E ali estava eu, caderninho na mão, com toda a fome de coberturas sensacionais que pode ter um jornalista em começo de carreira – mas cru, clamorosamente cru, em matéria de reportagem. O assunto que haviam confiado ao impetuoso foca não era lá dos mais estimulantes: uma procissão de Corpus Christi no centro de São Paulo. Inexperiente, mas brioso, eu tinha decidido não recorrer às luzes de ninguém, nem mesmo ao veterano fotógrafo com o qual fazia dupla, até porque o camarada, em vez de Corpus Christi, dizia habeas corpus. Mas como não tinha ideia de que rumo dar à minha reportagem, botei de lado o orgulho e pedi ajuda ao japonês: “Quê que eu faço, Wakamoto?” “Sei lá”, disse ele, sem sequer me olhar. “Se fosse eu, perguntava a essas velhas o que elas vieram fazer aqui.”
Gênio, esse japa! – e caí como dissimulado abutre sobre aquelas senhoras que, véu na cabeça, vela na mão, olhinhos semicerrados de fervor, esganiçavam hinos no lerdo cortejo rumo à catedral da Sé. O que que a senhora veio fazer aqui? – lascava eu de supetão, após duas perguntinhas convencionais. Pasmas, tartamudas, nenhuma delas – e falei com meia dúzia – soube justificar presença. É a fé cega dos ignorantes, fui pensando, eufórico, me sentindo o máximo, de volta à redação, para escrever um texto que, nem preciso dizer, seguiu direto das mãos do editor para o cesto de lixo, onde por pouco não foi parar também o autor daquelas malfadadas linhas.
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Tempos depois, cruzei com o Wakamoto na Praça da República, na tarde dramática em que a multidão via arder o edifício Andraus. Dava para acompanhar o vaivém dos que se haviam refugiado no terraço, quando, jogadas de lá para cá pelo vento, línguas de fogo ameaçavam esturricá-los.
“Já perdi dois, já perdi dois!”, rosnou o fotógrafo ao passar por mim, espuminha nos cantos da boca. “Dois o quê, Wakamoto?” “Dois caras que pularam lá de cima”, bufou ele. “Mas o próximo eu pego!”
Pegou mesmo, e até ganhou prêmio com a imagem de um corpo despencando no vazio.
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Àquela altura da carreira, eu já sabia que entrevistador esperto deixa para o fim as perguntas melindrosas – se o entrevistador encrespa, bem ou mal ele já tem nas mãos o que publicar. Assim eu não corria o risco de um desastre como o que provoquei numa das minhas primeiras entrevistas, logo com Clarice Lispector, no que para mim ficou sendo, já contei, um traumatismo ucraniano. Agora tinha à minha frente dom Helder Câmara, o célebre arcebispo de Recife e Olinda, e chegada era a hora da pergunta difícil, sobre a mania dele, tão criticada pelos adversários, de rodar mundo de avião. O santo homem pôs sobre mim seus olhinhos enrugados de papagaio, deixou pesar entre nós um infernal silêncio, e então, sorridente, com voz doce de quem fala com uma criança, propôs: “Vamos embora?”
Estando os dois sozinhos na casa paroquial, onde ele morava, não cabia dúvida de que aquilo era comigo.
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“Daniel é fresco.” Embora rigorosamente verdadeira, segundo pude apurar, a informação não deveria ter saído no jornal, e muito menos onde saiu: em meio a um pedregoso despacho do senhor secretário estadual de alguma coisa, no não menos inóspito diário oficial do governo mineiro. O pessoal da gráfica que encaixou aquela linha solta por certo achava que ninguém, nem mesmo o Daniel, iria ler. Mas alguém o fez – e, numa velocidade inaudita no serviço público, armou-se um bafafá. Temendo por seus empregos, os autores da brincadeira se ofereceram, a sério, para remediar o malfeito, por meio de uma retificação – a qual, evidentemente, não chegou aos leitores: “Daniel não é fresco.”
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Como Norma, a secretária, jamais acertasse de primeira os números de telefone que ele oralmente lhe passava, um dia o redator-chefe, exasperado, não apenas berrou os oito algarismos, como acrescentou: “Nesta ordem, por favor!”
Ao que um dos comandados, o cantor e compositor Chico César, à época revisor de textos, de sua mesa mansamente observou: “Chefe, temos que respeitar todas as normas, inclusive esta!”
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[Humberto Werneck é jornalista e colunista do Estado de S.Paulo]