Quando olho no espelho, o que vejo é minha identidade, minha realidade, minha história. Sei que, para muitos, a imagem no espelho não é trivial e, além de gerar sentimentos negativos e preconceitos, promove atitudes e gestos repulsivos. Mas ter consciência de pertencer a uma raça é um dos fatores que me faz seguir em defesa dos direitos e deveres de ser negro no Brasil, tanto no mês marcado pelo dia da consciência negra quanto nos outros meses do ano.
Respeito é algo que falta na sociedade brasileira; outra coisa que falta, também, é conhecimento. Muitos, inclusive na imprensa, reproduzem o pior legado deixado por Gilberto Freyre para a nossa cultura: a existência da democracia racial no país. Com isso, refutam dados que colocam em xeque esse conceito, pois veem-se pessoas agredirem negros, física e verbalmente, só pela cor da pele; a maioria da população é negra e esses números não repercutem na ocupação do mercado de trabalho; nega-se a história do negro no país antes e depois da “dita” abolição da escravatura; e acusam-se as cotas de proporcionar desigualdades (no entanto, sabe-se que as discrepâncias existem há muito e a reserva de vagas é exatamente um caminho para diminuí-las).
A imagem refletida em muitas manifestações contrárias à existência e ocupação dos negros na nossa sociedade também imprime uma gradação da cor da pele. Argumento esse utilizado por Adrilles Jorge, no programa Morning Show da rádio Jovem Pan, no dia 5 de novembro, ao falar da manifestação realizada em homenagem aos cinquenta anos da morte de Marighella. O comentarista afirmou categoricamente que, pelas fotos, Marighella era branco. Afirmação que contraria a própria definição do revolucionário, um mestiço de pele clara que se identificava como negro, já que era filho de um homem negro com uma mulher branca italiana. Mais um exemplo de ignorância latente da abrangência da identidade negra no Brasil, que vai muito além de uma gradação da cor da pele imposta por uma sociedade altamente defensora dos valores brancos e, portanto, preconceituosa e racista.
Essa discussão sobre o tom da pele de Marighella também reverberou no filme sobre sua vida, já que o ator escolhido tem a pele mais escura. Ora, por favor, isso não significa apropriação da população negra dessa figura importante da nossa história recente. Reforça apenas o pertencimento dele à raça negra. Afinal, é preciso que se diga que a raça negra quer exatamente a declaração política de ser negro, independentemente de ter a pele mais clara ou escura. Porém, sabe-se que a ignorância tem vários braços e ataca por todos os lados só para manter o estado de coisas, infelizmente.
Dito isso, busco manter uma imagem e uma conduta sempre ligadas ao fato inexorável de ser negra e isso me dá o dever de representar de alguma maneira as minhas raízes, com todo potencial que eu possa ter, sem restrição. A busca é constante por oportunidades que fujam dos estereótipos associados aos negros. Esses estereótipos limitam nossas capacidades. O importante, para mim e para muitos, é ser e refletir a imagem de uma negra, consciente e capaz de ser e estar em qualquer lugar, mesmo que, aos outros, gere estranheza, repulsa, controvérsia, ou ainda, reações violentas. Por isso, pensemos todos sobre o que é a consciência negra e busquemos viver realmente em sociedade, respeitando as diferenças de todas as ordens e tendo orgulho da imagem que realmente temos e a que mostramos.
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Valda Rocha é jornalista formada pela Unesp (Bauru) e mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, UFSCar. Foi formadora do Projeto Relações Étnico-Raciais na UFSCar.