Sem muito alarde, está em curso hoje no Rio o maior programa habitacional do país. São lançamentos em série, principalmente em Jacarepaguá, bairro da Zona Oeste, de imóveis que variam de quatro a doze pavimentos, unidades de sala e dois quartos, construídos e vendidos pela milícia em zonas de proteção ambiental. Há edificações também em áreas legais, embora totalmente fora do gabarito.
Aliás, foi-se o tempo em que Carvalho Hosken e Cyrela disputavam o primeiro lugar no ranking das construtoras no Rio. Embora não haja dados que permitam uma comparação entre o Volume Geral de Vendas (índice oficial) dos mundos legal e ilegal, quem acompanha o mercado não vê paralelos com o frenesi da atividade da “milícia incorporações e vendas”, a estrela da construção civil do Rio, a pleno vapor mesmo em tempos de pandemia.
A prefeitura iniciaria a demolição de 21 prédios em Gardênia Azul, mas a Justiça deu uma brecada: através de moradores, os milicianos conseguiram uma liminar contra a derrubada dos edifícios erguidos numa zona protegida na Gardênia, área entre Jacarepaguá e Barra da Tijuca. As unidades estavam à venda a R$ 80 mil, já incluído no valor um período de gato de água, luz e TV a cabo. Ou seja: quem adquirisse o imóvel teria os serviços na chamada modalidade “0800” por um ano, algo assim.
Na Muzema, em Jacarepaguá, onde em abril passado dois prédios desabaram matando 24 pessoas, estima-se que já são mais de 500 edifícios, alguns com 10 pavimentos, construídos nos últimos dez anos. Aliás, as construções na região já foram retomadas e em breve serão entregues novas unidades. Não há ninguém preso e não se fala mais nos 24 mortos. Provavelmente o caso está arquivado em algum escaninho público à espera da prescrição.
Em Rio das Pedras, as construções também seguem em ritmo industrial, embora o gabarito seja menor: prédios de até quatro pavimentos com lojas no térreo. Como nas demais áreas da milícia, ali também a expressão “habite-se” — chancela do poder público de que um imóvel é legal e atende aos padrões de segurança — não faz parte do vocabulário. É uma área 100% comandada pela milícia, que exerce os poderes executivo, legislativo e judiciário. Rio das Pedras é a sede administrativa da milícia no Rio.
Não há ainda um estudo abrangente sobre o tema, mas é evidente a omissão ou mesmo a complacência das autoridades diante da presença, cada vez maior, da milícia no ramo da construção. E não é por acaso. A milícia adota a lógica de mercado da procura e da oferta, e o produto vendido é um intermediário entre a favela e o bairro, que poderia ser batizado de “milícia bairro”.
Este é um diferencial importante da ação dos milicianos: eles constroem bairros e não apenas prédios, a exemplo de Rio das Pedras, o que lhes permite exercer todo o tipo de controle e, com isso, aumentar seu capital político no chamado mundo legal. Já há representantes da milícia no legislativo estadual e municipal, essencial para a assegurar legitimidade e liberdade de atuação na cidade.
Quem compra um imóvel sabe que não conseguirá, ao menos por ora, certificado de propriedade, mas tem a palavra do miliciano, cada vez mais valorizada no mundo legal, de que está relativamente garantido. Ou seja: a ausência de um documento oficial de propriedade não será suficiente para tirá-lo de lá. E se há vendedor de imóveis é porque há comprador. Ninguém investe R$ 80 mil, R$ 100 mil — valor bem maior do que o de um barraco na favela —, por impulso. Quem compra conhece bem como funciona o negócio, direitos, deveres e riscos. Os imóveis são mal acabados, a maioria desprovida de elevador e entregues “no osso”, sem vaso sanitário, torneiras e portas. Há edifícios com até 20 apartamentos por andar. O financiamento é direto com o construtor.
Na maioria dos casos, os engenheiros da milícia adotam o modelo de “scrum” de construção, metodologia empregada em desenvolvimento de projetos do mundo digital, que consiste em fazer entregas em etapas antes da conclusão total: os andares são ocupados de baixo pra cima, à medida em que vão ficando prontos. O sujeito ocupa o primeiro andar enquanto o segundo está sendo construído e assim sucessivamente.
A milícia é a holding, a dona do pedaço e não necessariamente a responsável direta por todas as construções; no modelo de negócios em prática, os milicianos abrem espaço para quem quer construir em seus domínios, cobram por isso e afiançam ao interessado garantias ao longo do processo. São vários os modelos de negócio: os milicianos recebem unidades do construtor e as revendem, se associam a uma empreitada, se encarregam só da venda ou contratam construtores e arcam com todo o negócio.
E se “der ruim” no caminho? Se der ruim, se renegocia tudo. Mas quem é que vai cobrar “direitos” de gente que poderia ser definida como “o poder público sem crachá”, que dispõe de polícia privada, constituição própria e grandes amigos em Brasília?
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Bruno Thys é jornalista. Trabalhou por quase vinte anos no Jornal do Brasil, onde foi de estagiário a editor-executivo. Foi um dos fundadores da revista Veja Rio. Participou da criação do Extra (RJ), jornal em que comandou a redação. Foi diretor da Infoglobo, empresa que edita os jornais e revistas do Grupo Globo e CEO do Sistema Globo de Rádio (CBN, Rádio Globo e outros). Tem prêmios relevantes, entre eles o Esso. É sócio da editora Máquina de Livros.