Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jair Bolsonaro, o racismo estrutural brasileiro e o silêncio da imprensa

(Imagem: A Brazilian family in Rio de Janeiro by Jean-Baptiste Debret 1839)

Enquanto a questão do racismo surge novamente com violência nos Estados Unidos, o racismo estrutural também prevalece no Brasil — acompanhado por sua parcela de violência diária. Jean-Jacques Kourliandsky lembra que esse racismo, no Brasil, é reprimido, é negado, e é também ignorado pela comunidade e pela mídia internacional — o que a Fundação Jean-Jaurès tem denunciado em diversas ocasiões, principalmente por meio da divulgação do que tem pronunciado e do que tem escrito o sociólogo brasileiro Jessé Souza.

“Desde que vi, naquele terrível vídeo, os 8 minutos e 43 segundos de agonia de George Floyd, não paro de me perguntar: quantos George Floyd nós tivemos no Brasil? Quantos brasileiros perderam a vida por não serem brancos? Vidas negras importam, sim. Mas isso vale para o mundo, para os Estados Unidos e vale para o Brasil. […] Até quando conviveremos com tanta discriminação, tanta intolerância, tanto ódio?” — Luís Inácio Lula da Silva, 7 de setembro de 2020, dia da comemoração da independência do Brasil.

É difícil entender Jair Bolsonaro sem levantar a poeira da escravidão que foi colocada sob o tapete da história brasileira. Como um Jano¹ sul-americano, o Brasil apresenta, ao mesmo tempo, uma faceta sorridente da respeitabilidade democrática e outra faceta racista mais ou menos reprimida.

Normalmente, existem dois tipos de racismo. O primeiro, o racismo institucional, apoiado em mecanismos regulatórios — a África do Sul ou alguns estados do sul dos Estados Unidos ainda o praticavam na segunda metade do século passado. O segundo é o chamado racismo estrutural, que é mais difuso e, portanto, menos perceptível. É o que é denunciado na maioria das democracias que com ele convivem, embora tenham a igualdade de direitos inscrita na pedra de suas leis fundamentais.

O Brasil é um dos países em que o racismo estrutural está presente, e um daqueles em que as práticas discriminatórias são as mais violentas. Há uma violência cultural no cotidiano, mas também há uma violência física contra uma categoria da população pobre e identificável por suas características físicas: negros e indígenas. Contudo, paradoxalmente, o Brasil é um país que tem se beneficiado de uma imagem internacional segundo a qual esse problema é simplesmente abstraído, ignorado, o que o torna inclusive um exemplo de democracia racial.

Esse paradoxo leva a três questões. A primeira delas é a de verificar — no quadro que uma nota, sintética e, portanto, redutiva permite — a realidade do racismo estrutural “à moda brasileira”. A segunda é, partindo do pressuposto de que essa realidade foi demonstrada de forma suficientemente convincente, buscar entender por que o racismo estrutural “à moda dos EUA”, com a morte de um negro norte-americano assassinado por um policial branco, ocupa a primeira página da mídia internacional e mobiliza parte significativa da juventude ocidental e africana, enquanto os 5.000 negros brasileiros mortos pela polícia em 2019 escapam tanto do olhar da imprensa mundial quanto da vigilância moral de grandes organizações não-governamentais. A última questão desse paradoxo a que gostaríamos aqui de nos referir é a do enfoque das razões históricas e sociais do racismo estrutural brasileiro, perpetuado na total indiferença local e internacional, que devem ser questionadas.

I – UM RACISMO ESTRUTURAL

Esse racismo “institucional” está ausente da ordem jurídica brasileira. A Constituição brasileira de 1988 é, para o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, “a mais liberal e democrática que o país já teve, tendo merecido por isso a qualificação de Constituição Cidad㔲. A lei fundamental, de fato, respeita perfeitamente os direitos reconhecidos em uma democracia a todos os cidadãos, independentemente da cor da pele, da religião e do nível de escolaridade³. Esse texto, elaborado no final da Ditadura militar, incorporou os direitos fundamentais da forma mais ampla possível. Em particular, permitiu conceder o direito de voto aos analfabetos⁴, que correspondiam a cerca de 15% da população, ou seja, a parte que compreende os mais pobres e principalmente os negros. A constituição também contemplou a necessidade de reconhecimento do direito à propriedade aos moradores dos quilombos, territórios inicialmente ocupados nos séculos XVII, XVIII e XIX por quilombolas, negros que haviam sido escravizados⁵. Uma lei aprovada em 1989 ampliou o escopo dessas disposições, especificando as penalidades para qualquer ato discriminatório relacionado à raça, cor, religião, etnia ou nacionalidade⁶. Esta lei foi esclarecida e complementada em 1994 e 1997⁷, de modo a melhor definir os crimes e fixar as penas. A história da presença africana no Brasil foi posteriormente incorporada aos currículos escolares⁸. Também foi regulado o estabelecimento de cotas de ingresso, para as universidades públicas e institutos federais de ensino médio, a um número mínimo de vagas que devem ser preenchidas por candidatos não brancos, em seus exames de admissão⁹.

Um exame cuidadoso das realidades sociais brasileiras, no entanto, aponta para a existência de uma discrepância entre a generosidade universal dos princípios expostos nos textos e as experiências de milhões de brasileiros, negros, pardos e indígenas.

Em primeiro lugar, precisamos olhar para os números. Os indígenas são cerca de um milhão, ou seja, entre 0,5% e 1% da população. A colonização europeia e as primeiras décadas de independência tiveram no Brasil consequências demográficas catastróficas para as populações nativas, assim como nos Estados Unidos, na Argentina, no Uruguai, também no México e nos países andinos. Os pretos e pardos, tal como são classificados nas pesquisas realizadas pelo órgão censitário, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constituem mais da metade da população, em um total de 55,8%, ou seja, quase 110 milhões de pessoas. O Brasil foi o país americano que recebeu o maior número de africanos que foram escravizados entre os séculos XVI e XIX, algo em torno de 40% a 45% do total de escravizados africanos no mundo, segundo historiadores. O Brasil também foi o último país americano a abolir a escravidão, em 1888. Com essa história, é compreensível, portanto, que os descendentes de africanos escravizados, apesar das migrações europeias e asiáticas do século XX, sejam maioria no Brasil atual.

Qual é, em 2020, a posição social desses brasileiros, descendentes de populações indígenas subalternizadas ou de africanos deslocados de seu continente em função do tráfico triangular e horizontal, entre Europa, África e as Américas? Existem negros e indígenas no topo da nação? Na alta administração pública e privada? E na mídia? Qual é a participação de negros e indígenas entre os concluintes do Ensino Superior? Qual é a participação de negros e indígenas no índice da população pobre? Quais são suas proporções nos empregos menos qualificados? Onde moram e em que tipo de moradia? Que relação eles mantêm com a ordem pública?

A presença de negros e indígenas no governo federal sempre foi, desde o advento da República em 1889, simbólica. Ela permaneceu da mesma forma após a restauração da Democracia em 1985. Os cargos de Ministro da Igualdade Racial, ou às vezes Ministro do Esporte e Cultura, são tradicionalmente ocupados por negros. Mas nunca houve um homem negro como Ministro da Casa Civil. A mesma observação pode ser feita em relação aos altos cargos públicos. Podemos nomear um determinado juiz da Suprema Corte ou um diplomata, mas esses números pouco disfarçam a ausência de negros e indígenas na administração central.

A representação nacional por meio dos cargos de deputados, senadores e prefeitos é um lugar apenas excepcionalmente ocupado por não-brancos, inclusive em Salvador, na Bahia, uma cidade predominantemente negra do Nordeste do Brasil. Nas eleições legislativas de 2018, dos 513 deputados eleitos, 104 se declararam mestiços e 21 negros, ou seja, 24,3% do total. Além disso, um deputado indígena tornou-se membro do parlamento e 25,9% dos novos senadores se identificaram como afrodescendentes.

Há intelectuais e escritores negros¹⁰, mas eles lutam para serem reconhecidos como tendo direito de acesso à institucionalidade. Os grupos de escritores que representam o Brasil nas principais feiras internacionais do livro são predominantemente brancos. Os organizadores da Feira de Frankfurt manifestaram preocupação há alguns anos, em 2013, obrigando a inclusão de alguns autores negros. A Academia Brasileira de Letras tem quarenta membros, dos quais trinta e nove são brancos. Quando a escritora negra Conceição Evaristo¹¹, cuja obra foi traduzida para o alemão, inglês, espanhol e francês, candidatou-se a uma cadeira na instituição, obteve, em 30 de agosto de 2018, um voto dos quarenta votos totais.

De forma geral, o lugar ocupado pelos negros no ambiente escolar e universitário é, apesar das medidas afirmativas adotadas, inferior ao dos brancos. O analfabetismo ainda é predominantemente um caso negro. Segundo dados divulgados pelo IBGE, em 15 de julho de 2020, 8,9% dos negros com mais de quinze anos são analfabetos. Entre os jovens que abandonaram a escola, 71,7% são negros e pardos, segundo a mesma fonte¹². Esse número deve ser comparado aos publicados pela Unicef, ​​que indicam que 64,1% das crianças brasileiras obrigadas a trabalhar são negras¹³. Os estudantes negros ainda estão sub-representados, embora tenha havido uma recuperação inegável nos últimos anos. De fato, o IBGE indicou que, em 2018, pela primeira vez, a maioria dos alunos (50,3%) eram negros. Mas se a porcentagem de negros entre 18 e 24 anos que frequentavam um curso universitário era de 55,6%, o valor correspondente para os brancos era de 78,8%¹⁴.

Esta subeducação é acompanhada por uma super-representação da população negra nos empregos menos qualificados, com uma presença massiva nos serviços domésticos. Os salários recebidos são, portanto, inferiores aos dos brancos. Em 19 de novembro de 2019, o IBGE informou que o salário médio de um homem branco era de 3.617 reais, o de um negro era de 1.666 reais e o de um pardo era de 1.690 reais¹⁵.

A moradia dessas populações é um espaço degradado. Os bairros periféricos e as favelas, áreas residenciais carentes de serviços públicos, são habitados principalmente por negros e pardos. São guetos sociais e raciais assim como o seu oposto, os “condomínios fechados”, habitados por brancos de classe média e alta. A saúde também é um outro lugar de discriminação. Os negros correm risco sessenta e duas vezes maior de exposição ao coronavírus do que os brancos, segundo o IBGE¹⁶. A taxa de mortalidade de negros com pouca escolaridade vinculados à Covid-19 é de 80,35%, contra 19,65% para brancos com maior nível educacional¹⁷. A conclusão da socióloga feminista e antirracista Sueli Carneiro é a de que “a pobreza tem uma cor no Brasil”¹⁸.

A necessidade de uma compensação em termos de educação e o reconhecimento da participação dos negros na identidade nacional é difícil de ser admitida pela minoria branca, ou para aqueles que se acham brancos. O vandalismo de monumentos representativos da cultura afro-brasileira é frequente; a demonização cristã-evangélica em relação ao candomblé e a umbanda é por vezes acompanhada pela destruição de seus templos¹⁹. Essa violência frequentemente é acompanhada por ataques verbais e físicos ou comportamentos que indicam haver uma hierarquia na avaliação do comportamento baseada na cor da pele. A leitura dos faits divers (notícias de assassinatos, crimes, acidentes etc.) é, desse ponto de vista, bastante instrutiva.

De forma mais sistêmica e com uma impunidade quase total, as forças de ordem, e mais particularmente a polícia militar, desde 1988 sob a tutela dos governadores, mata suspeitos negros, ou supostamente suspeitos, e frequentemente também atinge a sua família ou sua vizinhança. Os números são elevados²⁰ e as circunstâncias destas mortes de responsabilidade dos policiais são frequentemente dramáticas. Apenas para constar, das 6.220 pessoas mortas pela polícia brasileira em 2019, 75% eram negras. Os números correspondentes para a cidade do Rio de Janeiro são de 1.423 vítimas negras de um total de 1.814.

II – O RACISMO BRASILEIRO: UM RACISMO VELADO E/OU IGNORADO

O silêncio da mídia internacional assim como, em grande medida, da mídia brasileira sobre esta realidade é incontestável e paradoxal. Incontestável porque o assunto é pouco ou de modo algum tratado. Paradoxal, na medida em que o racismo é universalmente denunciado em nome da deontologia da mídia.

A conjuntura brasileira, nos últimos meses, tem sido relativamente bem coberta pela imprensa internacional. O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, tem sido frequentemente criticado por sua gestão desastrosa na crise do novo coronavírus, por seus comentários fascistas e por seu silêncio em relação ao combate do desmatamento na Amazônia. A única referência ao racismo estrutural brasileiro, exacerbado pelo Chefe de Estado, diz respeito ao abandono, inegável, a que foi condenada a população indígena. Em várias ocasiões, o assunto foi associado ao da pandemia Covid-19 para sinalizar o impacto avassalador da doença nas comunidades indígenas. Em contrapartida, praticamente nada foi escrito ou mostrado sobre as vítimas negras, as mais numerosas, do coronavírus, assustadoramente ativo nas favelas das grandes cidades.

Em 14 de julho de 2020, a RFI — Rádio França Internacional e diversos meios de comunicação franceses relataram um episódio de violência encabeçado pela polícia em São Paulo, revelando outro paradoxo. Segundo a informação divulgada, uma mulher negra teria sido violentamente contida por policiais que se utilizaram dos mesmos métodos físicos empregados por seus homólogos dos Estados Unidos, responsáveis pela morte de George Floyd. O que é paradoxal aqui é que dezenas de negros foram mortos pela polícia de São Paulo no ano passado, milhares, como vimos, no Brasil, mas a menção a este episódio do contexto brasileiro, por mais regular e massivo que seja, e por isso capaz de chamar a atenção dos meios de comunicação sensíveis a esta problemática, é feito em função da similitude dos eventos racistas ocorridos nos Estados Unidos.

Isso demonstra o poder e a força que adquirem as informações no mundo quando as vítimas norte-americanas têm seus direitos humanos violados, cuja repercussão beneficia tangencialmente o Brasil, como a França e o resto do mundo, cujas violações são noticiadas graças ao eco dessas notícias sobre os EUA, em sua esteira, relegando as demais injustiças cometidas às zonas midiáticas periféricas. Do mesmo modo que a designação “América” ​​foi monopolizada pelos Estados Unidos, um “afro-americano” é universalmente entendido como um cidadão americano de origem africana. Como consequência lógica, mas paradoxal no caso da mídia, se apaga a realidade de um continente onde 90% dos afro-americanos são cidadãos de países latino-americanos e caribenhos.

Um paradoxo suplementar: esta abordagem é aceita pela mídia brasileira, representativa da cultura dominante, que, historicamente, tem atrasado o reconhecimento da realidade majoritariamente negra no Brasil. Assim, ao priorizarem o racismo nos Estados Unidos, eles podem contornar o cotidiano discriminatório brasileiro. O canal televiso Rede Globo, grupo multimídia dominante, organizou pela primeira vez em sua história, no dia 3 de junho de 2020, um debate sobre racismo com falantes negros, por ocasião do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos²¹.

Geralmente, a negação da segregação negra é compensada pelo ativismo universal denunciando a situação das comunidades indígenas, e isso tanto no Brasil como no resto do mundo. Esta mobilização é, incontestavelmente, bem-vinda e necessária, de levar em consideração a situação dessas populações. Além disso, apresenta um duplo interesse. Por um lado, porque ao contrário dos negros que são a maioria no Brasil, os indígenas, poucos em número e vivendo em grande parte em reservas, participam apenas marginalmente da luta por “lugares”. Por outro lado, a temática dos primeiros povos e sua defesa, a partir do indianismo romântico²² que, no século XIX, buscou dotar o Brasil de um ocidentalismo crioulo, permite às elites intelectuais brancas, liberais, de se juntarem ao movimento de seus homólogos norte-americanos e europeus.

Devido ao conforto moral e social proporcionado pelo cenário dominante, minimizando a realidade afro-americana e latino-caribenha, em virtude do interesse que a grande imprensa, os acadêmicos e os atores políticos brasileiros mais estabelecidos têm demonstrado, devido ao controle dos canais de informação globalizados pelos Estados Unidos, a perpetuação “natural” do apagamento midiático dos afro-brasileiros e suas 5.000 vítimas das forças policiais apenas no ano de 2019.

A “sociedade do espetáculo” brasileira e internacional, e as histórias que veicula massivamente, impedem paradoxalmente os negros, tanto Brasil como em outros lugares, de ter acesso à cidadania de valores compartilhados e de serem reconhecidos como cidadãos²³.

III – COMPREENDENDO O RACISMO BRASILEIRO

O racismo brasileiro não tem nada de institucional, ele é estrutural, enraizado em um inconsciente coletivo histórico. Mascarado pela mídia e por um código social discriminatório, ele é visto como evidente, como tendo sido ‘sempre assim’. Mas de onde ele vem? E como compreender a sua origem e a sua perpetuação sorrateira?

A história do Brasil, como a de todas as Américas, é a de uma espoliação — espoliação de terras, espoliação de memórias — por parte de seus conquistadores vindos da Europa. Ao contrário do que ocorreu na esmagadora maioria das colônias africanas, as independências americanas foram feitas pelas elites brancas e assimiladas. Esses “brancos do país” mantiveram afastados, na maioria das vezes pela força das armas, os “brancos da metrópole”, ingleses nos Estados Unidos, espanhóis do México à Argentina. No Brasil, as armas falaram pouco. O arranjo foi feito em família, com uma ‘dança das cadeiras’ monárquicas entre Rio e Lisboa. Ao longo de seu confronto, os “brancos do país” e os “brancos da metrópole” instrumentalizaram as massas indígenas e negras para resolverem suas diferenças.

Os povos indígenas perderam, com as independências dos países, o pouco recurso à proteção real de que poderiam se beneficiar. Guerras indígenas na Argentina, nos Estados Unidos e no Uruguai, semiescravidão nos países andinos e no México²⁴, tiraram, em nome do Iluminismo e da civilização, todas as oportunidades de reabilitação destas populações indígenas, muitas vezes à custa de suas vidas. Os países colonizados, cuja economia se baseava nas plantations, ou seja, no sistema agrícola de monocultura para exportação utilizando, nesses latifúndios a perder de vista, a mão de obra de africanos escravizados, perpetuaram essa forma de exploração humana, em vários casos muito tardiamente — 1865 nos Estados Unidos, 1888 no Brasil. A abolição da escravidão suprimiu a forma institucional mais abjeta de discriminação moral. E isso foi feito sem que nenhuma medida de reparação material, moral ou histórica fossei considerada. As mentalidades que hierarquizam a relação racial e social permaneceram inalteradas. Desde as abolições, foram os senhores que receberam uma indenização financeira para compensar a perda de capital de seu rebanho humano. No Brasil, a memória da escravidão foi apagada. Os arquivos, os contratos de compra e venda de escravos foram queimados²⁵.

“A libertação dos escravos não trouxe uma libertação efetiva. A igualdade afirmada na lei foi de fato negada”. O direito ao voto condicionado à capacidade de ler e de escrever excluía efetivamente os ex-escravos e seus descendentes, como vimos, até 1988. Em nome de seus valores supremacistas, culturais e sociais, os antigos senhores escravocratas privilegiaram a importação de mão de obra estrangeira, branca de preferência. Eles abandonaram seus ex-escravos e importaram mão de obra livre, alemã, espanhola, italiana, portuguesa, japonesa, sírio-libanesa²⁶. O ensino, a literatura, o espírito público inventaram a história de um país branco, iluminado pela Europa, dotado de uma aura benfazeja herdada de populações indígenas, cujos descendentes se encontravam, aliás, próximos das fronteiras da civilização.

Os negros, evocados sob a forma de fantasias sexuais²⁷, de ameaça latente, foram obrigados a buscar nas metrópoles trabalhos pesados e desvalorizados como: estivadores e “chapas”, serviços domésticos, entregadores a serviço da elite. Esta pirâmide social e os valores de apoio que a acompanham se perpetuaram até o século XXI. A democracia racial, fruto da miscigenação apresentada como consentida entre uma escrava negra e um senhor branco, teorizada em 1936 por Gilberto Freyre²⁸, desempenhou literalmente o papel de um tapa sexo validando a perpetuação do poder dos nativos brancos. A democracia racial foi adotada como ideologia oficial pelo “Estado Novo” de Getúlio Vargas e, posteriormente, pela Ditadura militar. Os sociólogos Florestan Fernandes e Jessé Souza denunciaram o caráter atraente, mas falacioso, da “democracia racial”. Eles propuseram uma interpretação da sociedade brasileira herdeira do escravismo²⁹ das plantations, que ainda hoje estrutura as hierarquias sociais, associando de forma original classe e raça. No topo da pirâmide, encontram-se as elites brancas, ricas e que tiveram acesso à educação de prestígio, na base os negros pobres, em situação de discriminação cultural e social, e, entre os dois, os brancos e pardos de classe média, ingenuamente orgulhosos com sua cor de pele. Jair Bolsonaro é um deles. No dia 5 de abril de 2017, durante a sua campanha eleitoral presidencial, ele fez o seguinte comentário sobre os negros quilombolas: “Não servem pra nada, nem mesmo para procriar”.

“A escravidão”, escreveu Jessé Souza, de forma vívida e expressiva, “é o nosso berço”³⁰. Isso nos permite compreender as causas, segundo Florestan Fernandes, “do dilema racial brasileiro, […] como um contraste entre normas ideais (moldadas por um ‘ethos democrático’) e comportamentos efetivos (exclusivistas, que tendem à subalternização do “negro” e do “mulato”)³¹”.

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Notas

¹ N.T.: Jano (em latim: Janus), de acordo com a mitologia romana, foi um deus das mudanças e transições. É frequentemente representado por uma figura masculina com duas faces que olham em direções opostas, uma para frente e outra para trás
² José Murilo de Carvalho. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
³ Artigo 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]”.
⁴ Artigo 14º da Constituição Federal: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei […]”.
⁵ Artigo 68º da Constituição Federal: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
⁶ Lei de número 8.081, de 21 de setembro de 1990, que “Estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discriminatórios ou de preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional, praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza.”
⁷ Lei de número 8.882, de 3 de junho de 1994; e Lei de número 9.459, de 13 de maio de 1997.
⁸ Lei de número 10. 639, de 9 de janeiro de 2003, que se refere à inclusão “no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.
⁹ Lei de número 12.711, de 29 de outubro de 2012, que “dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio”.
¹⁰ Cf. Cuti [Luiz Silva]. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
¹¹ Prêmio Jabuti de Literatura 2015, na categoria ‘Faz a Diferença’ – Prosa, 2017. Foi publicada em francês, em 2017, pelas editoras ‘Anacaona’ e ‘Éditions des femmes’, e entre outras instituições francesas para as quais foi convidada a falar de sua obra, ela gentilmente concedeu uma palestra no Instituto Jean-Jaurès, neste mesmo ano.
¹² Dados do IBGE, publicados pela revista Carta Capital, em 15 de julho de 2020.
¹³ Segundo dados publicados pelo Jornal do Brasil, em 13 de julho de 2020.
¹⁴ Conforme reportagem publicada pelo jornal El País – Brasil, de 20 de novembro de 2019.
¹⁵ Conforme publicado na Folha de São Paulo, em 20 de novembro de 2019.
¹⁶ Ver artigo: O caso George Floyd e a situação do negro aqui no Brasil. In: SRZD, de 4 de junho de 2020.
¹⁷ Cf. Juliana Gragnani. Porque o coronavirus mata mais as pessoas negras e pobres no Brasil e no mundo. In: BBC News Brasil, de 12 de julho de 2020.
¹⁸ Sueli Carneiro. Racismo, Sexismo, e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011, p. 57.
¹⁹ Babalawo Ivanir dos Santos [et al]. Intolerância Religiosa no Brasil: Relatório e Balanço. Rio de Janeiro: Kline-CEAP, 2016.
²⁰ Ver Jean Jacques Kourliandsky, O genocídio cordial dos Negros brasileiros, na edição 1093, publicada no dia 23 de junho de 2020, neste mesmo jornal; Ver ainda Bruno Meyerfeld, As violências policiais no Brasil, Les violences policières au Brésil, “ce sont les États-Unis à la puissance 10” [As violências policiais no Brasil “equivalem aos EUA na 10ª potência]. In: Le Monde, 17 de junho de 2020.
²¹ Paulo Victor Melo. Sobre Globo e racismo: o buraco é mais embaixo. In: Carta Capital, de 8 de junho de 2020.
²² Como exemplifica o romance de José de Alencar, Iracema.
²³ Conferir a esse respeito a entrevista de Jean-Pascal Zadi, no Le Monde, de 8 de julho de 2020. “Não acho normal que na França se conheça melhor a história dos negros americanos que aquela dos negros franceses”
²⁴ No que concerne à servidão “republicana” imposta às populações “indígenas” do Peru, ler os romances de José Maria Arguedas.
²⁵ Essa decisão foi tomada pelo então Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, em 1889. Cf, a esse respeito, Julio José Chiavenato. O negro no Brasil. São Paulo: Cortez, 2012, p. 217.
²⁶ Ver Luciana Jaccoud. “Racismo e República: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racista no Brasil”. In: Mario Teodoro (org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil – 120 anos após a abolição. Brasília: Ipea, 2008.
²⁷ Ver, por exemplo, o romance de Adolfo Caminha. Bom-Crioulo. São Paulo: Martin Claret, 2013.
²⁸ Gilberto Freyre, Maîtres et esclaves [Casa Grande e Senzala], Paris, Gallimard, 1997.
²⁹ Florestan Fernandes. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007; Jessé Souza. A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.
³⁰ Jessé Souza, op. cit., p. 37.
³¹ Florestan Fernandes, op. cit., p. 288.

Texto publicado originalmente em francês, em 07 de outubro de 2020, na seção ‘Internacional’ da Fondation Jean-Jaurès – Paris – França, com o título original “Jair Bolsonaro et le racisme structurel brésilien”. Disponível em: https://jean-jaures.org/nos-productions/jair-bolsonaro-et-le-racisme-structurel-bresilien. Tradução de Denise Aparecida de Paulo Ribeiro Leppos e Allice Toledo Lima da Silveira, revisão de Luzmara Curcino e Pedro Varoni.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É Formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros livros, de “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014).