Ainda no mês de março, quando havia mais dúvidas que certezas sobre o comportamento da Covid-19 no Brasil, a equipe da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) começou a pensar em alternativas para realizar seu tradicional congresso internacional que chega à 15ª edição neste ano. Planejado para o fim de junho, as datas foram remanejadas para este mês de setembro, nos próximos dias 11 e 12. Em 2019, 1.200 congressistas compareceram presencialmente ao evento. Neste ano, o formato virtual e as inscrições gratuitas, inéditos até então, já possibilita a participação de cerca de 6.000 pessoas. Um recorde de público para o maior congresso de jornalismo realizado na América Latina.
O campus Vila Olímpia, da Universidade Anhembi Morumbi, local onde o evento fora realizado nos últimos anos, não pôde ser utilizado em respeito ao distanciamento social. No novo formato, palestrantes e ouvintes se encontrarão na plataforma congresse.me. Lá, serão hospedadas 34 atividades como palestras, oficinas e minicursos conduzidos por cerca de 90 convidados, nacionais e internacionais, que discutirão sob os eixos temáticos: trabalhos e jeitos de fazer; cenários e tendências; jornalismo sob ataque; aprendizado e teoria; e aprendizado e prática.
Alguns conteúdos serão ministrados ao vivo, outros gravados para não comprometer a conexão. Salas de bate-papo serão ativas, se possível, após as transmissões. Muito embora tudo tenha sido adaptado em termos de logística e duração, a qualidade do conteúdo não foi comprometida e vai mostrar como a associação está atenta às urgências da crise político-institucional do país, que afeta o trabalho de milhares de jornalistas em todo o território nacional. Assim garante Cristina Zahar, secretária-executiva da Abraji e responsável pelo evento.
“Nós pensamos: não vai dar para fazer palestras por uma hora e meia no online porque as pessoas cansam. As pessoas estão em casa, trabalhando, ajudando o filho, passando ou lavando roupas. Resolvemos fazer palestras mais curtas, de até uma hora. E esse foi um dos desafios: condensar esse conteúdo enorme que tínhamos para fazer na curadoria e colocar em dois dias. Mas há também aí uma riqueza do digital, que permite experimentar também outros modelos”, relata.
Presente como membro da Abraji desde 2018, ela avalia, pessoalmente e pela diretoria da organização, que a associação tem ganhado mais protagonismo e credibilidade desde o período da campanha eleitoral de 2018, que levou Jair Bolsonaro à presidência da República. Portanto, realizar o congresso neste ano de 2020 não significa apenas um desafio em razão das crises sanitária, econômica e climática, mas também marca posição.
“Nós sabemos que este é um governo que tem por missão tirar a legitimidade do trabalho da imprensa. Ataques são frequentes tanto aos meios de comunicação, quanto aos jornalistas pessoalmente. Muitos são atacados pelas redes sociais, onde tem uma campanha coordenada, que é mais agressiva ainda em relação a jornalistas mulheres. A gente vê que todo esse clima faz com que nosso trabalho seja mais relevante”, afirma. Os curadores de conteúdo do congresso prepararam uma programação que atenda às gravidades desse cenário.
Destaques
Uma das mesas do congresso foi elaborada especialmente para discutir os assédios virtuais direcionados a jornalistas mulheres da América Latina. Nela, estarão presentes Gabriela Buada (Venezuela), Isabel Mercado (Bolívia), Lina Cuellar (Colômbia) e Sandra Chaher (Argentina).
Atacada pessoalmente neste ano pelo presidente Jair Bolsonaro e filhos, a repórter Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, estará presente nesta edição e lançará seu livro “A Máquina do Ódio: Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital”. Além disso, ela participa também de um painel que vai discutir ameaças de segurança digital contra jornalistas na companhia de Neena Kapur, gerente de Inteligência de Segurança no The New York Times.
As discussões sobre perseguições e tentativas de coação e descrédito ao trabalho da imprensa também estarão presentes nas mesas que discutirão a polarização política e a desinformação. Craig Silverman, do BuzzFeed canadense, e Marcelo Träsel, presidente da Abraji, estarão à frente do painel que vai abordar os desafios que as fake news impõem e técnicas de verificação. Jason Stanley, autor de Como Funciona o Fascismo – A Política do “Nós” e “Eles”, participa do painel que discute discursos autoritários e divisionistas com Daniel Bramatti, do Estadão.
Num momento em que lidamos com índices alarmantes de desmatamento na Amazônia e incêndios no Pantanal, sob a inepta política ambiental conduzida pelo ministro Ricardo Salles, a Abraji organizou os painéis: “O que mudou na cobertura do Guardian sobre o meio ambiente e a Amazônia?”, com Jonathan Watts, do britânico The Guardian, Kátia Brasil, da Amazônia Real, e Bernardo Esteves, da Revista Piauí, e “Terra indígena no centro das investigações”, com Ana Aranha, do Repórter Brasil, Letícia Leite, do podcast “Copiô, parente”/ISA, e Fabio Pontes, jornalista acreano e freelancer.
Em razão do coronavírus, jornalistas têm sido pressionados a lidar com desafios internos e de produção. A Abraji convidou Luiza Bodenmüller, do Aos Fatos, Guilherme Valadares, do PapoDeHomem, e Meera Selva, do Reuters Institute for the Study of Journalism, para discutir estratégias que protejam a saúde mental dos profissionais de imprensa. E, para entender os desafios do jornalismo científico e atender às demandas por qualificação na cobertura da Covid-19, haverá um painel com as presenças de Miguel Nicolelis, do Comitê de Combate ao Coronavírus no Nordeste, Roberta Jansen, do Estadão, e Vinícius Ferreira, da Fiocruz.
A onda de manifestações antirracistas em todo o mundo, provocada após a morte do homem negro George Floyd, impactou também as redações de jornalismo. Discussões sobre a forma que veículos de mídia retratam questões sobre violência policial, preconceito racial e a baixa representatividade de pessoas negras em cargos de chefia, nas equipes de reportagem e entre os especialistas consultados, consequentemente, aumentaram.
A Abraji elaborou a mesa “Racismo dentro e fora das redações”, que vai contar com a presença das jornalistas Flávia Lima, ombudsman da Folha de S. Paulo, Yasmin Santos, repórter da Revista Piauí, e Nikole Hannah Jones, ganhadora do Prêmio Pulitzer, repórter e colunista do The New York Times. Nikole idealizou para o jornal nova-iorquino The 1619 Project, uma iniciativa multimídia que tem o objetivo de reformular a narrativa nacional norte-americana em torno da escravidão e das contribuições afro-americanas no processo histórico do país.
“É muito importante fazer essa reflexão dentro do jornalismo, dentro das redações. Acredito que é algo que ainda precisamos avançar muito. Então, o fato de termos negros e negras como palestrantes e mediadores e o respeito ao local de fala são muito importantes para a gente”, diz Cristina.
Expectativas
Cristina avalia que mesclar oficinas e cursos garante que um evento analítico, como a Abraji se propõe a fazer, alcance sucesso. “Porque aí você não só fala, mas também reflete. Isso eu acho que fazemos muito bem e vamos continuar agora virtualmente. Com os pés no chão”, opina. E deixa um recado para os participantes e a quem quiser ainda se inscrever: “Podem esperar o conteúdo de qualidade que a Abraji já oferece, além de muita reflexão sobre a prática, sobre os rumos da profissão e aprimoramento de técnicas”.
Sensível à turbulência econômica provocada pelo coronavírus, a organização do evento possibilitou a inscrição gratuita, sobretudo pelo forte impacto causado nas redações onde muitos jornalistas foram recentemente demitidos ou tiveram seus salários reduzidos. Entretanto, a Abraji depende de recursos para continuar em defesa do jornalismo e convida a quem puder contribuir voluntariamente com qualquer valor que o faça no site seja no ato de inscrição, ao longo do congresso ou posteriormente.
Estão programados para o mesmo fim de semana dois eventos extras: o VII Seminário de Pesquisa em Jornalismo Investigativo, que discute trabalhos acadêmicos sobre o tema, no dia 10; e o 2o Domingo de Dados, com oficinas de jornalismo de dados, no dia 13. As inscrições também são gratuitas, mas precisam ser feitas separadamente:
Inscrições para o VII Seminário de Pesquisa em Jornalismo Investigativo:
https://congresse.me/eventos/seminarioabraji
Inscrições para o 2º Domingo de Dados:
https://congresse.me/eventos/ddadosabraji
As inscrições para a 15ª edição do Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo estão abertas e devem ser feitas no site. Lá, estão disponíveis todos os detalhes sobre os horários e tópicos abordados pela programação e a relação completa de palestrantes do evento. Todos os conteúdos poderão ser acessados pela plataforma num prazo de 30 dias. Acesse:
https://congresse.me/eventos/congressoabraji
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Lucas de Andrade é estudante de jornalismo na UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)