Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Entre o “valha-me Deus” e o “Deus me livre”

É possível acabar de vez com a ritualística pulsão de morte que faz com que os homens se organizem em gangues, “galeras” e exércitos e saiam se aniquilando sádica e masoquisticamente? Não vale apelar para o Capitão Nascimento como válvula de escape, diante da desordem grotesca. Existe um clima de medo, ora real, ora paranoico, que toma conta das ruas e das casas. O ser humano, em tempos de barbárie, vive “entre o valha-me Deus e o Deus me livre e guarde!”, como é o caso de Dona Rute, personagem sofrida que integra o livro Mistura fina (2012), escrito por Vera Casa Nova.

Foto Divulgação

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Com medo do assalto no meio do caminho, parece que desenvolvemos um estilo ziguezagueante de andar. A bala perdida e o sequestro-relâmpago se consolidaram como modalidades explosivas de perigo assustador. O que dizer da violência simbólica desferida pela língua como “chicote do corpo” (Jó 5:21)? O bullying veio para trucidar qualquer chance mínima de autoestima. Todas as pessoas vivas parecem ter dupla cidadania, uma no reino da segurança e outra no reino da violência. Lembro-me de uma expressão criada por Marcinho VP – chefe do tráfico no Morro de Dona Marta, morto em 2003 por estrangulamento em Bangu III, onde estava preso – que ironiza a propalada “cidadania” e revela a vilania do sistema. Trata-se do termo “favelania”.

De forma lírica e romântica, Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho expuseram a “favelania” no doce samba Alvorada (1968): “Alvorada lá no morro/Que beleza/Ninguém chora/Não há tristeza/Ninguém sente dissabor/O sol colorindo é tão lindo/É tão lindo/E a natureza sorrindo/Tingindo, tingindo”. Chegou-se a acreditar genuinamente na rua como espaço lúdico da vida, um tipo de escola da esperteza marota, capaz de amolecer a moral doméstica e oferecer lições que não se aprendem no colégio. A respeito, muito bem ressalta a poética de Francisco K, em Error (2015): “táticas de rua/excelentes tais/como marchar/pelas ruas contra/o trânsito e/conhecer/todas as saídas/a forma de romper/o círculo os/pontos/utilizar estilingues/e bolas de/gude”. Infelizmente, essa paisagem foi perdendo cor, perdendo valor e perdendo realidade. Tempos bucólicos ainda sustentavam a possibilidade de existir “um mundo velho sem porteira”. Tempos bélicos, porém, nos fazem piamente acreditar em câmeras escondidas e cercas elétricas para nos afirmar como “homens de bem”, “cidadãos honestos” e “pessoas bem-sucedidas”. Construímos cadeias inúteis e condomínios fechados e, ao mesmo tempo, desencorajamos a construção e a manutenção de escolas como o melhor investimento de ponta a favor da cultura da paz.

Espantosamente, somos “comparsas” da violência galopante, quando achamos naturais cenas de grosseria gratuita, a exemplo da passagem descrita por Vera Casa Nova, em livro já mencionado: “Dona Rute ficava atrás da porta ouvindo os ruídos que vinham da casa ao lado. Sabia de tudo, mas não falava nada, quando lhe perguntavam se tinha visto alguma coisa. Existia pesada. Os meninos da rua sempre tinham um apelido para ela. Lá vai o tanque de guerra! Ô trouxa de roupa suja, acordou cedo, hein?!” Ou seja, fundamos um Estado beligerante que perigosamente legitima o direito de matar, o direito de eliminar e o direito de desqualificar. Artificialmente, passamos do castigo para a pena e da pena para as medidas socioeducativas, pois ainda impera na prática do Direito o sadismo de vigiar e punir. Zelar e compreender parece muito mais verbos decorativos para sustentar bons tratados de convivência. Só que à distância, de preferência. Neste contexto, no que se resume o ato de comunicar? Celebrar pontes de confiança ou fundamentar muros de desconfiança? Em Arame farpado (2015), a poeta Lisa Alves destaca, com sagacidade, a corrosão do caráter e o declínio do homem público: “Comunico-me com pessoas que nunca vi./Isso não é desenvolvimento espiritual,/isso é desenvolvimento tecnológico – Kardec foi um visionário”. A intimidade ficou intimidadora, e a publicidade, narcísica. A ilusão está a serviço apenas da coleção de sucessos pessoais. E o fracasso, mal acolhido, virou matéria-prima para mais um capítulo da violência revoltosa.

O apelo ético por solidariedade

A violência também se manifesta na perda da delicadeza erótica. Sem alteridade, somos autoritários. Deixamos de amar para possuir. Na terra do “salve-se quem puder”, quem se candidata de verdade a ser guardião do sonho alheio? A brutalidade social aumenta o volume da nossa voz, mas enfraquece o saber dos nossos argumentos. Até quando vamos, com sorriso amarelo, enaltecer a trajetória de pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada na vida, têm, contudo, um arco-íris na alma? Mais uma vez, trago aqui como exemplo ilustrativo deste mecanismo perverso o cotidiano infeliz de Dona Rute, “emparedada” também pela repressão sexual e pela projeção da violência reforçada como espetáculo midiático: “Chegava domingo, ia ver um pouco de televisão no seu Pereira. Ele morava com duas filhas e era viúvo. Às vezes, sentado ao lado de Dona Rute, tirava uma casquinha, muito sem jeito, ela olhava para ele, mas bem que deixava o bate-coxa. As meninas nem notavam: também, coisa de velho nem era para reparar. Ficavam ali até tarde da noite, vendo filmes de bangue-bangue ou ratatatatata… Difícil verem filmes românticos. A cidade engolia qualquer sentimento de afeto. A violência era já engolida por seus habitantes.”

Além de denunciar a miserabilidade humana, devemos principalmente contribuir para a composição de alternativas viáveis no sentido de promover a dignidade coletiva como prioridade máxima em matéria de cidadania exemplar. Embora seja comum o apelo ético em favor de sociedades mais solidárias, como faz Francisco Varela ao conclamar a consciência planetária, ou Sergey Brin ao exigir o escrutínio crítico dos cidadãos sobre a transferência da informação, ou Pierre Lévy ao aclamar abertura democrática das tecnologias da inteligência, persiste a violência em nosso encalço, porque também insistimos em combinar de modo cínico solidariedade e concorrência.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários