Friday, 20 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O “terraplanismo geopolítico” da Folha de S.Paulo

(Foto: Wikimedia Commons)

Nos últimos anos, a imprensa hegemônica brasileira tem promovido intensas campanhas de combate às chamadas fake news. Trata-se da tentativa de contrapor os absurdos, teorias da conspiração e falsificações científicas presentes no espaço virtual com os discursos pretensamente neutros e supostamente comprometidos com a verdade dos grandes grupos de comunicação.

No entanto, essa questão se torna bastante controversa quando os próprios veículos da mídia hegemônica produzem matérias que parecem ter saído das piores teorias da conspiração presentes na internet. Este foi caso do artigo “Em live, PT e ditadores latino-americanos celebram 30 anos do Foro de SP”, assinado por Fábio Zanini, publicado na Folha de S.Paulo na última sexta-feira (31/7).

A live em questão foi organizada pela direção do Partido dos Trabalhadores e contou com as participações dos presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro; da Nicarágua, Daniel Ortega e de Cuba, Miguel Díaz-Canel. “Ditadores”, segundo a Folha.

De maneira resumida, “Foro de São Paulo” é a denominação pelo qual ficou conhecida a conferência criada em 1990 por partidos e movimentos sociais de esquerda da América Latina e Caribe. Seus principais objetivos são propor alternativas às políticas neoliberais e promover a integração latino-americana no âmbito econômico, político e cultural.

Entretanto, muitos usuários de redes sociais, e até alguns órgãos da grande imprensa brasileira, insinuam que o Foro de São Paulo foi uma “organização secreta” até 1997, contava com a participação das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) como membro efetivo e tem como principal objetivo implantar o comunismo na América Latina.

Em outros termos, podemos dizer que as afirmações descabidas descritas acima estão para a análise geopolítica assim como a “Terra Plana” está para a Astronomia. Um total absurdo, facilmente refutável pela realidade.

Uma apreciação minuciosa do próprio Estatuto do Partido dos Trabalhadores constata que a palavra “comunismo” sequer é mencionada (ou então poderemos pensar que o plano petista para instalar uma ditadura do proletariado é tão secreto que, para não levantar suspeita, estrategicamente deixam de citar o “comunismo” em seu estatuto).

Um dos principais “argumentos” que sustentam a ideia de que o Foro de São Paulo pretende implantar “regimes totalitários marxistas” na América Latina parte da falaciosa premissa de que, nas últimas décadas, boa parte das nações de nosso subcontinente passou a ser governada por “ditadores comunistas”. Aliás, essa grotesca falsificação histórica já está explicitada no próprio título do tendencioso artigo de Fábio Zanini.

Conforme a realidade nos mostra, independentemente de concordarmos ou não com seus direcionamentos políticos, Maduro e Ortega foram eleitos e reeleitos em processos eleitorais dentro das normas constitucionais e com a garantia de direito a voto para todos os cidadãos maiores de idade indistintamente.

Portanto, a definição de um determinado chefe de Estado como “ditador” – feita não apenas por Zanini e pela Folha, mas pela grande mídia de maneira geral – não está relacionada, necessariamente, à análise da situação política de um determinado país. Se um presidente é aliado dos EUA e das outras potências imperialistas, automaticamente, é “democrata”; caso demonstre o mínimo de obstáculo aos interesses de Washington, logo é “ditador”. Simples assim.

Para os principais órgãos de comunicação, “democráticos” são os países que recentemente passaram por golpes de Estado (como Honduras, Paraguai e Bolívia) ou o autoproclamado presidente da Venezuela, Juan Guaidó.

Imaginem, por exemplo, se um político ideologicamente à esquerda, do nada, declarasse ser o presidente da Colômbia? Quais seriam as reações dos articulistas da mídia brasileira?

Porém, o texto de Zanini não se trata de um ingênuo equívoco geopolítico. Representa, em essência, mais um capítulo dos inúmeros ataques midiáticos ao PT, associando o partido às “sanguinárias ditaduras de Cuba, Venezuela e Nicarágua”. Em síntese: não bastou ter tirado o PT do governo federal em 2016; é preciso, sumariamente, eliminá-lo do próprio cenário político nacional.

Demonstrando o forte caráter colonizado da linha editorial da Folha de S.Paulo, o texto de Zanini ainda buscou desqualificar as denúncias feitas pelos membros do Foro de São Paulo durante a live sobre os históricos ataques militares, econômicos e simbólicos dos EUA ao seu quintal latino-americano e enfatizou que o evento “teve uma audiência pífia”, pois o Foro “perdeu influência com o refluxo da onda vermelha”.

Não deixa ser irônico observar um veículo midiático que sempre esteve na linha de frente dos golpes de Estado que ocorreram no Brasil se dirigir a um presidente como “ditador”. Tudo isso sem falar que, para a Folha, o regime militar brasileiro – que perseguiu, torturou e matou – foi apenas uma “ditabranda”.

Não obstante, este “terraplanismo geopolítico” não é exclusividade de Zanini, tampouco do periódico da família Frias. Trata-se de uma prática bastante comum entre conhecidos nomes da grande imprensa. Em sua conta no Twitter, a apresentadora do telejornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, já afirmou que “Hitler fundou o PT da Alemanha”.

Nessa mesma linha, Rodrigo Constantino apontou que “o nazismo é o filho que a esquerda não assume”, mesmo que o próprio Hitler, em seu famoso livro Mein Kampf, não tenha se furtado em demonstrar o seu total repúdio a tudo que minimamente remeta à esquerda política.

Por sua vez, Felipe Moura Brasil, em artigo publicado no site da revista Veja, afirmou que “o PT salvou da extinção o movimento comunista latino-americano por meio da fundação do Foro de São Paulo”.

Evidentemente, todo indivíduo tem o direito de criticar Maduro, Ortega e Díaz-Canel. No entanto, utilizar rótulos incompatíveis com a realidade, e que, por si só, já trazem uma forte carga semântica de juízo de valores, não é, em hipótese alguma, o caminho para um debate público minimamente razoável, ainda mais em um veículo de comunicação de larga escala.

Sendo assim, levando em consideração os exemplos citados neste artigo, não é nenhum exagero afirmar que, no tocante à divulgação de fake news, distorções políticas, teorias da conspiração e falsificações grosseiras sobre o cenário geopolítico, as redes sociais têm alguns articulistas da grande mídia brasileira como poderosos concorrentes discursivos.

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Francisco Fernandes Ladeira é mestre em Geografia pela UFSJ e professor da rede pública estadual de ensino em Minas Gerais. Autor dos livros 10 anos de Observatório da Imprensa: a segunda década do século XXI sob o ponto de vista de um crítico midiático (Editora CRV) e Crônicas no Jornal O Tempo: o olhar de Francisco Ladeira sobre o mundo contemporâneo (Vicenza Edições Acadêmicas).