O ser humano é incoerente por natureza. Não há padrão a ser criado que se adapte a todas as situações. Por exemplo: embora a polarização política nunca vá admitir, frentes de esquerda admiram algumas ideias da direita. O inverso também é verdadeiro. Não raro, buscamos aplicar padrões peremptórios de moralidade, quando moralidade é tudo que nos falta. Dito isso, é justo criticar uma pessoa com a única de intenção de vê-la cair?
O youtuber Júlio Cocielo polemizou, recentemente, com um comentário interpretado como racista por grande parte da mídia. Isolado, tal comentário poderia ser alvo de uma gestão de crise rápida e eficaz por parte de uma assessoria de imprensa. O problema foi o aparecimento de outras manifestações de Cocielo no Twitter, em época na qual nem famoso era. Prints com posicionamentos claramente racistas circularam pela internet.
Ele fez o que podia fazer: em suas redes sociais, implorou por desculpas. Infelizmente, na era da velocidade da informação, ninguém está interessado em ouvir desculpas. As pessoas preferem sumárias condenações. Um ato racista torna uma pessoa racista em sua integralidade? E para sempre? É muito provável que Cocielo nem racista seja. Talvez ele seja o que a maioria dos youtubers é: meninos e meninas imaturos que, exagerando na brincadeira, dizem sem pensar e não entendem o tamanho de sua influência.
Cocielo influencia pessoas, mas não para a formação de cidadãos. Claramente lhe faltou orientação e educação em sua trajetória, de outro modo não publicaria o que publicou. A polêmica a respeito de seu comentário será uma excelente oportunidade de reflexão. Em outras palavras, antes de se acabar com a vida de um jovem, taxando-o de racista, seria justo darmos a ele a oportunidade de mostrar que aquelas manifestações foram atos racistas. Há uma diferença, pois a segunda opção permite ressurreição.
Na mídia, preconceito é oportunidade
Aproveitando a polêmica, diversos artistas vieram a público pedindo boicote ao trabalho do youtuber. Arautos da moralidade surgiram de todos os cantos. Das duas uma: ora tais personalidades protestaram por ideologia, isto é, sentem repulsa e condenam sinceramente o racismo, ora elas cometeram um outro crime, um crime social. Que crime seria esse? Crescer no conceito da audiência esfacelando a carreira de terceiros.
Não apenas famosos, mas também pessoas comuns, costumam utilizar o preconceito como justificativa para destronar alguém que atingiu o sucesso. Fama, dinheiro, isso gera raiva, inveja, pois poucos são hábeis em atingir tais degraus. Os youtubers têm o mérito de construírem enorme audiência independentemente da grande mídia. Mostraram ao mundo que existe vida além da televisão. Isso, certamente, desagradou muita gente.
Outro aspecto é que, na mídia, preconceito vira oportunidade. Basta estourar uma polêmica para figuras conhecidas se manifestarem a respeito. Isso agrega valor e aprimora suas imagens. Na língua dos hipócritas, a frase “condeno o racismo e o machismo” pode ser traduzida como “Marcas, estou limpo, invistam em mim”. Desesperados, outros artistas que nem participaram do caso correram para revisar seu histórico nas redes sociais. Ninguém quer morrer pela boca, ou melhor, pelo teclado.
Racismo é crime! Mas pior que o racismo são pessoas que o usam como um escudo para esconder suas reais intenções. O “boicote” ao youtuber Júlio Cocielo deveria ser estendido a muitos outros famosos, portanto. Recapitulando, somos todos incoerentes. Só não podemos permitir que nossa incoerência se transforme em crimes jurídicos e sociais.
Gabriel Bocorny Guidotti é jornalista e escritor.