Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A voz do povo: uma longa história de discriminações

Em uma antológica cena do cinema brasileiro, o jornalista Paulo tapa a boca do sindicalista Jerônimo. O gesto hostil ocorreu instantes após este último tomar a palavra para dirigir-se a um grupo reunido em uma rua de Alecrim, província da fictícia República de Eldorado. Esse ato de interdição, essa violência física foi acompanhada de outra de ordem simbólica, pois o operário ainda tem a sua origem, a sua cognição e o seu discernimento político depreciados: “O povo é um imbecil, um analfabeto, um despolitizado!”¹. O silenciamento e o desprezo das elites e dos que compartilham de sua ideologia pela fala de sujeitos das camadas populares não estão somente representados nas imagens em movimento da sétima arte, mas existem e se repetem em diversos lugares do mundo real, com particular constância e intensidade no Brasil. Também não são exclusivos do tempo presente, porque esses preconceitos têm uma longa história que remonta ao menos até a Antiguidade grega e latina, e passa por sociedades de períodos distintos.

É com essa célebre e trágica cena vivida por um operário imaginário e por tantos outros reais que Carlos Piovezani inicia o seu novo livro intitulado A voz do povo: uma longa história de discriminações. Depois de se dedicar a estudos de práticas e representações da fala no espaço público, de que resultaram trabalhos como a obra História da Fala Pública: uma arqueologia dos poderes do discurso, o linguista e professor da Universidade Federal de São Carlos se propõe a analisar, neste seu mais recente projeto editorial, discursos sobre a fala e a escuta populares materializados em textos que compreendem diferentes períodos e lugares, autores e campos do saber. O livro conta com as recomendações destes eminentes professores nacionais e internacionais, especialistas em campos como os da Análise do discurso, da Retórica e da História das ideias linguísticas: José Luiz Fiorin, professor associado da Universidade de São Paulo; Marc Angenot, professor emérito da Universidade McGill; Elvira Arnoux, professora emérita da Universidade de Buenos Aires; e Jean-Jacques Courtine, professor emérito da Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III.

A voz do povo está organizado do seguinte modo: tem uma introdução, três capítulos e um epílogo. Em sua introdução, Piovezani afirma que os gestos, as propriedades linguísticas e as marcas vocais do povo são objetos de um olhar e de uma escuta que regularmente os depreciam. Baseado em estudos sociológicos, históricos e linguísticos, o autor nos mostra que palavras, construções sintáticas e elementos de prosódia usados pelo povo não são erros, mas apenas maneiras diferentes de manifestação linguística. Determinados modos de falar não são equivocados em si mesmos, mas são, antes, difamados ou estimados em função de construções históricas e de mecanismos sociais e ideológicos. Todo humano saudável nasce com a aptidão para exercer a linguagem. A atribuição de desprestígio à fala de milhões de pessoas das camadas populares se deve ao funcionamento de uma ideologia interessada na conservação de diferenças econômicas e culturais, e na exclusão do povo de espaços de concentração de poder e promoção de mudanças, como o espaço público. Essa ideologia associa o modo como se fala ao que se fala, argumentando que os que se afastam de uma fala considerada prestigiosa ou têm ideias equivocadas ou não têm o que dizer. À essa relação preconceituosa é acrescentada ainda uma outra, a de que o povo também não entende bem aquilo que lhe é dito, que é manipulado com facilidade, que é passional e volúvel.

A existência de gestos, vozes e construções linguísticas mais ou menos valorizados se deve a outra de nossas competências, uma que normalmente passa despercebida, como um fator óbvio, natural, mas que o autor do livro soube identificar e compreender muito bem: a nossa escuta. Piovezani não apenas dedica parte de sua introdução à percepção, como também destina o primeiro capítulo do seu livro a uma discussão histórica e política dos sentidos sensoriais dos seres humanos. Está largamente assentada em nossa sociedade a ideia de que os nossos sentidos seriam exclusivamente naturais, biológicos, e que as impressões que adquirimos por meio deles seriam objetivas. Na esteira de Alain Corbin, historiador francês e precursor de uma história dos sentidos, o linguista dirá que os sentidos, em geral, e a escuta, em particular, também são construídos historicamente. Partindo de um enunciado pichado no muro de um elitizado clube do interior paulista, “Ricos fedem igual”, Piovezani apresenta ao leitor uma série de textos que remontam à Roma antiga e que revelam a dimensão histórica da afirmação de que as massas fedem, de que os pobres cheiram mal. O mesmo se dá em relação à escuta: a sensação de agrado ou desagrado que se sente ao ver e ouvir determinados gestos, expressões linguísticas e variações prosódicas não são experiências puramente naturais, mas são condicionadas por questões históricas, políticas e ideológicas.

No capítulo dois, o autor percorre um longo trajeto histórico, durante o qual aponta uma série de discursos sobre o seu objeto de estudo. Atravessando um itinerário que se estende das sociedades grega e latina antigas ao Brasil contemporâneo, de tratados de retórica no mundo clássico a artigos e reportagens de veículos da mídia conservadora e da progressista sobre greves populares, passando por obras literárias sobre o operariado e manuais de como se dirigir ao povo, o linguista nos oferece uma farta documentação e uma análise arguta de dizeres sobre o desempenho oratório e a capacidade de compreensão de sujeitos provenientes das classes populares. O percurso assinala, não obstante importantes modificações, uma constante em nossa história de discriminações contra a fala e a escuta do povo e as de seus porta-vozes. Essa constante apenas realizará uma curva sutil, mas decisiva, em favor da igualdade e do respeito às manifestações populares na modernidade tardia, ainda guardando muito do seu preconceito. A conservação desse preconceito pode ser identificada até mesmo entre instituições e sujeitos progressistas e adeptos das causas populares.

O capítulo três dispõe de análises de matérias da grande mídia nacional a respeito dos gestos, da voz e da fala de Luiz Inácio Lula da Silva produzidas nos contextos em que ele foi candidato, presidente e ex-presidente. Piovezani nos mostra que o político, de origem popular e comprometido com algumas mudanças sociais em favor das classes desfavorecidas, foi constante e intensamente atacado nessas três condições por diversos meios de comunicação em razão dos atributos populares de sua expressão. Nem mesmo o câncer de laringe que acometeu o ex-presidente o livrou de comentários depreciativos sobre os seus gestos, a sua voz e a sua oratória. O autor nos mostra ainda que manifestações desse discurso preconceituoso, frequentes em veículos reacionários, não são inexistentes em outros de viés progressista e partidários da política praticada pelo ex-sindicalista. A reprodução desses dizeres, materializados mais ou menos intensamente na boca e na pena de diferentes sujeitos, pertencentes a um ou a outro lado do espectro ideológico, evidencia a força, mesmo na era contemporânea, de uma longa história de discriminações. O funcionamento ideológico desse preconceito é, grosso modo, aquele de que falamos inicialmente: Lula falaria errado e, por isso, não teria coisas relevantes ou mesmo nada a dizer. Essa atribuição de erro ao modo como o ex-presidente fala ainda carrega outra consequência: a de que ele seria burro, de que a sua escuta em relação a determinados assuntos seria inferior a de sujeitos ilustrados e inapropriada. Com essas análises, o linguista comprova a sua tese de que uma sociedade hegemonicamente desigual e conservadora como a brasileira encontra e põe em operação diversos meios para calar e menosprezar não apenas os discursos que reivindicam mudanças igualitárias, mas principalmente aqueles que o fazem valendo-se de modos populares de expressão linguística.

Em Alecrim, na fictícia República de Eldorado, o jornalista Paulo, ao calar o sindicalista Jerônimo e menosprezar sua origem social, realiza um ato de fala sobre a fala deste último. Essa metalinguagem que deprecia os gestos, a voz e o modo como os sujeitos do povo se expressam linguisticamente não é exclusiva, como revela Piovezani, das telas de cinema, mas se repete com constância e intensidade no Brasil. Jerônimos, Lulas, Josés e Marias oriundos das camadas populares são seus alvos privilegiados. Mas, apesar de hegemônica, em função da ideologia e dos mecanismos sociais que a materializam, essa metalinguagem não é única em nossa sociedade. Há casos em que a fala sobre a fala produz efeitos libertadores e contribui para a diminuição das desigualdades sociais. Em seu epílogo, o autor reivindica a necessidade de uma metalinguagem da emancipação popular, uma fala sobre a nossa própria fala que possa identificar e combater as atribuições infundadas, os preconceitos de classe e os estigmas a determinados modos de dizer construídos histórica, política e ideologicamente. Esta prática metalinguística não só atua como uma força em prol da igualdade e do respeito às diferenças, mas também reconhece e legitima o que os sujeitos do povo têm a dizer. Não sem razão, Fiorin diz que “este é um livro que todas as pessoas comprometidas com a mudança de uma sociedade tão desigual como a nossa precisam ler”².

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¹ Terra em Transe. Direção de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Mapa Produções Cinematográficas, 1967.
² Piovezani, Carlos. A voz do povo: uma longa história de discriminações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.

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Manoel Sebastião Alves Filho é doutorando no Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos e pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Estuda a produção de discursos sobre as relações entre os seres humanos e os animais.