A Rede Globo deflagrou, na semana passada, em longas matérias diárias em seus telejornais — JN à frente — uma campanha de demonização do servidor público, tornado bode expiatório da economia nacional devido ao “peso” que seus salários representariam para os cofres públicos. Tudo de acordo com “pesquisa” do think tank neoliberal Instituto Millenium, única fonte de dados, tratado como se IBGE fosse.
As matérias relativas ao tema, que se repetiram de segunda a sábado nos telejornais da emissora – e, em versões genéricas, seriam difundidas por outras emissoras, seja na TV aberta ou a cabo, tornando-se uma verdadeira campanha — são muito parecidas entre si e têm algo em comum: o péssimo jornalismo. Não ouvem o(s) outro(s) lado(s), não ponderam, não questionam ou correlacionam os dados apresentados, não comparam a situação brasileira com a de outros países, só dão voz a “especialistas” rigorosamente afinados às premissas do Instituto Millenium, calando outras muitas vozes, muitas das quais mais qualificadas.
Violações do bom jornalismo
Tais distorções, dissonantes do bom jornalismo, levariam o cientista político Wilson Gomes (UFBA) a observar, em texto cuja primeira versão saiu nas redes sociais e que, engordado, seria publicado pela revista Cult:
“O Jornal Nacional em particular e o jornalismo da Globo em geral têm isso. São capazes de fazer grande jornalismo, mas só quando os seus editores permitem e sobre certos temas. Quando, entretanto, se trata de outros temas viram basicamente meios de promoção de determinados pontos de vista, hiperparciais, sem problema algum com o uso de informação inexata, dados enviesados e aquela seleção malandrinha dos especialistas que darão as sonoras para parecer que não é um editorial, mas uma matéria factual.”
O resultado é um misto de campanha publicitária pela “reforma administrativa” e tese: há muitos servidores públicos, eles ganham salários desproporcionalmente altos, é deles a culpa pelo alegado péssimo nível dos serviços públicos no Brasil. Não há checagem destas alegações, até porque desse modo elas correriam o risco de ser desmentidas — ou ao menos relativizadas — pelos fatos. As matérias, convém notar, não se limitam a apontar problemas. Elas apresentam soluções, vocalizadas pelos tais “especialistas”: automatização massiva, corte de salários, fim da estabilidade, limitar ao mínimo contratações pelo Estado.
Jornalismo ou Publicidade?
Algumas dessas medidas demandam alteração no texto constitucional, com aprovação de pelo menos três quintos do plenário da Câmara e do Senado. Por isso mesmo, a lavagem cerebral, digo, a campanha difamatória contra os servidores precisa começar cedo, de modo a que seus preceitos se naturalizem no senso comum (qualquer semelhança com nosso passado recente não é mera coincidência). Eis a razão do JN exibir essa peça publicitária da “reforma administrativa” de Guedes, travestida de jornalismo.
Em relação ao caráter publicitário da matéria que deflagrou a campanha, o cientista social Samuel Braun observa, mordaz: “O Jornal Nacional passou nove dos seus 30 minutos defendendo o Teto e corte de gastos, o corte de salários e a demissão de servidores públicos. Se fosse um comercial, pela tabela, teria custado R$ 11.880.000,00”.
Alhos e bugalhos
Presente já na primeira das matérias, e martelada durante a semana em vários telejornais, uma das conclusões da “pesquisa” do Instituto Millenium mais destacadas é que o governo gastaria mais com servidores do que com Educação, Saúde ou saneamento básico. A inadequação dessa comparação entre coisas completamente diferentes é uma das incongruências destacadas pelo mencionado Wilson Gomes:
“O enquadramento é uma grotesca manipulação: Por que comparar duas grandezas incomparáveis como “servidores” e “serviços públicos”? É possível a entrega de serviços públicos sem servidores? Servidores da área de educação não são custo educacional? E os da saúde? Não estavam faltando pessoas na Previdência um dia desses, para escândalo do próprio Jornal Nacional, para analisar demandas e entregar um serviço público ao cidadão? Não é o mesmo telejornal que repete todos os dias que faltam fiscais ao Ibama, auditores à Receita, médicos nos postos de saúde, defensores públicos e professores nas escolas? Afinal, faltam ou sobram? O cidadão brasileiro precisa saber que não dá para reclamar da falta de serviços e servidores públicos, portanto, da falta de Estado, e ao mesmo reclamar que há muito Estado e servidores públicos demais. É papel do jornalismo ser honesto quanto a esse dilema e apresentar de maneira clara e íntegra o que está em jogo, até para o cidadão decidir por si mesmo se ele quer mais ou menos Estado.”
Incoerências cabais
A contradição apontada por Gomes evidencia-se ainda mais quando levamos em conta duas equações: a primeira, baseada nos dados mais recentes disponibilizados pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), referentes a 2015, compara o percentual de servidores públicos em relação ao total de trabalhadores em 33 países desenvolvidos ou em desenvolvimento. O Brasil fica em 28º lugar, o que desmente de forma cabal o alegado inchaço do setor público do país. A outra equação, implícita no texto do professor baiano, contradiz de forma frontal os apelos ao “enxugamento” do Estado ora onipresentes na mídia nacional: a enorme carência do país em áreas como mobilidade urbana, saneamento básico, Educação e Saúde – sendo que nestas duas últimas há um problema específico de falta de pessoal qualificado, devido justamente aos baixos salários oferecidos (problema que a crise com os médicos cubanos explicitou didaticamente).
Precisa-se, portanto, é de mais investimento e mais pessoal, não menos. Trata-se, em última análise, de definir prioridades. O que é mais importante para o país: a saúde e a educação da população ou satisfazer o mercado financeiro?
A opinião pública contra o Estado
A resposta tem sido evidente, seja do governo de turno, seja da mídia que, no que concerne a políticas econômicas de orientação neoliberal, o tem apoiado incondicionalmente. A esse respeito, observa Paulo Kliass, em artigo na Carta Maior:
“Como a ideia-força do projeto geral é fazer terra arrasada do que ainda existe da presença do Estado prestador de serviços públicos, o caminho passa por estrangular a administração estatal e matá-la por inanição. Nada mais útil na estratégia de destruição do Estado do que jogar a opinião pública contra ele. O blá-blá-blá é bastante conhecido: fonte de corrupção, salário de marajás, bando de vagabundo com salários elevados, etc., etc. E aí fica a tal da “disputa de narrativa”, com os grandes órgãos de imprensa fornecendo todo o apoio necessário às teses e às propostas do financismo. No imaginário popular, fica gravada a figura do servidor público com o salário elevado do promotor e com a impunidade do juiz.”
Perguntas retóricas
Finjamos, porém, só a título de hipótese, que Guedes, o Instituto Millenium e a mídia estejam certos, e uma reforma administrativa seja mesmo imprescindível. Alguém acredita, sinceramente, que os parlamentares encastelados no Congresso, vão cortar ou limitar seus próprios salários? Que Guedes e os parlamentares vão limitar os salários e caros penduricalhos de juízes, promotores e desembargadores? Vão cortar ou limitar os salários do presidente, dos ministros e da entourage toda?
Algum leitor ou leitora acha mesmo que Guedes e os parlamentares vão cortar ou limitar os salários dos militares, nova casta do país, poupados nas reformas trabalhistas e previdenciárias, recentemente contemplados com mais dois abonos no valor de R$ 7.000?
(Não se trata aqui, com estas questões, de advogar pelo achatamento salarial de carreiras relevantes para o Estado. Pelo contrário: rigorosamente observado o limite salarial constitucional — o que há tempos não ocorre —, é saudável e desejável que cargos de alta responsabilidade ou que exigem anos de estudo sejam devidamente remunerados. Além da própria necessidade de uma reforma administrativa, questiona-se: 1) A transgressão à lei, com mordomias que driblam o teto constitucional e resultam em salários de oito dígitos; 2) Que carreiras como as de médico ou de professor universitário, que exigem longo período de preparação, não sejam contempladas por salários minimamente condizentes; 3) O descritério implícito em isentar de uma eventual reforma os membros mais bem remunerados do serviço público.)
A conta, por favor
Levando em conta os preceitos neoliberais orientadores da “reforma administrativa” e o histórico das “reformas” recentes, mostra-se muito mais prudente apostar que eles vão é cortar salários e vagas de professores, médicos, enfermeiros; de técnicos qualificados nas áreas de Meio Ambiente, Educação, Saúde, Direitos Humanos; das camadas médias do funcionalismo federal, que já hoje lutam pra sobreviver com um salário defasado.
E que, assim como ocorreu com as reformas trabalhistas e previdenciárias, também a tal “reforma administrativa” não vai adiantar absolutamente nada em termos econômicos. Em compensação, vai permitir ao governo Bolsonaro humilhar ainda mais os professores, médicos e servidores, além de piorar muito os serviços educacionais, de saúde, DHs e ambientais, facilitando, junto à opinião pública, o sucateamento e a privatização dessas áreas, objetivo final do atual governo.
Modelos defasados
“Cloroquina neoliberal” — assim o já citado Samuel Braun qualifica a proposta de “reforma administrativa”, baseada, segundo ele, em premissas econômicas datadas:
“Não só todos os países do mundo saíram das recessões com aumento de gastos, como há 90 anos isso está documentado, teorizado e estabelecido na história econômica e mundial. Mais: todos os países que se tornaram potências, o fizeram com gastos em grandeza sempre maior que arrecadação: o oposto de “equilíbrio fiscal”. A Teoria Quantitativa da Moeda já foi abandonada pela ciência econômica desde o século passado. Nenhum Banco Central do mundo a usa. Nenhum. Desde 2008 o rei está nu sobre déficit causar dominância, aumento de juros ou qualquer desses fantasmas. Dados, fatos, tão claros e consolidados como o heliocentrismo. Mas a gente permanece vendo terraplanismo 24h por dia na TV.”
Interesses midiático-financeiros
Com o endosso dos barões da mídia — Marinhos à frente —, a campanha pela “reforma administrativa” tende a continuar a ser martelada diariamente nas televisões, sem contraponto, sem ponderação, sem apuração — o oposto do bom jornalismo. Mas, afinal, não se trata mesmo de tal métier (a não ser na aparência), e sim de arar o terreno ideológico para a efetivação da próxima e decisiva etapa do processo de desmantelamento do que resta dos direitos sociais e trabalhistas iniciados na Era Vargas — algo que as redes televisivas, como parte de grandes oligopólios midiático-financeiros, têm direto interesse.
Até agora, aprovadas as reformas trabalhista e previdenciária, os planos de Guedes têm dado certíssimo: os super ricos foram os únicos que lucraram durante a pandemia.
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Maurício Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).