O racismo no Brasil intensificou-se e ficou mais homicida. Esta é a conclusão incontornável fornecida pelo Atlas da Violência 2020, publicado no dia 28 de agosto pelo que ainda resta do IPEA (que Bolsonaro se esmera em destruir) e pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
O dado mais chocante talvez seja este: de 2008 a 2018, o número de assassinatos de pessoas negras aumentou 11,5%, enquanto o de outros grupos caiu 12,9%. Ou seja, além de não acompanhar o restante da sociedade e melhorar, a situação se tornou ainda mais grave para os afrobrasileiros.
Quadro inaceitável
Para uma mulher negra o risco de ser assassinada é 64% maior do que para o restante da sociedade; para um homem negro, é ainda maior: 74%. Em 2018, para cada indivíduo não-negro morto, 2,7 negros foram mortos, enquanto as mulheres negras constituíram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil.
Tal quadro, inaceitável em um país civilizado, deixa claro que intelectuais como Silvio Almeida – talvez o acadêmico afrobrasileiro que, desde a morte do geógrafo Milton Santos, melhor combina excelência acadêmica e projeção midiática – estão corretíssimos em sua denúncia de um racismo estrutural, “naturalizado”, inerente ao próprio sistema econômico, e da responsabilidade que a sociedade como um todo – e os não-negros em particular – tem em combatê-lo.
Estímulo à violência
É importante sublinhar que, não obstante o terrível cenário, o período de coletas dos dados foi de 2008 a 2018, ou seja, antes das graves e quase diárias ocorrências de violência racista retratadas na mídia no decorrer da presidência de Bolsonaro, a qual, a se guiar pela sequência de atos de extrema violência contra negros reportadas em frenética sucessão pelo noticiário, vem sendo interpretada por setores das polícias militares como um liberou-geral. As perspectivas para o biênio 2019-2020, em relação a racismo e violência racial são, segundo uma quase unanimidade de especialistas, muito piores.
O período de coleta de dados da pesquisa coincide também com o de maior visibilidade das pautas do movimento negro, em grande parte devido à adoção da política de cotas em universidade e concursos públicos pelos governos petistas. Assim, o aumento do racismo no período leva também a questionar se táticas identitárias radicais – como o “cancelamento” ou o uso distorcido do polêmico conceito de “lugar de fala” como uma forma de desqualificar ou mesmo impedir a expressão de não-negros, mesmo se antirracista – estão resultando de fato eficazes ou, pelo contrário, acabam por acirrar discordâncias entre possíveis aliados e inibir – ou mesmo bloquear – a ação de não-negros.
Fenômeno transnacional
A constatação oficial de que o racismo se agravara muito no Brasil em 2017 e 2018 torna ainda mais nefasta uma percepção intensificada nos últimos meses na na universidade, nos fóruns relativos aos temas, nos setores progressistas das redes sociais, confirmada a cada vez que se noticia um episódio de violência policial racista. Coincide, ainda, com a percepção do agravamento do fenômeno nos EUA, onde, desde o assassinato de George Floyd por um policial, em 20 de maio deste ano, as ruas encontram-se deflagradas em protestos, no bojo do movimento “Black Lives Matter” [“Vidas negras Importam”]. Movimento que ganhou mais força a semana passada, após Jason Blake, um afro-americano, ser alvejado pelas costas por policiais brancos em Kenosha, Wisconsin, perdendo o movimento das pernas.
Duas hipóteses, não mutuamente excludentes, ligam-se ao fenômeno: a primeira, já anunciada, é que o racismo seria estrutural e, como tal, intrinsecamente ligado ao sistema capitalista, o qual ora vive o agravamento de uma dupla crise, sanitária e econômica, a qual estaria levando ao recrudescimento do racismo. A outra, referente a uma conjuntura política específica, a de tanto EUA quanto Brasil estarem, com Trump e Bolsonaro, sob o governo da extrema-direita liberal, a qual, além de intrinsecamente racista, aposta no combinação de ruas deflagradas e violência policial como motriz de desestabilização do sistema e de enfraquecimento do Estado de Direito.
Políticas de representação
Além da medição da violência cotidiana à qual os afrobrasileiros são expostos, outra maneira de detectar o racismo é o exame das chamadas “políticas de representação”, ou seja, do grau de presença dos negros e negras nas artes, no parlamento, nos postos de comando. Se levarmos em conta que, segundo dados oficiais (IBGE, 2019), cerca de 55,8% da população brasileira se declara negra ou parda.
No cinema e na TV, embora o país conte com um contingente respeitável de atores e atrizes afrobrasileiros, são pouquíssimos os protagonistas, bastando registrar que Lázaro Ramos e Taís Aráujo estão entre os únicos que atuaram, respectivamente, como galã e principal estrela de uma telenovela global. No que diz respeito a produtores e diretores, posições do comando na indústria audiovisual, a escassez de representação é quase total.
Política e poder
Nas eleições de 2018, 46.6% do total de candidatos se declararam pretos ou pardos, mas só 24,4% dos deputados federais e 28,9% dos deputados estaduais afrobrasileiros foram eleitos. Tal quadro levou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a determinar, em 25/08, que, a partir de 2022, o dinheiro público usado em campanhas políticas seja dividido de forma proporcional entre candidatos negros e brancos.
Já nas empresas, segundo a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil” (IBGE, 2019), a presença de pretos ou pardos em cargos gerenciais é de 29,9%; entre professores da USP, esse número cai para irrisórios 2,2%.
Afrobrasileiros nas redações
Interesse central deste Observatório, a relação entre mídia e racismo mostra-se também altamente problemática. No que diz respeito à presença de afrobrasileiros nas redações e telas, observa-se um nítido aumento nos últimos anos, com destaque para Flávia Oliveira, Aline Midlej, Thiago Oliveira, Lilian Ribeiro, Flavia Lima (atual ombudsman da Folha de S. Paulo) e, destacadamente, Maju Coutinho, profissional que se tornou um fenômeno de popularidade como responsável pela editoria de meteorologia no Jornal Nacional e hoje comanda a bancada de um dos principais telejornais da Globo.
Mas, assim como Glória Maria, Heraldo Pereira e Zileide Silva em um passado recente, tais presenças, ainda que signifiquem melhoria, constituem ainda exceção em um campo majoritariamente branco. E isso entre os que atuam na linha de frente: se levarmos em conta editorias e posições de comando, a sub-representação torna-se gritante.
Imaginário midiático
No entanto, a questão do racismo na mídia não se limita à porcentagem de afrobrasileiros que nela se destacam. Afigura-se fundamental apurar de que forma os afrobrasileitos são representados pela mídia – uma questão a qual certamente não comporta respostas simples ou únicas, mas que, segundo a maioria das pesquisas acadêmicas relativas ao tema, tende a apresentar estereótipos e um predomínio de caracterizações negativas.
Por estar diretamente ligada à produção de tais representações, é forçoso questionar o papel das práticas diárias de produção da notícia. Por exemplo, em que medida a tendência do jornalismo diário, do telejornalismo e do ciberjornalismo de reportarem um “eterno presente” – imediatismo agravado na era da “informação em tempo real” – acaba por produzir um noticiário que enfatiza a relação entre questão racial e segurança pública, reforçando preconceitos sobre criminalidade que as estatísticas desmentem?
Mesmo quando o jornalismo denuncia o racismo, em que medida a grande concentração de reportagens na violência policial contra os negros, não obstante urgentes, deixa de ser complementada pela abordagem, por um lado, de manifestações comezinhas e diárias de racismo e, por outro, pela atenção à imbricação estrutural entre racismo, economia e sociedade, lacunas que dificultam uma mirada que leve em conta processos cotidianos e naturalizados de discriminação racial na sociedade brasileira?
Racismo e economia
Pois, em artigo na Folha de S.Paulo intitulado justamente “Racismo precisa ser tratado como tema fundamental da economia”, os professores Silvio Almeida (FGV) e Pedro Rossi (Unicamp), alicerçados em autores como Gunnar Myrdal e Arthur Lewis – ambos laureados com o Nobel – apontam que o racismo não se restringe a comportamentos, sendo, na verdade, parte constitutiva do sistema socioeconômico, enraizado nas estruturas da sociedade e normalizado pela dinâmica de funcionamento das instituições.
Mulheres negras pagam proporcionalmente mais impostos do que homens brancos, e ajustes fiscais, especialmente aqueles baseados nos cortes de gastos, tendem a aumentar a desigualdade e o desemprego, afetando proporcionalmente mais a população negra, demonstram estudos. Neles parcialmente baseados, os pesquisadores diagnosticam:
Há, portanto, uma relação estrutural entre pobreza, raça e gênero, que é reforçada pelo funcionamento regular do sistema tributário e é naturalizada –assim como naturalizamos a violência direta contra pessoas negras nas periferias– a ponto de o Congresso Nacional discutir uma reforma tributária com foco na eficiência, deixando de lado o problema da desigualdade.
Questões em aberto
Soa rebarbativo afirmar que tal enfoque, em que macroeconomia e racismo confluem, é extremamente raro nas páginas e telas do jornalismo praticado no Brasil.
Os pesquisadores responsáveis pelo Atlas da Violência 2020, referindo-se a experiências estaduais bem-sucedidas de redução de homicídios de afrobrasileiros, lançam a seguinte questão:
Para o futuro, resta saber se a sociedade e os governos apostarão nesse caminho das políticas efetivas baseadas em evidências e na gestão científica, ou se colocarão as fichas na retórica vazia do populismo penal, do encarceramento em massa e da brutalidade policial, que nunca funcionaram, mas dão votos. (p. 11)
Da resposta a esta questão – e da atenção que a mídia dispense a esta resposta – depende o futuro do combate ao racismo no Brasil.
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Maurício Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: caleiro.mauricio@gmail.com