Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A função social das ruas

Os paulistanos vêm desenvolvendo, nos últimos anos, o hábito de ocupar espaços públicos, tornando a cidade mais amigável para o cidadão. A recente abertura da Avenida Paulista, por exemplo, é uma das várias manifestações de ocupação da cidade que possuem uma característica em comum: conectar os lugares e as pessoas, refletindo na qualidade de vida dos habitantes e na transformação da sociedade como um todo.

Para o fotógrafo Eurico Duarte, que tem estúdio na Vila Madalena, um dos expoentes da ocupação do espaço público, esse movimento é muito antigo, da década de 70. “Eu lembro como se fosse hoje quando colocaram carpete na rua Augusta inteira, em 73”, conta. “Era um projeto urbanístico, não era só arte. O carpete abafava o som dos carros. A Augusta, naquela época, era como se fosse a Rua Oscar Freire hoje. Imagine a Oscar Freire sem barulho de carro”.

O modelo atual de ocupação parece ter origem nas manifestações de junho de 2013, quando milhões de brasileiros foi às ruas reivindicar do governo uma agenda mais contundente com suas expectativas, de acordo com Duarte. “O que eu sinto, mesmo, é que depois daquelas manifestações o paulistano recuperou a percepção de que a cidade é dele, de que as ruas são plataformas para exposição e troca de ideias, de convivência com os outros moradores”, ele diz. “O Zeca Baleiro diz, mais ou menos, em uma música, que não tem povo mais solitário que o paulistano, e eu concordo. Mas essa coisa de sair e usar a rua para se divertir, para produzir e consumir cultura, conviver uns com os outros, parece estar mudando isso”.

Vila Madalena

Entre todos os bairros e locais da cidade que tem passado por essa transformação, a Vila Madalena, zona oeste, com certeza é um dos mais emblemáticos dessa movimentação dos moradores de São Paulo.

Contando desde sempre com inúmeros bares, restaurantes, galerias de arte, casas noturnas e outras opções de lazer, a “Vila Madá”, como é chamada por seus frequentadores, tem abrigado também espaços colaborativos de trabalho, empresas de economia colaborativa e iniciativas sociais e culturais que buscam promover a reflexão sobre o uso do espaço público para a criação de cidades mais humanizadas, voltadas para os habitantes e não para os carros.

Para organizar esses movimentos, em abril de 2015 foi fundado o Laboratório da Cidade, na rua Medeiros de Albuquerque. O espaço de trabalho colaborativo surgiu com a intenção de abrigar as empresas e iniciativas que pensam em cidades melhores da maneira mais ampla possível, de acordo com André Deak, um de seus dirigentes. “Nós nunca tivemos uma prefeitura que tivesse esse ponto de vista alinhado conosco. Estamos nos preparando para a provável troca de gestão no ano que vem, a luta pela conquista da cidade não pode parar”, ele afirma.

Foto Gabriel Wainer

Rua Medeiros de Albuquerque, São Paulo, (21/11) Foto Gabriel Wainer

E o melhor lugar para começar a pôr em prática o que se prega, é dentro de casa. Após a com a subprefeitura de Pinheiros, a rua onde fica o Laboratório foi fechada para carros aos finais de semana, transformando-se em um espaço de lazer com apresentações musicais, artísticas, opções gastronômicas e cadeiras de praia.

O segundo supervisor de uso e ocupação do solo da Subprefeitura de Pinheiros, Paulo Teles, afirma que a desburocratização dos processos para o fechamento de ruas ou autorização para eventos com mais de 250 pessoas tem papel fundamental nessa nova cultura do paulistano.

“Antes demorava, era complexo, travava muito quando um pedido desses chegava na subprefeitura”, ele diz. “Hoje é mais fácil, o procedimento é relativamente mais simples e é emitida a autorização em pouco tempo. Damos força a esses movimentos”.

O posicionamento da subprefeitura é coerente com as políticas públicas implementadas pela gestão do prefeito Fernando Haddad (PT). A própria redução das velocidades máximas na cidade, tema que gerou polêmica entre os moradores de São Paulo, é parte desse processo de humanização da capital, tirando o protagonismo do carro, meio de transporte individual, e dando espaço para os transportes coletivos, bicicletas e até mesmo pedestres.

Outra das polêmicas promovidas pela gestão foi a construção das ciclovias nas principais vias da cidade. A meta para 2015, segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), é que sejam entregues 400 quilômetros de faixas exclusivas para bicicletas.

Ambulantes São Paulo foto Gabriel Wainer

A Avenida Paulista aberta para as pessoas e fechada para os carros no domingo (15/11) Foto Gabriel Wainer

“Tem algumas ciclovias que eu adoro, tem outras que eu não vejo sentido, mas é tudo muito novo, temos que entender que as coisas não mudam de uma hora para outra”, diz o advogado Paulo Andrade Gouvêa, 64 anos, que tem escritório na Avenida Paulista. “A iniciativa da prefeitura é essencial para a transformação da nossa sociedade. Somos egoístas, não dividimos nada, não trocamos, temos medo uns dos outros. Tem erros? Um monte. Mas eles estão tentando, é importante creditar isso”.

Mais um passo da prefeitura na direção da transformação da cidade foi a criação dos parklets. Para ampliar a oferta de espaços públicos de convivência em São Paulo, a Prefeitura regulamentou a implantação desses espaços, que antes eram vagas públicas de estacionamento, em suas vias públicas.

Aproximando as empresas da gestão urbana, os parklets podem ser solicitados e construídos pela iniciativa privada, reforçando a função social do espaço público como local de encontro e interação.

Descontentes

Há, no entanto, entre os moradores da cidade, aqueles que não gostam dessa movimentação. “Aos finais de semana ficou impossível andar por aqui. Normalmente passo sábado e domingo na casa da minha filha, em Alphaville, onde ainda existe alguma tranquilidade”, diz Maria Helena Wimmer, 67 anos, aposentada, moradora da rua Medeiros de Albuquerque, na Vila Madalena. “O que ninguém entende é que o silêncio, em uma cidade como São Paulo, é luxo”.

A dentista Márcia Branco, que tem consultório na rua Mateus Grou, em Pinheiros, critica a implantação de um parklets na esquina com rua dos Pinheiros. “Colocaram aí sem perguntar para o resto da rua”, reclama. “Acho a iniciativa bacana, acho mesmo. Mas esse aí atrapalha o trânsito”, conclui.

De acordo com o Datafolha, quando o assunto é a redução das velocidades, 47% da população é favorável e 47% contrária. Quando falamos sobre as ciclovias, cerca de 56% das pessoas ouvidas são a favor da construção dessas vias, mas o índice no ano passado era de 80% de aprovação.

A reprovação geral do prefeito, no entanto, alcançou o seu maior nível desde o início da gestão. Se em setembro de 2014 a porcentagem de pessoas que consideravam o governo Haddad ruim ou péssimo era de 28%, em outubro de 2015 esse índice subiu para 49%, o que torna a reeleição pouco provável

“Nós estamos nos preparando para isso”, afirma André Deak, do Laboratório da Cidade. “Nós levamos em consideração a escala humana, não queremos prédios gigantescos, lutamos pelo espaço público e por cidades humanizadas, voltadas para as pessoas e não para os carros”. A maior preocupação, segundo ele, é que o futuro prefeito reveja medidas consideradas progressistas no que diz respeito a ocupação do espaço público e a humanização das cidades.

Tendência

Mais do que tendência, o resgate da real função social do espaço público é uma luta antiga que recentemente ganhou mais força pela necessidade das pessoas de serem escutadas, de lembrarem aos governantes que as cidades ainda são formadas por pessoas.

Elogiadas pelo Wall Street Journal e pelo New York Times, dois dos maiores periódicos norte-americanos, as medidas em direção de uma cidade voltada para os cidadãos de São Paulo inspiram medidas semelhantes em outros países. A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, por exemplo, convidou o prefeito Haddad para inaugurar a Escola de Urbanismo da renomada universidade Science Po, por considerar seu governo um exemplo de gestão cidadã.

De acordo com o New York Times, as gestões anteriores não tinham essa preocupação e teriam “arrasado praças rodeadas de árvores, demolido pérolas da arquitetura nacional e investido pouco em transporte público”.

Para a arquiteta urbanista Rosa Maria Bianco, as medidas tomadas pela prefeitura, apesar de tardias, são coerentes. “As pessoas reclamam porque não conhecem a realidade dos países onde o transporte coletivo é melhor do que ter um carro”, afirma. “Os primeiros passos em direção a essa realidade estão sendo dados, desde a redução das velocidades até os incentivos para carros híbridos, caronas, aplicativos de compartilhamento de veículo, bicicletas e etc.. O paulistano precisa entender isso, e isso vai levar um tempo ainda”.

Independentemente de quem ganhar as eleições municipais de 2016, o movimento feito em São Paulo se inspira em políticas públicas de Nova York, Bogotá, Paris, Londres e Berlim – cidades conhecidas por seus limites de velocidade restritos, ampla cobertura viária para bicicletas e transporte coletivo de qualidade e eficiente – e não deve seguir atrelado a uma gestão, se tornou uma questão da população paulistana.

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Gabriel Wainer é  estudante de Jornalismo