Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Quanto custará ao jornalismo aceitar o dinheiro de Google e Facebook?

(Foto: Nathana Rebouças/Unsplash)

Têm sido cada vez mais frequentes as ações de big techs para “salvar o jornalismo”. São programas de treinamento e capacitação, impulsos para a inovação, desenvolvimento de soluções tecnológicas e até incentivo a pequenos e grandes negócios. Entre as corporações preocupadas com o jornalismo, destacam-se Google e Facebook que têm feito grande alarde de seus gestos em toda a parte. Em um cenário de crise catastrófica no setor, esses movimentos deveriam ser comemorados, mas não podemos nos enganar: há um preço a pagar pela ajuda dos maiores conglomerados do planeta. Resta saber se jornalistas e organizações de mídia estão dispostos a arcar com as consequências de receber recursos daqueles que não são propriamente seus aliados.

Há, pelo menos, duas razões para que o jornalismo olhe com desconfiança para Google e Facebook: eles contribuíram para tornar mais aguda a sua crise financeira, e eles ajudam a disseminar notícias falsas e discursos de ódio. Em menos de duas décadas, as duas big techs sugaram imensos oceanos de verbas publicitárias que antes irrigavam os negócios jornalísticos. Hoje, estima-se que, juntas, elas abocanhem dois terços de tudo o que se gasta com publicidade na internet mundial. Dinheiro é um recurso escasso e inelástico. Quer dizer: para ir a um lugar, ele tem que sair de outro. Neste sentido, é claro que Google e Facebook drenaram grande volume daquilo que era a principal forma de sustentar jornais, revistas, sites e emissoras de rádio e televisão mundo afora. Não é, portanto, exagerado dizer que Google e Facebook colaboraram com a crise, ajudando a quebrar muitos negócios no setor. Alguém poderá dizer que os serviços de anúncios que eles criaram vêm viabilizando também parte do mercado, mas não vamos tapar o sol com a peneira: depois de Google e Facebook, o mercado jornalístico encolheu em tamanho e pluralidade, seus ganhos reduziram e as “oportunidades” criadas não reverteram a crise.

Para além disso, é cada vez mais claro que as big techs são os motores mais potentes para difusão de notícias falsas, discursos de ódio e teorias conspiratórias. É nesses ambientes que a ultra-polarização das sociedades é intensificada e um rizomático ecossistema de desinformação floresceu e se estabeleceu. Alguém poderá dizer que Google e Facebook oferecem apenas as plataformas onde isso acontece e que a responsabilidade é das pessoas e grupos que se dedicam a isso. De novo: não podemos fechar os olhos para a realidade. Google e Facebook não fornecem só os ambientes onde mentira e intolerância se espalham, mas também definem os termos de uso e têm total controle sobre os algoritmos que regem a distribuição dos conteúdos. Isto é, poderiam coibir o ódio com mais firmeza e ajudar a frear a desinformação, mas fazem muito menos do que está ao seu alcance por uma razão simples: isso afetaria o coração de seus negócios. Google e Facebook vivem à base do uso de suas plataformas e da disseminação de conteúdos viralizantes, independente se são verdadeiros ou não, se são socialmente inflamatórios ou não.

Porque ajudam a quebrar empresas jornalísticas e porque contribuem para espalhar desinformação, Facebook e Google não são amigas do jornalismo, nem estão genuinamente preocupadas com ele. Mas por que eles vêm lhe estendendo a mão?

O investimento

Vamos pegar o exemplo brasileiro. O país é o principal mercado consumidor de notícias e entretenimento da América Latina, certamente uma das mais atraentes vitrines para qualquer fornecedor de produtos ou serviços. Aqui também o jornalismo enfrenta severas dificuldades para manter empregos e empresas, mas quantas fundações locais ou poderosos fundos de investimento incentivam o negócio de notícias no país? Talvez não caibam nos dedos de uma mão… Quantos super-ricos tentam “salvar o jornalismo” local? Embora o país tenha dois nomes de peso entre os 100 maiores bilionários do planeta, não se ouve falar de boas ações de Joseph Safra (56º na lista da Forbes) e Jorge Paulo Lemann (86º), que juntos acumulam mais de 40 bilhões de dólares. O jornalismo nacional deveria esperar essa ajuda? Melhor não…

Google e Facebook criaram programas de auxílio ao jornalismo porque esses gastos cabem em suas planilhas, não custam tanto e causam ótima impressão social.

A Google News Iniciative alardeia que quer construir “um futuro mais forte para o jornalismo”. Para isso, atua em três planos: cria produtos “para atender às necessidades das organizações de notícias e expandir seus negócios digitais”; firma parcerias “para resolver os desafios mais importantes da indústria jornalística”; e desenvolve e apoia “programas para impulsionar a inovação” no setor. É uma estratégia abrangente, robusta e muito atenta às demandas de profissionais e empresas. Ao mesmo tempo em que oferecem cursos de capacitação e ações de educação para a mídia, promovem gincanas de inovação, apoiam meios como Azmina, Jota, Estadão e O Globo, e criam projetos como a Rede Digital Premium de Jornais e o Impacto.Jor. As soluções apresentadas pelo gigante do Vale do Silício passam todos por seus canais, como o YouTube, GooglePlay e Google News. Fora do Brasil, a iniciativa do Google alcança associações empresariais como a Global Editors Network, Online News Association e Associação Mundial de Jornais, passa por centros formativos e escolas de jornalismo, como o Poynter, e alcança empreendimentos de qualificação profissional, como o Trust Project (Projeto Credibilidade, no Brasil).

Facebook tem sido menos agressivo nesse mercado, mas está por trás de iniciativas como o recém-lançado curso da Abraji “Reconstrução do Jornalismo Local”, o Atlas da Notícia, o robô Fátima (de Aos Fatos) e o projeto Vaza Falsiane, ambos dedicados a combater notícias falsas. Aliás, o projeto Comprova, consórcio nacional de veículos para checagem de fatos, tem apoio de Facebook e Google. Você leu certo: Facebook e Google ajudando a combater o ambiente de desinformação que tanto alimentam e fazem crescer…

É importante dizer que tem muita gente séria, competente e comprometida com o jornalismo concorrendo nessas frentes e este texto não é um julgamento ético de suas iniciativas. Sem linhas estatais de financiamento e sem fontes privadas locais de auxílio, jornalistas e organizações de mídia brilham os olhos quando Google e Facebook anunciam disposição para ajudar. A situação é tão dramática que não precisa muito: basta que as big techs criem programas como o Inovation Challenge e o Google News Lab, ou ainda os aceleradores de Vídeo Digital e de Notícias Locais, do Facebook. Profissionais, coletivos e até grupos de mídia bem estabelecidos disputam a cotoveladas as oportunidades oferecidas. A crise faz com que todos busquem o escasso dinheiro disponível.

Apoiar o jornalismo, mesmo que com recursos muitíssimo limitados, é um ótimo negócio para Google e Facebook. Primeiro porque adoça seus balanços sociais, pois investir em jornalismo é apoiar a democracia, fortalecer as instituições e defender a liberdade de expressão. Segundo porque aumenta o uso de seus produtos por profissionais e empresas, criando verdadeira dependência de pequenas redações às suítes de serviços Google/Facebook. Terceiro porque, ao estender a mão para empresários e jornalistas, ajuda a uniformizar o discurso social e atenuar eventuais pressões do público. Despejar alguns milhões de dólares em ações difusas e bem capilarizadas causa uma impressão de que as big techs estão mesmo ajudando o jornalismo, e que apenas boas intenções liberam os caixas dessas gigantes da internet. Sejamos francos: it’s just business, baby!

A fatura

Não podemos nos dar ao luxo de sermos ingênuos. Faz tempo que o slogan “don’t be evil” não faz mais sentido para o Google. Faz tempo que Facebook deixou de ser só uma rede social de amigos. Os maiores players da internet estão entre as marcas mais valiosas do capitalismo global, e seus movimentos interferem no desenvolvimento tecnológico mundial, moldam comportamentos sociais, definem prioridades econômicas e estremecem alguns pilares da democracia. Nunca houve empreendimentos privados dessa natureza e alcance, e não é exagero dizer que Google e Facebook projetem sombras sobre países inteiros com sua influência e poder. Eles são o mais próximo do que imaginou Dave Eggers em seu romance distópico, O Círculo, onde uma empresa de tecnologia cria tanta dependência humana que ensaia absorver em sua plataforma digital o próprio processo político. É de totalitarismo que estamos tratando; de totalitarismo privado no capitalismo de vigilância e de sedução pelo solucionismo tecnológico.

Então, o jornalismo não deve aceitar o dinheiro de Facebook e Google?

Se a questão fosse fácil assim, não teríamos um problema. Na verdade, estamos diante de um dilema ético que nos obriga a pensar qual o custo disso. Ao se vincular a Google e Facebook, jornalistas e organizações de mídia colocam em risco sua liberdade editorial? Projetos apoiados por eles terão autonomia para criticar e cobrir com rigor os movimentos desses gigantes? Iniciativas de checagem de fatos vão se sentir à vontade para apontar os dedos às plataformas que estimulam a mentira e a confusão? Poderão cobrar delas ações mais efetivas para estrangular um ecossistema de desinformação que corrói as democracias, esgarça o tecido social e deteriora o jornalismo? Há outros caminhos para salvar o jornalismo local, que não os sinalizados por Google e Facebook?

Ouso em dizer que a crise do jornalismo não passa necessariamente por eles, embora não possa também ignorá-los. Um dos grandes problemas do tecno-solucionismo é minar a nossa imaginação e nos fazer acreditar que todas as saídas são tecnológicas e precisam pagar pedágio no Vale do Silício. Não são. O mundo, seus problemas e diversidades são maiores que a Califórnia; a inteligência e engenho humanos não respeitam geografias, e a internet é muito mais do que os jardins murados que nos legaram.

As soluções para a crise do jornalismo não precisam necessariamente passar por Facebook e Google, mas taxar conglomerados como esses ou obrigá-los a remunerar empresas e jornalistas pela reutilização dos conteúdos que produzem são saídas possíveis e viáveis. Legisladores também podem apresentar propostas de financiamento público do jornalismo, tendo em vista que o serviço que prestam pode ser enquadrado em finalidade social. Governantes podem ter políticas transparentes, técnicas e equilibradas de distribuição de verbas públicas ou mesmo de incentivo à mídia, entendendo que é um setor econômico que merece socorro, como foi feito com bancos e instituições financeiras. A sociedade pode se organizar para aderir a sistemas de sustentação compartilhada de pequenas e médias empresas de notícia, se considerar que vale a pena pagar essa conta.

Enfim, não é fácil abrir mão do pouco dinheiro disponível para salvar o jornalismo. Mas a fatura de cobrança virá, e ela pode significar perda de autonomia, independência, liberdade, senso crítico e credibilidade. O jornalismo já cometeu erro parecido recentemente, quando relegou às redes sociais e às plataformas uma etapa de seu processo produtivo: a distribuição das notícias e conteúdos. Deu de bandeja parte de seu trabalho e, com isso, se distanciou mais ainda do público. Não aceitar o dinheiro pode não ser a melhor saída, mas recebê-lo acriticamente pode representar a volta de um pacto parecido como que fez o Fausto, de Goethe. Quanto custará aceitar ao jornalismo aceitar o dinheiro de Facebook e Google? Está na hora de falarmos sobre isso.

Texto publicado originalmente em objETHOS.

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Rogério Christofoletti é professor de Jornalismo na UFSC e pesquisador do objETHOS.