda municipal no litoral paulista, apoiou todas as arbitrariedades cometidas pela Operação Lava Jato, inclusive elevando alguns magistrados ao status de “heróis nacionais”. Rasgar e jogar no chão o papel de uma multa não é pior do que uma condução coercitiva que vai contra todos os direitos minimamente democráticos de um cidadão.
A mesma imprensa que se solidariza com o motoboy que foi agredido verbalmente, ataca os trabalhadores de aplicativos quando se levantam por melhores condições de trabalho e apoiou o desmonte da CLT ocorrido nos últimos anos. Também soou estranho a mídia denunciar o racismo sofrido pelo motoboy, pois, segundo o todo-poderoso do jornalismo global, Ali Kamel, “Não somos racistas”.
Em suma, o empresário de Barueri, a esposa do engenheiro civil, o desembargador de Santos e o morador do condomínio residencial de Valinhos querem o mesmo modelo de sociedade desejado pela grande mídia: a manutenção de hierarquias e as classes baixas submissas.
A grande diferença é que, enquanto os indivíduos flagrados reverberando seus discursos de ódio demonstraram isso explicitamente, os profissionais da grande mídia preferem escamotear seus preconceitos e, assim, poder passar para o público a impressão de “se indignar” com ações que eles provavelmente repetiriam de uma forma ou de outra se tivessem a plena certeza de não estarem sendo filmados.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ. Professor da Escola Estadual “Adelaide Bias Fortes” e coordenador da área de Geografia da Vicenza Edições Acadêmicas. Autor do livro 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV).