Meus amigos usam a frase “nem toda gay, mas sempre uma gay” o tempo todo. Eles o fazem para rir das situações inusitadas em que nos colocamos. Eu me divirto com isso, mas essa semana pensei que enquanto brincamos uns com os outros assim, reforçamos estereótipos e perdemos de vista algo fundamental: reconhecer os traços únicos de um grupo é condição para compreender porque ele faz o que faz. Enquanto devorava “O púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos”, de Anna Virginia Balloussier, percebi que cientistas sociais, jornalistas e outros analistas do presente andam fazendo algo semelhante com uma parte da população com quem nós, intelectuais progressistas, temos dificuldade de empatizar: os brasileiros evangélicos.
Muitos formadores de opinião seguem explicando a popularidade dessa forma de cristianismo renovado como adesão de massas buscando refúgios contra incertezas. Psicólogos e psicanalistas apressados tiram da manga dois ou três processos inconscientes e decretam que grupos pentecostais são exemplos de multidões inclinadas a comportamentos extremos, dada sua necessidade de sublimar pulsões destrutivas e provar seu amor a líderes carismáticos.
Pensadores “críticos” entendem os adeptos de diversas denominações religiosas – luteranos, presbiterianos, batistas etc. – como sujeitos ludibriados pelo neoliberalismo disfarçado de teologia da prosperidade neopentecostal. Não por acaso, cidadãos comuns tendem a pensar nos brasileiros evangélicos usando variações dos termos criados por Freud em 1921. Explico: é provável que o leitor já tenha interpretado as ações desse grupo usando adaptações da frase: os evangélicos são como “um dócil rebanho incapaz de viver sem um amo” e concluído que todos estão política e ideologicamente alinhados com Edir Macedo, Silas Malafaia, André Mendonça ou Damares Alves.
Usando a chave “nem todo evangélico, mas sempre um evangélico”, prestamos pouca – ou nenhuma – atenção às ferramentas que a cosmovisão protestante oferece para que as pessoas manejem seus desafios cotidianos. A revista A Bíblia e Direitos, publicada pela Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito em 2018, mostra como essa forma de conduzir-se na vida abriga potencialidades emancipadoras pouco exploradas por grupos progressistas.
Reduzindo as escolhas dessas pessoas à submissão a falsos profetas, minoramos o valor das redes de suporte e ajuda mútua desenvolvidas nas igrejas das periferias urbanas. Segundo dados do Ipea de 2023, há 87.571 estabelecimentos religiosos evangélicos no país hoje e, além de salvação espiritual, é lá que irmãos e irmãs em Cristo buscam oportunidades de emprego, educação e suporte emocional.
Tomando os políticos bolsonaristas como representantes legítimos das crenças e valores de cristãos protestantes, ignoramos disputas teológicas fundamentais como as encampadas pela Bancada Evangélica Popular e pela Rede Fale. Esses são dois dos muitos coletivos que mostram a essa comunidade de fiéis as interfaces entre os ensinamentos bíblicos e a necessidade de ampliar a proteção social e combater as iniquidades, não apenas para seus fiéis, mas também para toda a sociedade.
Às transformações políticas e sociais que temos enfrentado no Brasil, soma-se uma transição religiosa inegável. Ideias inadequadas e preconceitos históricos limitam nossas análises sobre um grupo político diverso, cada vez mais relevante na cena pública nacional. Nossa compreensão dessa parte da população brasileira será mais precisa e útil se aprendermos com o texto de Anna Virginia. Assim como Anna, precisamos escutar as histórias singulares que informam as condutas evangélicas em temas como política, aborto, empreendedorismo e sexo. Para entender o que se passa quando as ruas se enchem de pessoas dos templos, devemos nos armar de empatia. Só assim será possível ponderar com cuidado sobre os fatores individuais, culturais e contextuais que orientam as razões singulares, a subjetividade e as formas de participação política dessas irmãs e irmãos.
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André Sales é doutor em psicologia. Pesquisador Fapesp associado ao PPG de psicologia da PUC/SP e pesquisador visitante na CUNY em Nova York (EUA) e na York University, em Toronto. Autor de “Militancy and Prefigurative Activism: the Case of Brazil” (ed. Springer, 2023); “Militância e ativismo: cinco ensaios sobre ação coletiva e subjetividade” (ed. Unesp, 2021); “Militância e ativismo depois de Junho de 2013: e daí?” (ed. Comprehensive Peer, 2020). Editor da série Psicologia Política Pop.