Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Lições da greve dos caminhoneiros para o jornalismo local

Paralisação dos caminhoneiros reduziu níveis de contaminação em São Paulo (Valter Campanato/Arquivo Agência Brasil).

As dificuldades impostas ao trabalho jornalístico, principalmente pelos recursos mais limitados das redações do interior, muito se dão pela menor quantidade de pessoal e de equipamentos disponíveis para as equipes. É notório que quem faz jornalismo no interior do Brasil o faz com muita garra, principalmente pela concorrência com novos canais de comunicação surgidos pelos avanços da tecnologia, em especial da instantaneidade proporcionada pela internet. Além desse cenário, o jornalista hoje tem uma árdua missão de reforçar o compromisso ético e relevante de seu trabalho à sociedade, muito porque a própria internet permite que todos os atores da cibercultura também sejam “comunicadores” em suas redes sociais. Dessa forma, em uma situação como a greve dos caminhoneiros, que completou um ano em maio, a rotina profissional dos jornalistas do interior demonstrou o quão necessário é enfrentar esses novos tempos com força, criatividade e perseverança.

Aqui, utilizo como exemplo dessa nova (e mais desafiadora) realidade o jornal Folha do Sul, veículo de comunicação impresso que nasceu há quase dez anos na cidade de Bagé, no interior do Rio Grande do Sul. No desenrolar dos fatos dessa crise nacional, o veículo produziu conteúdo em paralelo a notas divulgadas no site do jornal e nas redes sociais; textos que passaram a ser publicados com maior intensidade ao longo dos dias. Toda essa produção jornalística fez com que fosse preciso aprofundar as reportagens para a edição impressa.

Naquele período, eu desempenhava uma das funções de chefia de redação e, com a equipe, decidi abrir mais espaços no impresso quando a mobilização ganhou contornos de crise geral. Recordo que os fechamentos de edição precisaram ser atrasados devido às mudanças praticamente instantâneas da mobilização. Com o maior volume de informações chegando ao jornal, foi preciso um trabalho hercúleo de toda a equipe para determinar quando a edição estava praticamente “finalizada”.

A paralisação começa no país

No dia 22 de maio foi publicada a primeira reportagem sobre a greve. Ela informava sobre a participação de caminhoneiros autônomos bageenses no movimento – que, no dia da cobertura (21), reunia profissionais de quinze municípios gaúchos. A manifestação dos caminhoneiros autônomos era feita como protesto contra os baixos preços pagos nos fretes; os custos elevados nos pedágios e o aumento sucessivo nos preços de combustíveis eram as primeiras reivindicações do movimento. À reportagem, o caminhoneiro Adriano Camargo, de 37 anos, reiterou que a manifestação era pacífica, sem a intenção de bloquear a pista para o trânsito. “O que nós buscamos é conscientizar a comunidade. Nós somos os que mais sentem o peso dos aumentos nos preços, mas não estamos sozinhos. Todo bageense que precisa usar veículo para trabalhar e se deslocar está indignado com a situação”, declarou o profissional. No dia seguinte, assim como se viu no resto do país, a mobilização ganhou maior amplitude. Mais trabalhadores da categoria passaram a se unir ao movimento.

Em reportagem do dia 23, com o título “Produtores rurais aderem à manifestação de caminhoneiros em Bagé”, o texto destacava que os caminhoneiros ganharam o apoio dos produtores já desde as primeiras horas da manhã do dia 22. A ideia era intensificar a ação. Em uma cidade com forte vocação agropecuária, uma das fontes da reportagem, o presidente da Associação dos Agricultores da Região da Campanha (Agricampanha), Gesiel Porciúncula dos Santos, afirmou que a classe produtiva apoiaria os caminhoneiros e conclamama a comunidade a participar do protesto. “Não é mais possível que o trabalhador pague o preço dos desmandos e do desgoverno que afetam o nosso país. É preciso que a sociedade veja que os aumentos terão impacto na vida de toda comunidade”, disse o representante da entidade, reiterando que o setor produtivo da soja enfrentava com muitos prejuízos as constantes subidas no preço do diesel. “O ciclo da soja, do plantio à colheita, leva cerca de 140 dias. Quando começamos a plantar, o preço do diesel estava por volta de R$ 2,80. Hoje, está batendo os R$ 4. Não temos como produzir e planejar a próxima safra sem saber quanto teremos que pagar por insumos fundamentais no nosso dia a dia de trabalho. Esses aumentos são totalmente desproporcionais e comprometem a produção rural”, argumentou.

Fato histórico

E foi o fator da falta de combustível, preponderante para toda a economia nacional, que fez com que a greve se tornasse histórica. Reportagem publicada no dia 24 enfatizava que as medidas do governo federal para sanar a crise não haviam surtido efeito. O texto “Escassez de estoque causa filas em postos de combustíveis” divulgava que centenas de bageenses procuraram os postos de combustíveis para se prevenir contra o fim dos estoques. Profissionais de ramos diversificados demonstravam a preocupação que cresceria ainda mais nos dias seguintes. O empresário Jorge Adair Fagundes Rodrigues, 56, disse na matéria que os sucessivos aumentos do preço nas bombas dobraram o custo do transporte para sua empresa: “Preciso do carro para trabalhar e, no último mês, nosso gasto com gasolina saltou de R$ 300 para R$ 600, somente por conta da suba [alta de preços]”. Tão logo o processo de paralisação avançou, as cidades da região de Bagé, como Candiota, de forte economia ligada ao setor de produção de energia com base em carvão, sofreram de forma mais antecipada os efeitos da crise. Na ocasião, já no quarto dia de paralisações, o chefe do Executivo de Candiota decretou situação de calamidade pública devido ao desabastecimento. A greve também passaria a afetar a rotina da comunidade da pequena cidade.

Repercussão em outras editorias

Da editoria de assuntos gerais, a greve começou a ganhar outras editorias do jornal, como política, rural, segurança e até mesmo a esportiva, pois jogos de futebol e competições de atividades como ciclismo e veloterra, entre outras modalidades, tiveram que ser adiadas. No segmento primário, o município teve prejuízos com as escalas de abates dos frigoríficos, que foram suspensas, e a pecuária leiteira teve sua produção diária em parte perdida, até que o governo do município doou determinada quantia para entidades assistenciais. O transporte de gado e de culturas agrícolas foi atingido. O desabastecimento na feira pública da cidade foi imediato. Supermercados também foram atingidos. Produtos não chegavam e prateleiras ficavam vazias. Quem podia, fazia ranchos para garantir um estoque de alimentos em casa.
Já no dia 26, inúmeros serviços públicos e privados da cidade foram afetados. Da coleta do lixo ao transporte municipal e intermunicipal, passando pelos postos de saúde e hospitais, até as aulas da rede pública e privada de ensino na cidade foram limitadas em seu funcionamento. Isso gerou maior temor para uma população de cerca de 120 mil habitantes que não recordava de uma crise com essa dimensão nas últimas décadas.

Dificuldades para distribuir o jornal

O próprio jornal enfrentava uma via-crúcis para poder ser impresso e distribuído aos assinantes e às bancas. Bagé está a mais de 370 quilômetros de distância da capital do estado, Porto Alegre, onde a Folha do Sul é impressa na gráfica do Zero Hora. Naqueles dias de intensa mobilização no país, porém, o jornal foi um dos poucos impressos que chegavam às bancas e às casas dos leitores. A direção do impresso revezava em carros particulares: dois colegas que partiam todos os dias às 15h, com destino à capital, para que conseguissem pegar o jornal e entregá-lo na cidade. O trajeto era feito a no máximo 80 quilômetros por hora para não faltar combustível no veículo. Todos os dias, havia a possibilidade de que todo o trabalho produzido com esmero pela equipe não ganhasse as páginas do impresso. No entanto, o jornal conseguiu manter a circulação na cidade e em mais seis municípios da região da Campanha gaúcha.

Com o desenrolar dos fatos, também houve manifestações com viés político. Isso ficou evidente no domingo, dia 27, quando centenas de pessoas participaram de um ato em prol da mobilização dos caminhoneiros. A iniciativa foi organizada nas redes sociais e, nela, os indivíduos desceram as principais ruas do centro da cidade entoando o Hino Nacional e com bandeiras do Brasil, bem como camisetas da seleção brasileira. Assim como já ocorrera em outros protestos no país, a ação permitiu que um grupo de pessoas decidisse ir em frente ao quartel-general e gritasse pedidos por intervenção militar. Em uma cidade fronteiriça e com forte presença militar, com cinco quartéis, isso representava os perigos que a crise começava a sugerir, principalmente pela inoperância do então governo federal de Michel Temer. Contudo, no outro dia, a colunista de política, Márcia Souza, reforçou que o Legislativo bageense, em sua maioria, refutou que a “saída” para a situação era a tomada de poder por parte dos militares.

Confronto com o Exército

No dia 30, o jornal trazia a cobertura de como se mantinham alguns dos serviços ainda realizados, como taxistas e mototaxistas. A escassez de alimentos na feira gerava apreensão de quem consumia e vendia os produtos hortifrutigranjeiros. Restaurantes também tinham que mudar cardápios e trocar os pratos que eram servidos pela falta de alimentos. Para manter um pouco de “normalidade” na cidade, o Executivo de Bagé, com apoio do 6º Regimento de Polícia Montada da Brigada Militar, 9ª Delegacia Regional de Polícia Civil, 3ª Brigada de Cavalaria Mecanizada do Exército e empresários locais do setor, enviou comboio de doze veículos para o transporte de combustíveis à refinaria Alberto Pasqualini, em Canoas. O agravamento da crise fez com que ocorressem confrontos. Na véspera de ser encerrada a greve, um grupo de cerca de 400 manifestantes – trabalhadores vinculados à Companhia Rio-grandense de Mineração (CRM) e à Usina Termelétrica Pampa Sul (UTE Pampa Sul) – bloqueou uma rodovia federal com a queima de pneus. A ação resultou em um desbloqueio à força realizado por tropas do 3º Regimento de Cavalaria Mecanizado (3º RC MEC) e do 3º Pelotão de Polícia do Exército (3º PEL PE), com apoio da Polícia Rodoviária Federal e Brigada Militar de Candiota, com dois trabalhadores presos. A medida teve amparo nos decretos 9382/18 e 9385/18, do presidente Michel Temer, que autorizavam, naquela ocasião, as Forças Armadas a fazer o desbloqueio de vias federais e a escoltar veículos que prestavam serviços considerados essenciais, como a distribuição de alimentos e combustíveis. A medida ainda permitia ao Exército avançar, se não houvesse êxito nas negociações.

Conclusão

O fato é que, após dez dias de mobilização, o próprio movimento reiterava o abatimento por não ter tido um apoio maior da comunidade da cidade de Bagé. Um dos participantes do grupo que protestava na rodovia de acesso à cidade deu entrevista ao repórter João Alberto de Miranda Filho na edição do dia 31 de maio. “Me sinto desiludido e aborrecido com a desunião que abateu a categoria. Ressalto que a greve não acabou só porque foi desmobilizada em Bagé. Nossa causa é justa e não foi atendida”, enfatizava o caminhoneiro Marco Aurélio Vieira Araújo, 47 anos, que entendia que “a paralisação ‘morreu’ porque ter gasolina no tanque era mais importante que lutar por direitos”.

A greve dos caminhoneiros, histórica em sua ação de “paralisar” o país por dez dias e demonstrar a força da categoria, também serviu para reforçar os desafios rotineiros para a imprensa e seus profissionais.

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Fontes consultadas

http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/23/produtores-rurais-aderem-a-manifestacao-de-caminhoneiros-em-bage
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/24/escassez-de-estoque-causa-filas-em-postos-de-combustiveis
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/26/eventos-esportivos-sao-adiados
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/26/doacao-de-leite-para-entidades-foi-alternativa-diante-da-greve
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/26/greve-afeta-seriamente-servicos-publicos-e-atividades-sao-suspensas-em-bage
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/28/paralisacao-dos-caminhoneiros-permanece-e-afeta-prestacao-de-servicos-
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/28/manifestantes-vao-as-ruas-em-apoio-aos-caminhoneiros
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/29/vereadores-refutam-pedido-de-intervencao-militar
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/29/taxistas-e-mototaxistas-se-adaptam-a-escassez-de-combustiveis-e-apoiam-mobilizacao
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/30/hortifrutigranjeiros-projetam-duracao-de-estoque-para-uma-semana
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/30/executivo-anuncia-iniciativa-conjunta-para-normalizar-servicos-publicos-e-abastecimento
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/31/restaurantes-comecam-a-sentir-impacto-do-desabastecimento
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/31/-se-para-desbloquear-tiver-que-usar-a-forca-vamos-fazer-afirma-general
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/31/paralisacao-de-caminhoneiros-e-produtores-e-desmobilizada-em-bage
http://www.jornalfolhadosul.com.br/noticia/2018/05/31/folha-do-sul-garante-entrega-do-jornal

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Marcelo Pimenta e Silva é jornalista de Bagé (RS).