Tendo já vivido por mais de três décadas sob o sistema parlamentarista australiano, desenvolvi certo gosto em assistir debates pré-eleição. O recente “embate” presidencial nos Estados Unidos, em 27 de junho passado, difere drástica – e dramaticamente! – do que acontece aqui, a cada três anos, quando há eleições federais.
A diferença é drástica porque no sistema parlamentarista, o líder de cada partido é quem vai para o debate levando – não em seu nome, mas em nome do partido – todas as ideias, projetos, planos, metas ou políticas a serem apresentadas. E sobretudo as promessas. O líder do partido vencedor nas urnas se torna o Primeiro-Ministro e dele as tais promessas são cobradas dia após dia.
Já no sistema presidencialista, as metas ou projetos do partido acabam quase sempre sendo colocadas de lado. O que geralmente entra em cena é o indivíduo, a pessoa do candidato – no que fica mais fácil explorar qualidades e defeitos. Assim, o evento se torna um ato cênico e, especialmente no caso recente de Trump x Biden, um episódio altamente agressivo.
Hoje deixo de lado as tais promessas, projetos ou planos – e mesmo a ideologia dos debatedores – para me concentrar no ingrediente, a cada dia mais novo, que vem se tornando parte dessas contendas. Indiscutivelmente, a tecnologia eletrônica é uma conquista humana notável. Mas esse ingrediente, hoje carinhosamente apelidado de fake news, é nada mais do que a velha mentira, antes dosada em menores proporções.
Política Virtual?
Em 1997, David Holmes, professor na Griffith University, aqui na Austrália, reuniu ensaios de outros 11 acadêmicos e publicou o livro Virtual Politics – Identity and Community in Cyberspace.
Já na introdução, quase duas décadas antes de Trump se eleger e bem antes do escândalo Cambridge Analytica & Facebook, Holmes diz que “a virtual reality é o único meio (fora a política) em que a verdade não é determinada pela adequação do conhecimento com a realidade”.
Com base no conhecimento científico ou filosófico de até bem pouco tempo atrás, segundo Holmes, “o ‘real’ é relativamente fixo e seu teor de verdade é avaliado através de uma forma convencional, ou pré-determinada de observá-lo e de descrevê-lo. Ou seja – creio eu – o real pode ser (e é) hoje alterado tão rapidamente que o conhecimento fica perdido, ou seja o conhecimento não tem tempo de correr atrás do ‘real’… Cria-se portanto uma tremenda reversão entre a fixidez, ou imobilidade do real, e a maneira como ele é exposto ou descrito”. Após ler o livro, minha conclusão foi que a realidade, dali por diante, poderia ser “inventada”.
Segundo o canal americano CNN, que promoveu o debate, 51,27 milhões de americanos assistiram ao programa. Sem dúvida, número muito maior deve ter sido registrado mundo afora. Isto hoje pode ser visto como uma coisa muito natural, fruto dos contínuos passos velozes da internet. Vale lembrar que entre 2010 e 2012 ela foi o alicerce de uma onda espontânea de insurgência pró-democracia nos países do oriente médio, a que ficou conhecida como a Arab Spring. Pela mesma época, final de 2011, creio que o movimento Occupy foi a primeira ação “global” de protesto. Este movimento foi um ataque à influência das corporações não só na vida de cada indivíduo, como também nas decisões políticas de governos em todo o mundo. O interessante nesses dois movimentos, eu creio, foi o alto nível de espontaneidade. Não houve uma entidade ou indivíduo centralizador ou controlador por trás desses movimentos.
Velocidade e retrocesso
No entanto, não só a velocidade, mas a capacidade operacional de se criar – e de se direcionar – canais de redes sociais como suporte a candidatos na área da política, ambas acabaram com aquela espontaneidade notada dez anos atrás.
Desta forma, este evento que poderia ter trazido a esses milhões de espectadores – de fato, a todo o mundo – alguma luz, alguma ideia do que poderia, ou deveria acontecer nos Estados Unidos, não passou de uma avalanche de ataques pessoais, verdadeiras agressões à integridade moral de um ou de outro participante. As pobres condições físicas e cognitiva de Biden nessa noite foram notadas, mas no conjunto não poderíamos deixar de falar no uso da tal ferramenta, a “verdade travestida”.
Ao final do debate, em rápida checagem dos argumentos, a CNN detectou 30 mentiras de Trump e 9 de Biden. Mas, como eu pressentia, em termos de valor do evento, a mesma CNN fez uma apuração dos resultados do debate com um grupo de 565 pessoas. Destas, 81% responderam que o debate não teve qualquer efeito com relação à sua escolha. Apenas 5% mudariam de candidato em vista do que assistiram.
A declaração da vice-presidente Kamala Harris, também divulgada pela CNN, foi uma análise bem simples de todo o tempo – infelizmente, eu acho – desperdiçado em cima do palco. Ela aborda a questão do “estilo” de ambos os candidatos e declara que Trump mentiu, como é de costume. Reconheceu o começo lento de Biden, mas concluiu: “Não temos que falar sobre 90 minutos de debate, mas sobre os três anos e meio de performance”.
Encerrando, volto a um livro de Rosemarie Muraro (A Automação e o Futuro do Homen, de 1969). Ali ela diz: “(…) toda invenção é uma extensão ou um superestímulo a um dos sentidos. (…) o desenvolvimento da palavra escrita possibilitou uma organização visual da vida, tornando possível a liberação do individualismo, da introspecção etc. A palavra ouvida, falada, é envolvente, desperta emoções, liga os interlocutores. Por isso, no mundo primitivo, o homem vivia num ambiente mágico, oral, totalmente envolvido por suas emoções”. Rosemarie cita Teilhard de Chardin e o que ele chamou de “imensa diversidade da espécie humana”. Chardin é do tipo de pessoa que “viveu” no futuro, como nos deixa ver no seu O Fenômeno Humano, de 1955. Mas nesse futuro que agora vivemos me parece que uma grande maioria de seres humanos – com toda tecnologia à mão – ainda caminha, telinha adentro, para uma era emocional e mítica, vagando naquele estágio pré-racional, aquele que o mesmo Teilhard de Chardin achava que hoje já teríamos deixado para trás.
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Marcus Cremonese graduou-se em jornalismo pela FACHA, Rio de Janeiro. Teve matérias publicadas no Jornal do Brasil e no O Tempo, de Belo Horizonte. Mudando-se para a Austrália, publicou no Journal of Audiovisual Media in Medicine (JAMM), de Londres. Produz ilustrações científicas para livros e revistas médicas.